A memória do futuro — Chile (2019-2022)

Joseph Beuys, Corações dos Revolucionários: Passagem dos Planetas do Futuro, 1955
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Por PIERRE DARDOT*

Introdução do livro recém-editado

Uma revolução contra o neoliberalismo

Segunda-feira, 7 de outubro de 2019, cerca de 18 horas: entrevistado pela CNN Chile, o ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, anuncia que o preço do bilhete de metrô de Santiago aumentará 30 pesos, minimizando, ao mesmo tempo, o impacto da medida na vida cotidiana dos usuários do metrô. Na verdade, desde 6 de outubro, véspera do anúncio, a nova alta dos preços já estava em vigor no serviço do metrô nas horas de pico. Para bem dimensionar esse aumento, o terceiro do ano, é preciso levar em conta que dois bilhetes por dia custam 1.790 pesos, o que, na escala de um mês, equivale a 35.600 pesos, ou seja, cerca de 12% do salário mínimo.1

É preciso levar em conta também que o aumento anunciado só se aplica aos horários de pico, quando muitíssimos trabalhadores pegam o metrô para ir trabalhar e voltar do trabalho. A tarifa de metrô é definida com base em três horários: bajo, valle e punta. Só estudantes e idosos pagam uma tarifa fixa (230 pesos, em outubro de 2019). O bajo corresponde ao intervalo entre 6h00 e 6h59 e entre 20h45 e 23h00; o valle se aplica de 9h00 a 17h59 e de 20h00 a 20h44; o punta, entre 7h00 e 8h59 e entre 18h00 e 19h59. O ministro previa o aumento do preço dos horários valle e punta e, proporcionalmente, a diminuição do preço do horário bajo.

A responsabilização neoliberal do indivíduo

Essa modulação diferenciada das tarifas em função dos horários permite ao ministro argumentar que a medida não visa de forma alguma aos mais pobres. Por três vezes na mesma entrevista, o ministro martela a mesma ideia, formulada de maneiras diferentes: “Quem acorda cedo pode se beneficiar de uma tarifa reduzida”, “Quem sai mais cedo e pega o metrô às 7h00 da manhã tem a possibilidade de pagar uma tarifa mais baixa”, “Um espaço foi aberto para ajudar a quem madruga a pagar uma tarifa inferior”.

Para além de seu caráter provocador, essas respostas às questões de uma jornalista são perfeitamente reveladoras do espírito neoliberal que anima com grande frequência a política dos governantes do Chile há décadas. Com esses elementos de linguagem, diz-se tudo: é preciso incentivar financeiramente o trabalhador a acordar mais cedo.2 É uma cantilena ao pé do ouvido de cada um: “Se você acorda tarde demais, a responsabilidade é toda sua, o culpado é você”. Em outras palavras, trata-se de imputar a cada indivíduo a responsabilidade pela penalidade financeira que ele pode sofrer e de fazer crer que tudo depende, no fim das contas, da conduta que ele escolher adotar pessoalmente.

Esse é um traço característico do neoliberalismo que vai muito além das fronteiras da experiência chilena, embora, desde o início, tenha encontrado nessa experiência uma expressão muito típica: o neoliberalismo não se reduz de forma alguma a uma doutrina acadêmica importada da Escola de Chicago, ou mesmo a uma política econômica inspirada nessa doutrina; ele é uma forma de vida singular, definida por uma exigência de se escolher a si mesmo em condições que estão além de qualquer escolha.

Em 7 de outubro, por volta das 14h00, os estudantes conduzem a primeira ação de recusa de pagamento, invadindo a estação da Universidade do Chile, fazendo dessa recusa, nas suas próprias palavras, “uma outra forma de lutar”. De 7 a 18 de outubro, manifestações pontuais de estudantes ocupam as estações de metrô, sem dar lugar ainda a uma ação coordenada em escala metropolitana. As coisas mudam em 18 de outubro. O que impressiona o observador nas primeiras horas desse dia não é a efervescência de um tumulto, mas sobretudo a qualidade do silêncio que impera nas ruas, um silêncio estranho e muito raro.

