A mídia golpista ainda está aí!

Imagem: Nick Rtr
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Por LAURO MATTEI*

A Folha de São Paulo festeja “Ainda estou aqui”, enquanto segue com o comportamento típico da mídia golpista ao clamar por boicote ao governo através de argumentos que não se sustentam

No domingo à noite (02.03.25) milhares de pessoas foram às ruas celebrar o prêmio do Oscar recebido pelo filme brasileiro “Eu ainda estou aqui”, considerado pela Academia de Cinema Norte-Americana como o melhor filme internacional produzido em 2024. Talvez parcelas importantes dessas pessoas sequer tenham assistido ao filme e, pior ainda, muitas delas sequer sabem algo a mais sobre o tema central dessa obra de arte. E, mais ainda, é bastante provável que muitas dessas pessoas nos últimos anos podem ter feito coro àqueles grupos sociopatas que foram às ruas defender a volta da ditadura militar.

Em grande medida, tais comportamentos podem estar atrelados ao método com que a grande mídia, especialmente aquela que apoiou o golpe militar de 1964, divulga e socializa as informações. Destaque aqui vai para o conglomerado midiático do Grupo Globo e também para o grupo empresarial Empresa Folha da Manhã (detentora da Folha de São Paulo, Datafolha, Portal Uol, Pague Seguro etc.). Embora não seja o foco desse artigo, registro apenas que a Globo escalou para a cobertura do Oscar a jornalista Maria Beltrão, filha de Hélio Beltrão, ex-ministro da ditadura e signatário do AI 5 de 1968. Nenhum problema ela ser filha desse senhor. O problema foram seus comentários eivados de inverdades quando se trata do Presidente Lula e de seu governo.

O foco desse artigo recai sobre a postura do Grupo Folha no dia seguinte ao prêmio conquistado pelo filme brasileiro (03.03.25). Em editorial do jornal Folha de São Paulo, intitulado “Benefícios tributários precisam ser mais transparentes”, apresenta-se um conjunto de afirmações que precisam ser problematizadas, conforme faremos na sequência.

Afirma-se que os incentivos fiscais devem chegar a 4,8% do PIB em 2025, implicando no montante de R$ 544 bilhões. Portanto, “é preciso fazer cortes nos gastos ignorados pelo Governo Lula” porque o governo só tem em mente “o potencial arrecadatório”. Nessa afirmativa está implícita claramente aquilo que setores abastados da sociedade vêm defendendo há tempos: o governo atual precisa cortar gastos sociais, especialmente de programas sociais como o Benefício da Prestação Continuada (BPC) e o Bolsa Família.

Afirma-se, ainda, que “os incentivos carecem de satisfatória avaliação” e que “é preciso discutir a eficiência, os custos e as vantagens de cada um deles”, destacando-se a existência de “caixas pretas, como a Zona Franca de Manaus e o SIMPLES”. Na verdade, existem dezenas de avaliações sobre o programa de incentivos fiscais que está em curso no país desde 2012. O problema é que grande parte dessas avaliações caminha no sentido contrário daquele que o editorial da FSP preconiza. Vejamos alguns dados extraídos de estudo que publiquei recentemente sobre o assunto[i].

Deve-se recordar que esses incentivos fiscais conhecidos como “programa de desoneração da folha de pagamento” tinham como objetivo estimular a geração de emprego no país. Resumidamente, a maioria dos estudos realizados sobre os resultados desse programa revelaram que a narrativa dos setores empresariais que ganhou espaço recentemente não se sustenta quando se analisa a trajetória de longo prazo do programa, uma vez que os principais setores beneficiários não são os maiores geradores de emprego no Brasil.

Além disso, dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS-MTE), relativos ao período integral dessa política que entrou em vigor a partir de 01.01.2012 revelam um cenário totalmente oposto ao lobby que se formou no Congresso Nacional nos últimos anos em relação ao assunto[ii].

Apresentamos um quadro síntese do programa em termos de geração de emprego. Quanto ao primeiro período (2011-2014), observa-se que em termos absolutos ocorreu uma expansão de 174.942 postos de trabalho, sendo que oito setores reduziram seus níveis de emprego, enquanto outros nove ampliaram. Mesmo assim, o percentual de participação dos setores desonerados no total do país caiu de 16,5% (2011) para 15,8% (2014). Registre-se que esse foi um período de grande expansão do emprego, uma vez que ao final do primeiro mandato da Presidente Dilma o país atingiu uma de suas mais baixas taxas de desemprego.

Postos de trabalho gerados pelos 17 setores com desoneração da folha entre 2012 e 2021, segundo a RAIS/MTE

Fonte: RAIS- Elaboração: NECAT* percentual do setor dentre os 17 setores** percentual dos 16 setores no país

No período 2014-2021 notou-se uma redução de 873.943 postos de trabalho em relação ao montante existente em 2014. Com isso, o percentual de participação desses setores no emprego do país se reduziu para 14,3%, dando continuidade ao que foi observado no período anterior. Em termos setoriais, nota-se que 12 setores sofreram reduções, enquanto apenas 5 aumentaram seus níveis de emprego.

Analisando-se o período completo de vigência da política de desoneração da folha, à luz dos dados disponibilizados pela RAIS, verifica-se que o percentual de participação desses 17 setores no conjunto do emprego gerado no país caiu de 16,5% (2011) para 14,3% (2021). Em termos absolutos, verifica-se que ao longo da série temporal considerada ocorreu uma redução de 699.022 postos de trabalho, sendo que apenas seis dos 17 setores desonerados elevaram seus níveis de emprego em 2021, comparativamente ao ano de 2011.