Mas, por volta de 16h00, na hora da saída da escola, as primeiras aglomerações se improvisam na entrada das estações de metrô: os estudantes, então, convidam as pessoas a pular as catracas sem pagar, e as aglomerações crescem à medida que as pessoas que saem do trabalho veem o que se passa e decidem se juntar ao movimento. Há nisso uma espontaneidade que desafia todos os cálculos e todas as estimativas. A rua será por fim bloqueada por manifestações de massa que se repetirão a cada sexta-feira. É o início do alastramento da revolta para outras camadas sociais.

É claro que não faltam iniciativas estudantis desde as primeiras manifestações de oposição a Augusto Pinochet em 1984. Especialmente as ações de bloqueio das escolas são uma espécie de tradição, de modo que os estudantes estão acostumados a esse tipo de ação e de intervenção que carrega a marca de uma inventividade ligada a uma irrupção política que não é, em si mesma, nova.

O secundarista descabelado (chascón) há muito tempo faz parte da iconografia das mobilizações sociais. Já houve no passado movimentos estudantis pela gratuidade do transporte, mas seria um erro estabelecer uma relação de causalidade direta entre esses movimentos e a emergência do 18 de outubro de 2019: certamente esses movimentos deixaram marcas duradouras, mas não é a ação subterrânea dessas marcas que explica que a revolta tenha sido desencadeada pelo preço da passagem do metrô. Não é o passado que ressurge constrangendo os atores a dele tirar as reservas de um sentido que faltaria cruelmente ao presente, mas, pelo contrário, é a irrupção do novo que, retrospectivamente, dá sentido ao passado, trazendo à luz a continuidade de uma política.

“¡No son 30 pesos, son 30 años!”3

Mais exatamente, o que emerge aí é a consciência ativa da estreita relação entre essa medida de um ministro do presidente Piñera e a continuidade da política praticada pelos governos que se sucederam no Chile ao longo de décadas. Um bom exemplo disso é a frase que ecoa em todos os setores sociais que participam do movimento e mesmo além dele: “¡No son 30 pesos, son 30 años!”. Os “30 anos” referem-se às três décadas que vão de 1989 a 2019, os anos da Concertação, o sistema multipartidário de governança política, que inclui o Partido Demócrata Cristiano (DC), o Partido Socialista (PS) e o Partido por la Democracia (PPD), criado depois da saída de Pinochet, com o fim de preservar o núcleo do sistema Pinochet de qualquer contestação, sob o pretexto de assegurar uma “transição democrática”.

Nos dias seguintes ao anúncio do aumento, jornalistas da TV aberta coletam testemunhos de apoiadores do movimento e todos eles seguem a mesma toada: “Não aguentamos mais! Já faz 30 anos!”. Tal consciência exclui a dissociação escolástica entre causa ocasional (os 30 pesos) e causa profunda (a gestão da Concertação): é num imediatismo brutal que os 30 pesos revelam o sistema implacável que se perpetua sem interrupção desde 1989.

O “Despertar de Outubro”, expressão popular que é bem mais que uma simples metáfora, pode ser entendido no sentido de fim de um longo pesadelo, não como uma súbita tomada de consciência do caráter neoliberal do sistema, adquirida muito tempo antes e amplamente compartilhada, mas como resposta havia muito adiada a uma promessa quebrada pela Concertação: no referendo de 1989, o slogan em forma de refrão pelo qual a Concertação convocava a dizer “não” a Pinochet era “La alegría ya viene” (“A alegria está chegando”). Ora, a alegría prometida nunca chegou, e o Despertar de Outubro é, antes e sobretudo, uma resposta a essa promessa feita pela Concertação durante 30 anos. O Despertar dos chilenos se consuma pela ação coletiva.

Ao contrário do que se diz muito frequentemente, não somente a espontaneidade não exclui, de nenhuma forma, a consciência política, como ela anda de mãos dadas com certo planejamento. Não havia um plano político fomentado por um grupo ou uma organização, mas havia, sem dúvida, um planejamento das ações. Os alvos escolhidos nos primeiros dias do movimento revelam uma seleção totalmente deliberada.

As instituições atacadas são, além das 164 estações de metrô de Santiago, os grandes centros comerciais, os supermercados e os bancos (uma sucursal do Banco do Chile foi a primeira visada), que vendiam, todas elas, sonhos de realização pessoal por meio do crédito. O alvo aí é nada menos que o coração do sistema neoliberal implantado pela ditadura, que transformou profundamente a vida de milhões de chilenos. Ainda aí, o que chama atenção é a que ponto esse sistema, longe de se restringir à “superestrutura” política, se tornou ao longo do tempo parte integrante da experiência cotidiana dos chilenos.

Nesse sentido, é possível falar não só de uma experiência chilena do neoliberalismo, mas também de uma experiência neoliberal vivida em massa pelos chilenos. Em outras palavras, no caso do Chile, o neoliberalismo não é apenas um objeto de experiência que pode ser mantido a distância para ser analisado de todos os ângulos; ele também penetrou nas camadas da experiência e moldou-a de forma persistente, gerando aquilo a que se poderia chamar cansaço existencial, aliado a um sentimento de frustração, alimentado por uma persistente precariedade.

É isso que explica que, mesmo a tarifa fixa protegendo-os do aumento do preço da passagem, os estudantes estejam na vanguarda do movimento e recebam o apoio imediato e maciço da população. Na referência aos “30 anos”, é a subjetividade da revolta que encontra expressão. É como se os manifestantes dissessem: “Vocês nos enganaram durante 30 anos, nunca cumpriram suas promessas, e hoje estamos na rua para dizer chega!”.

Desse ponto de vista, o governo de Piñera limita-se a se acomodar a um sistema posto em prática por seus antecessores. De modo algum, entretanto, é poupado de responsabilidade. Pelo contrário, é apontado como responsável pela perpetuação desse sistema. A referência aos “30 anos” associa diretamente o sofrimento vivido no cotidiano à gestão política dos diferentes governos, inclusive o de Piñera.

No dia 8 de outubro, num programa popular de grande audiência, Piñera afirmou: “No meio de uma América Latina em convulsão, o nosso país é um verdadeiro oásis. […]. Temos uma democracia estável, o país está crescendo, estamos criando 176 mil empregos por ano, os salários estão aumentando. […]. Quanto mais crises vejo, mais temos que apreciar o nosso país”.

No mesmo dia, numa entrevista à CNN Chile, o ministro Felipe Larraín Bascuñán não hesitou em elogiar a estabilidade do índice de preços ao consumidor, convidando os “românticos” a aproveitar a queda do preço das flores, como se essa queda pudesse compensar o aumento do preço do bilhete de metrô. Para a maioria dos chilenos, toda essa ladainha é insuportável. É por isso que, desde o início, a reivindicação que dominou as palavras de ordem não foi o impeachment, mas a renúncia de Piñera. Há uma diferença abismal entre ambos: o impeachment colocaria o destino do presidente nas mãos do Congresso, enquanto a renúncia é uma exigência política incondicional, que prescinde dos procedimentos legais previstos na Constituição de 1980, aquela mesma que Pinochet impôs sob o regime ditatorial que se seguiu ao golpe de Estado de 1973.

O isolamento do governo

Desde o início, o governo procura criminalizar as ações dos estudantes secundaristas e universitários. Em 16 de outubro, a ministra dos Transportes, Gloria Hutt, ameaça publicamente os estudantes que participam dessas ações de suspender os benefícios decorrentes de seus cartões nacionais de estudantes. Na noite de 16 para 17 de outubro, o diretor do metrô,4 Clemente Pérez, um perfeito representante da Concertação, já tinha manifestado sua arrogância e seu desprezo ao dirigir-se aos estudantes manifestantes nestes termos, numa entrevista em rede nacional: “O que vocês estão fazendo”, disse, “não funcionou”.

Ou, mais vulgarmente: “Cabros, esto no prendió” (literalmente: “Gente, isso não pegou”, no sentido em que um fósforo “pega” fogo).5 Mas, como mostra a aceleração dos acontecimentos, o fósforo, ao contrário, pegou fogo muito rapidamente. A frase foi muitas vezes ridicularizada durante as manifestações.

Em 19 de outubro, Piñera decreta estado de emergência e nomeia um general de divisão como chefe da Defesa Nacional. Em 20 de outubro, à medida que se multiplicavam os confrontos entre os manifestantes e as forças de repressão, ele declara a nação em guerra contra “um inimigo poderoso e implacável que não respeita nada nem ninguém” e que está “disposto a usar a violência e a delinquência sem limites”.