Em síntese, pode-se resumir esse movimento no mercado de trabalho desses dezessete setores da forma que segue: em apenas três setores (transportes rodoviários de cargas, TI e call center) houve expansão expressiva de postos de trabalho, enquanto que em outros cinco setores (construção civil, construção e obras de infraestrutura, confecções e vestuário, transportes rodoviários coletivos e  fabricação de veículos a carrocerias) ocorreu uma retração expressiva do volume de emprego em 2021 comparativamente ao nível existente em 2011. Os demais setores permaneceram praticamente no mesmo patamar ao longo de todo período de vigência do programa.

“Como o Governo Lula não entra seriamente no debate político e nada faz para combater esses incentivos fiscais, é difícil obter apoio da opinião pública”.

Aqui se observa a tentativa de culpabilizar o governo atual como forma de esconder os verdadeiros interesses envolvidos no assunto. Senão vejamos: em 30.05.2018 foi promulgada a Lei 13.670 que prorrogou a política que estava em curso até 31.12.2020, sendo que a partir de tal data todos os setores deveriam voltar a contribuir integralmente com a alíquota da Previdência Social. Tal política não sofreu nenhuma alteração durante o Governo Bolsonaro, o qual fez prorrogações sucessivas desse benefício, inclusive estendendo o mesmo para além do término de seu mandato, ou seja, para 31.12.2023.

Antecipando-se ao fim da política de desoneração da folha previsto para ocorrer em 31.12.2023, lideranças dos setores empresariais beneficiados retomaram seus lobbies junto aos deputados e senadores ainda em meados de 2023. A partir daí o Senador Efraim Filho (União Brasil-PB) apresentou, em julho de 2023, o Projeto de Lei (PL 334/23) propondo a prorrogação das isenções em vigor naquela data até 31.12.2027. E a partir de 01.08.23, com uma celeridade nunca vista, o referido projeto passou a tramitar por todas as comissões do CN sempre em regime de urgência. Com isso, o mesmo foi aprovado ainda em agosto de 2023.

Enviado para sanção presidencial, tal projeto foi vetado integralmente pelo Presidente Lula em 23.11.2023. Segundo a Presidência da República, o governo considerou o projeto inconstitucional porque ele não apresentava os impactos financeiros da renúncia fiscal (desoneração da folha das empresas contempladas). Com isso, o assunto retornou ao Congresso Nacional para analisar os vetos presidenciais. Em reuniões realizadas no dia 14.12.2023, tanto no Senado da República quanto na Câmara dos Deputados, todos os vetos do Presidente foram derrubados por ampla maioria nas duas casas parlamentares. A partir daí o assunto virou a Lei Ordinária n. 14.784, publicada no Diário Oficial da União em 28.12.2023.

A reação do governo foi imediata. Em 29.12.2023 foi lançada uma Medida Provisória (MP 1202/23) com o objetivo de reduzir a perda de receita e, com isso, atingir a meta de déficit zero das contas públicas. Para tanto, a MP alterava as regras de desoneração que tinham sido aprovadas pelo CN, com destaque para: a)A MP 1202 propôs que a partir de abril de 2024 vigorasse uma alíquota menor somente para um salário mínimo por trabalhador. Registre-se que, embora a MP entre imediatamente em vigor após ser editada, algumas mudanças propostas só passariam a ter validade a partir de 90 dias após a publicação da mesma; b)A revisão do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE) criado em 2021 para socorrer esse setor com desoneração total de impostos durante a pandemia, sendo que tal programa deveria durar apenas dois anos. Todavia, em meados de 2023 o CN prorrogou essa política até o final de 2025.

Diante das repercussões políticas negativas por parte de segmentos do CN, o governo editou uma nova medida (MP 1208/24) em 28.02.2024 revogando a reoneração dos 17 setores prevista pela MP 1202/23. Com isso, esses setores voltaram a ser desonerados conforme aprovado pela Lei 14.784/23. Essa decisão de retroceder do governo derivou de acordos celebrados com lideranças políticas do CN, as quais impuseram suas forças ao governo, tornando-o quase que refém dos interesses desses segmentos majoritariamente identificados com as forças políticas de base conservadora que atualmente dominam o CN.

Reduzir essa captura de recursos exige lideranças políticas com clareza de propósitos, atributo ausente no Governo Federal de Hoje.

A parte final do editorial é uma chamada ao boicote explícito ao atual governo, inclusive com argumentos que não se sustentam, conforme mostramos anteriormente. Esse comportamento é típico da mídia golpista, cujos exemplos são extensos desde o golpe jurídico-parlamentar de 2016.

Portanto, e diferentemente da premissa golpista do editorial da Folha de São Paulo, somos categóricos em afirmar que a atual política de desoneração da folha não cumpriu seus objetivos centrais (expandir o emprego e a massa salarial, elevar a competitividade da economia e melhor sua inserção internacional) e, na essência,  acabou se transformando em mais um mecanismo perverso de expansão da desigualdade num país historicamente marcado por extremas desigualdades sociais, uma vez que transfere renda do conjunto da sociedade para pequeno grupo de setores privilegiados.

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

Nota


[i] Para maiores detalhes consulte: Desoneração da folha de pagamento no Brasil: uma política para transferir renda para setores econômicos privilegiados. Revista RBEST-Unicamp. https://doi.org/10.20396/rbest.v6i00.18750

[ii] Atualmente são 17 setores econômicos beneficiados pela política de incentivo fiscal visando à geração de emprego.

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