Convém determo-nos um pouco nessa construção discursiva do inimigo, que não é propriamente uma novidade na história do neoliberalismo, mas que assume aqui um significado particular. Desde sua formação nos anos 1930, o neoliberalismo qualificou seus inimigos – o socialismo, o Estado de bem-estar social e o sindicalismo – como inimigos “civilizacionais”.6 Há aí uma clara diferença em relação ao conceito de inimigo desenvolvido por Carl Schmitt em 1932, segundo o qual é uma decisão absolutamente primitiva, irredutível a qualquer norma civilizacional, que constitui o inimigo enquanto tal, a ponto de o conceito de guerra subordinar-se ao de inimigo.7 Já para os doutrinários do neoliberalismo, trata-se de uma relação de antagonismo com a “civilização ocidental”, entendida na sua suposta permanência como tradição, conjunto de valores (incluindo a concorrência de mercado) e religião, por oposição ao igualitarismo.

Isso não impede que o neoliberalismo sinta necessidade de encarnar esse inimigo em diversas figuras, adaptadas a cada situação. Trata-se de uma segunda identificação que opera o que se poderia chamar de instanciação (ou exemplificação) da primeira identificação pela oposição à civilização (hoje, por exemplo, vemos a inimização de minorias de gênero e raciais).

No caso do Chile do início dos anos 1970, a junta militar identificou o “marxismo” ou o “comunismo” como um inimigo mortal da nação que devia ser combatido sem piedade, não sem um interesse puramente político pelo conteúdo da “doutrina”.8 Essa segunda identificação, longe de ser secundária, é essencial para a construção discursiva do inimigo. O seu fracasso compromete a primeira identificação. E quanto ao momento em que a revolta irrompe em 2019?

A declaração de estado de guerra interna em 20 de outubro, até mesmo em seus termos e além da circunstancial dramatização retórica, é significativamente constrangedora: se estamos em guerra contra “um inimigo poderoso e perigoso”, como diz o presidente, que rosto tem esse inimigo que está por trás dos tumultos de 18 de outubro? Podemos equiparar os jovens de 15 a 18 anos que bloquearam o metrô e atacaram bancos e lojas de departamento com o inimigo de sempre, o “marxismo” e o “comunismo”? Devemos culpar uma conspiração arquitetada no exterior?

A pedido do governo, e com base em um exame das redes sociais, uma agência privada conclui que o movimento foi organizado por “mapuches treinados por Cuba e Maduro”. A direita chega a ponto de recorrer ao termo “Chilezuela” para denunciar o risco de um regime autoritário no estilo venezuelano. As palavras de Piñera, entretanto, são escolhidas de forma a sugerir que esse inimigo é fundamentalmente sempre o mesmo: aquele que ataca a propriedade privada e o Estado.

Mas essa retórica do governo é vazia e sem qualquer credibilidade, precisamente porque não consegue dar um rosto ao inimigo, ou seja, instanciar o inimigo civilizacional em uma figura concreta, tangível a todos. O que se segue mostra até que ponto essa incapacidade é sintomática do completo isolamento político de Piñera.

A atitude dos partidos políticos

A maioria dos partidos políticos, inclusive os da esquerda tradicional, adota uma atitude conservadora, manifesta no lema de “apelo à ordem”. Os partidos da Concertação – PS, DC e PPD –, assim como o Partido Radical (PR), condenam as ações de bloqueio do metrô. Sua mensagem para os jovens amotinados é invariável e pode ser resumida da seguinte forma: “Deixem-nos cuidar disso, nós que somos políticos profissionais”. As coisas começam a mudar com a grande manifestação de 25 de outubro, que reúne um milhão de pessoas em Santiago. Desse dia em diante, até mesmo a direita passa a se juntar ao movimento, incluindo a Unión Demócrata Independiente (UDI), partido fundado em 1987 por Jaime Guzmán, o pai da Constituição de 1980.

Qual é a atitude das outras formações à esquerda das forças da Concertação? Elas são essencialmente o Partido Comunista (PC) e o Frente Amplio (FA). Na pessoa de Camila Vallejo, porta-voz do movimento estudantil em 2011 e deputada desde 2014, o PC apoia o movimento desde o início e se organiza para tentar aprovar leis a favor do trabalhador, contra o capital (em particular, aumentos salariais, redução da jornada de trabalho para 40 horas e fortalecimento do papel dos sindicatos).

O Frente Amplio não é um partido político em sentido estrito. É uma formação recente (fundada em 2016) que reúne vários pequenos partidos em uma coalizão.9 Surpreso com a amplitude da mobilização, ele a apoia, mas é em seguida cindido por um debate interno sobre a legitimidade da violência: o uso de violência física pelos jovens que compõem a linha de frente é justificável, ou deve ser condenado, descolando-se, ao mesmo tempo, da atitude conservadora dos partidos da Concertação? O fato de o debate se concentrar nessa questão da legitimidade da violência, enquanto a repressão dos carabineros se abatia brutalmente sobre o movimento,10 diz muito sobre a hesitação e a debilidade das posições do Frente Amplio nos primeiros dias do levante.

Aos olhos de alguns ativistas da Izquierda Autonoma (IA),11 não há tarefa mais urgente do que instalar a revolta a longo prazo estabelecendo um ponto de confronto político com o governo. Eles publicam uma série de textos sobre o movimento, inclusive, em 8 de novembro, um documento de orientação intitulado “Pondo fim à Constituição de 1980, o desafio de superar a revolta”. Nesse título, a superação da revolta deve ser entendida como uma superação da ilusão de uma retomada permanente e indefinida da mobilização, ao ritmo de uma sexta-feira por semana, uma retomada intermitente que condenaria à exaustão e à derrota.

Uma revolução popular

Para entender essa percepção da situação, é preciso considerar um dado da história nacional que assombra a memória de centenas de milhares de chilenos: a repressão do movimento operário e popular pelo Exército não começou em setembro de 1973, já tinha se abatido sobre os camponeses que foram trabalhar nas minas do norte do país, em Antofagasta e Iquique, a partir do final do século XIX. Em 1890 e em 1898-1903, as greves nas minas de salitre de Iquique foram duramente reprimidas pelo Exército e pela Marinha, e assim foi novamente em 1906 e 1907, quando as greves se multiplicaram por todo o país, estendendo-se até a região de Iquique.

O massacre de Santa María foi o cúmulo: os mineiros e suas famílias, entre mil e três mil pessoas, foram mortos pelo Exército na escola e nas ruas de um vilarejo.12 Assim, quando Piñera decide enviar veículos blindados para patrulhar as ruas e assustar os manifestantes, ele desperta velhos traumas, e não apenas os da geração dos anos 1970, que vivenciou o golpe de Estado de Pinochet. O que está em jogo é a historicidade do trauma como o “traço psíquico de um evento trágico”,13 o que está muito longe de uma suposta constância insensível às variações da história. Esse traço volta a assombrar o presente em outubro de 2019, mas não causa uma paralisia da ação coletiva, muito pelo contrário.

De nada adianta: com o passar dos dias, o “turbilhão do Outubro Chileno” atinge setores cada vez mais amplos da sociedade. Desde os primeiros dias, as feministas desempenham um papel decisivo, situando-se como protagonistas. Em 25 de outubro, na Plaza de la Dignidad, em Santiago, uma enorme manifestação reúne um milhão de pessoas. É nessa mesma praça que a bandeira mapuche é hasteada no topo da estátua do general Baquedano, um símbolo imortalizado em uma foto que instantaneamente entrou para a história: esse general se destacara na guerra contra os mapuches no final do século XIX.

Nesse fenômeno, destaca-se o papel dos cabildos, que surgem em função do movimento e de sua expansão. A instituição do cabildo, responsável pela administração urbana e herdada da Castela medieval, é muito antiga no Chile. Em situações de crise, essa assembleia é aberta a todas as pessoas notáveis.14 Mas o Outubro Chileno lhe confere outro significado, radicalmente democrático: o de uma assembleia autoconvocada e aberta a todos os cidadãos de um bairro ou localidade, na qual prevalece a prática da deliberação coletiva.

A composição social dessas assembleias indica também algo significativo: elas incluem agentes comunitários, feministas, ativistas dos direitos dos animais, ativistas dos direitos das crianças, trabalhadores da educação e trabalhadores têxteis. Aí, mais uma vez, verifica-se até que ponto o renascimento de uma forma antiga, longe de condená-la à repetição, pode significar uma reapropriação inventiva que lhe dá um novo conteúdo.

Sem dúvida, por tudo isso, em poucos dias, o movimento do Outubro Chileno assume o caráter de uma revolução. Não queremos dizer, com esse termo, tomada do poder do Estado por um partido à frente de uma insurreição armada. Por mais clássico que seja, esse significado exagera a centralidade do Estado e, por essa razão, deixa escapar o essencial: a capacidade da sociedade de se transformar por si mesma.

Como Castoriadis escreve, “revolução não é somente uma tentativa explícita de reinstituir a sociedade. A revolução é essa reinstituição por meio da atividade coletiva e autônoma do povo ou de uma grande parte da sociedade”.15

Em outras palavras, “revolução” é, antes de tudo, um movimento de autoinstituição da sociedade. No exemplo chileno, essa contestação da sociedade instituída foi feita em nome de um imaginário instituinte que bebe em grande medida nas fontes da democracia. A centralidade rapidamente adquirida pela demanda por uma nova Constituição e, portanto, pela revogação da Constituição de 1980 é um testemunho da vitalidade desse imaginário coletivo.

O fato de essa contestação ter levado apenas à criação de uma nova instituição efêmera, a Assembleia Constituinte (julho de 2021 a julho de 2022), e de um ciclo político ter se encerrado com a vitória da rejeição da proposta de uma nova Constituição (o Rechazo), em 4 de setembro de 2022, não justifica o abandono do termo “revolução”. O sentido mais amplo que extraímos da definição de Castoriadis (“movimento de re-instituição da sociedade”) não é um sentido historiográfico, mas um sentido político, que define um processo não em termos de seu resultado, mas em termos de seu significado.16

O primeiro objetivo deste livro é inscrever essa revolução na história chilena, não para delimitar seu alcance ou reduzi-la a uma falsa continuidade, mas, ao contrário, para compreender melhor sua dimensão de ruptura, constitutiva de qualquer revolução digna desse nome.

Ao mesmo tempo, este livro tem outro objetivo. É claro que não se trata de transpor as lições do Outubro Chileno para outras situações nacionais. Evitaremos, portanto, a tentação de considerar esse movimento como um modelo a ser seguido (por exemplo, aplicando irrefletidamente a exigência de uma Assembleia Constituinte a situações nacionais muito diferentes).17

Entretanto, independentemente da diversidade de situações nacionais, a esquerda enfrenta hoje múltiplos desafios, alguns deles, não menos importantes, de natureza estratégica.

A esse respeito, o exemplo do Chile é singular, pois oferece um valioso campo de reflexão. A ilusão do “pós-neoliberalismo” (rótulo confuso usado para descrever Chávez, Lula, Morales e Kirchner, entre outros) na América Latina deve dar lugar a uma visão mais lúcida: o populismo autoritário (do qual Maduro é uma versão ditatorial) e a “democracia hegemônica”,18 encarnada por Andrés Manuel López Obrador, longe de serem alternativas genuínas ao neoliberalismo, como alguns na Europa ainda gostam de pensar, tendem, ao contrário, a reforçá-lo. A situação na América do Norte e na Europa enseja um diagnóstico semelhante: globalistas e nacionalistas parecem ser duas versões complementares do neoliberalismo.

A singularidade do Chile que se inventou na revolta consiste em seu anseio por experimentar uma ruptura com o neoliberalismo globalista e o populismo autoritário em nome da democracia. Só por isso, merece toda a nossa atenção.

*Pierre Dardot é filósofo, pesquisador da Unversidade de Paris-Nanterre. É autor, entre outros livros, com Christian Laval, de A nova razão do mundo (Boitempo).

Referência


Pierre Dardot. A memória do futuro. (Chile 2019-2022). Tradução: Clarissa Penna. Campinas, Editora da Unicamp, 196 págs. [https://amzn.to/4caQR09]

Notas


  1. Em outubro de 2019, o salário mínimo real, aquele de mais ou menos metade da população ativa, era de 301 mil pesos. Insistimos no fato de que se trata aqui do valor de dois bilhetes de metrô por dia, uma ida e volta entre a casa e o local de trabalho, e não de uma tarifa mensal.
  2. Trata-se claramente de uma aplicação da política do “empurrãozinho” (nudge) elaborada pelos partidários do “paternalismo libertário”.
  3. Não são 30 pesos, são 30 anos!
  4. O metrô de Santiago é uma empresa estatal.
  5. Na mesma entrevista, essa figura afirma, de forma leviana: “As pessoas são diferentes, os chilenos são muito civilizados, e a única coisa que tenho visto é uma grande rejeição a esse tipo de atitude. […] As pessoas têm bom senso, esse protesto não teve a adesão da população”.
  6. Ver Pierre Dardot et al. Le choix de la guerre civile. Une autre histoire du néolibéralisme. Montreal, Lux,  2021, cap. 5 (Série Futur Proche).
  7. Ver Carl Schmitt. La notion de politique. Théorie du partisan. Paris, Flammarion, 1992
  8. Em Nocturne du Chili, Roberto Bolaño (Paris, Christian Bourgois, 2002 [2000], pp. 112- -116) descreve um encontro entre generais da junta e o padre Ibacache, membro do Opus Dei encarregado de lhes “dar algumas lições de marxismo”. Mas o marxismo que obceca os generais é menos o de Marx do que o de Marta Harnecker, chilena ligada ao regime castrista e autora de um livro intitulado Conceitos elementares do materialismo histórico (1969), ou seja, o marxismo adaptado à situação latino-americana pós-1968. Por outro lado, sabemos que Pinochet estava mais interessado em personalidades históricas como Franco ou Napoleão do que em obras teóricas.
  9. Entre eles, Revolución Democrática (RD), Convergencia Social (CS), Comunes, Partido Humanista, Partido Liberal (PL).
  10. Em dezembro de 2019, o escritório chileno do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos constatou que, em dois meses, os carabineros haviam sido responsáveis por pelo menos 113 casos de tortura, 24 casos de violência sexual e 11 casos de “privação arbitrária da vida e outras mortes ilegais envolvendo agentes do Estado”. Além disso, 350 pessoas sofreram ferimentos faciais graves, o que prova que “armas não letais foram usadas de maneira inadequada e indiscriminada, violando os princípios internacionais” (Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. “Informe de la Oficina de Derechos Humanos de la ONU sobre la crisis en Chile describe múltiples violaciones de derechos humanos de Carabineros y hace un llamado a reformas”, 13 de dezembro de 2019). E trata-se de um número subestimado.
  11. Em 8 de novembro, esse grupo estaria integrado ao partido Comunes. O termo “autonomia” deve ser entendido aqui não no sentido da autonomia do movimento italiano de 1973-1977, mas no sentido de autonomia política em relação ao sistema da Concertação.
  12. A memória dessa terrível repressão é preservada em uma obra musical famosa na interpretação do grupo Quilapayún, a cantata “Santa María de Iquique”.
  13. Hervé Mazurel. L’inconscient ou l’oubli de l’histoire. Profondeurs, métamorphoses et révolutions de la vie affective. Paris, La Découverte, 2021, p. 447 (Coleção Écritures de l’Histoire).
  14. Assim, é um cabildo abierto, uma assembleia aberta a todos os notáveis, que se reúne em 18 de setembro de 1810, proclama a liberdade de comércio do Chile com todos os países do mundo e convoca o primeiro Congresso Nacional. E é o povo de Santiago, reunido em um cabildo abierto, que nomeia O’Higgins “Diretor Supremo da Nação” em 1817.
  15. Cornelius Castoriadis. Les carrefours du labyrinthe, t. 3: Le monde morcelé. Paris, Seuil, 2000 [1990], p. 202 (Coleção Points Essais).
  16. A principal falha nas definições historiográficas é caracterizar um processo pelo resultado que ele alcançou: Sergio Grez considera, portanto, que o movimento que surgiu em 18 de outubro não foi uma revolução política, que implicaria uma “mudança fundamental na estrutura do poder”, nem uma revolução social, que implicaria uma “profunda transformação das relações sociais” (entrevista com Sergio Grez conduzida por Pablo Parry, “Chile. ‘A rebelião popular deve aproveitar esses meses para avançar em direção a uma base mais sólida de unidade política’”, À l’encontre, 15 de abril de 2020). Do ponto de vista de seu significado, contudo, esse movimento foi inegavelmente uma revolução.
  17. No caso do Chile, é preciso lembrar que essa demanda surgiu do próprio movimento social, não tendo nada a ver com uma palavra de ordem artificialmente engendrada por dirigentes de um partido.
  18. A expressão designa uma democracia que pretende modificar a estrutura do Estado em um sentido autoritário. Ver Alain Rouquié. Le siècle de Perón. Essai sur les démocraties hégémoniques. Paris, Seuil, 2016. (O autor agradece a Guillaume Boccara por fornecer essa referência.)

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