Por JUAREZ GUIMARÃES*
Sob o impacto da maior pandemia da história do Brasil e de um verdadeiro genocídio do povo, as forças de esquerda decidem trilhar caminhos próprios e separados nas eleições municipais
A escandalosa prioridade aos interesses partidários e particularistas desvinculados da construção de uma alternativa democrática e popular à crise do país no primeiro turno das eleições de 2020 expressa a minoridade, política e moral, das esquerdas brasileiras. É preciso uma iniciativa nacional no sentido de retomar o curso possível e necessário da unidade sob o risco de um grande desastre.
É injusta e parcial a crítica que atribui ao PT a responsabilidade pela quase generalizada ausência de unidade das candidaturas de esquerda e centro-esquerda no primeiro turno das eleições de 2020 nas principais capitais do país. Esta responsabilidade deve ser certamente compartilhada com os setores sectários do PSOL, majoritários em centros importantes, com a prioridade do PC do B em, ao mesmo tempo, pretender reforçar sua própria legenda e construir alianças com a direita neoliberal, com a postura nacionalmente difusa do PSB e, certamente, com a atitude em busca da identidade de centro-direita de Ciro Gomes.
No caso em especial do Rio de Janeiro, segundo o próprio Freixo, o PT teve desde o início uma atitude impecável no sentido de construção da unidade com o PSOL, oferecendo a histórica liderança de Benedita Silva como vice. Foram três pré-candidaturas internas ao PSOL que fizeram a disputa com a liderança pública de Freixo, contra a unidade com o PT que levaram-no a desistir da única candidatura potencialmente competitiva para ser vitoriosa, em uma dinâmica frentista , na disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro.
Em Porto Alegre, onde o PT construiu publicamente a chapa que faz o encontro de duas importantes lideranças públicas nacionais, Manoela D´Ávila e Miguel Rossetto, a unidade esbarrou sempre com a postura ultra-sectária da maioria local do PSOL, cuja principal expressão pública é Luciana Genro. Em Fortaleza, contra a maioria do Diretório Municipal do PSOL, e por poucos votos, a partir da posição sectária do deputado estadual do PSOL, foi derrotada a proposta de alianças com o PT. Apesar da posição unitarista da maioria nacional do PSOL, expressando as posições de Guilherme Boulos e Juliano Medeiros , o PSOL só apoia uma candidatura do PT em Recife, a de Marília Arraes.
Já o PC do B tem conjugado, a partir das posições de sua nova direção nacional, com destaques expressivos para a liderança do deputado Orlando Silva e do governador do Maranhão, Flávio Dino, uma estratégia de candidaturas próprias no sentido de formar legenda para eleição de vereadores e uma proposta de aliança, cuja centralidade é unir forças com a direita neoliberal em uma frente chamada de ampla. Em entrevista recente à revista Veja, Orlando Silva chegou a afirmar que PT e PSOL pertencem ao passado da política brasileira! Parece também operar em um vazio democrático, a proposta do governador Flávio Dino em formar no futuro com o PSB, PDT e outras forças uma espécie de um “novo PMDB” na política brasileira.
Se os próprios partidos da esquerda brasileira não conseguem se unificar, a tendência dos partidos de centro-esquerda como o PSB e PDT, em sua diversidade regional, é caminharem para o fracionamento, como vem ocorrendo desde as eleições de 2014. Em particular, o PDT sob a liderança de Ciro Gomes tem assumido reiteradamente posições visceralmente agressivas às esquerdas, em particular em relação à liderança de Lula e ao PT.
Esta dinâmica avessa à unidade é, assim, não exclusiva do PT, mas certamente resultante da convergência de várias dinâmicas particularistas e sectárias que vêm prevalecendo até agora, com poucas e honrosas exceções. A responsabilidade do PT como maior partido parece mais explicita no caso de São Paulo, onde após a não candidatura competitiva de Haddad, o partido fechou-se em uma candidatura própria, sem aura e localista, como alternativa à chapa Boulos\Erundina.
A resultante até agora é que um amplo espectro de intelectuais, ativistas e lideranças públicas, no meio artístico, tradicionalmente apoiadoras de candidaturas petistas, têm afirmado a sua preferência pela chapa do PSOL. Em Belo Horizonte, de forma grave, todo um processo virtuoso de construção pública e programático de unidade entre PSOL, PT e PC do B e outros partidos do polo de esquerda foi quebrado por uma ação direta da maioria da direção nacional do PT, cristalizando uma situação em que PSOL, PT e PC do B apresentam-se no primeiro turno com candidaturas próprias e muito provavelmente minoritárias.
Assim, apenas em Belém do Pará, onde a candidatura do PSOL à prefeitura, do ex-prefeito petista Edmilson Rodrigues, aparece como potencialmente vitoriosa, conseguiu-se formar um amplo leque de alianças, unificando o PT na vice, PC do B, PSB e PDT.
Quando todo o campo conservador e da direita neoliberal se unificou em torno a um programa de ruptura com a Constituição de 1988 e uma refundação neoliberal do Estado brasileiro, organizando o processo de impeachment sem caracterização de crime de responsabilidade da presidenta Dilma Roussef, uma parte da esquerda brasileira recusou-se a constituir uma frente das esquerdas em defesa da democracia. Lideranças sectárias do PSOL recusaram-se a ir às ruas em defesa da democracia e até apoiaram publicamente a Operação Lava-Jato. O cálculo assombroso era de que, com a destruição do sistema político corrompido do qual o PT e PC do B fariam parte, emergiria uma nova liderança de massas em torno do PSOL. O PSTU, que manteve esta posição, sofreu grave cisão e praticamente terminou o seu curso de corrente há décadas e estruturalmente quase marginal na luta de classes.
Veio, então, todo o processo que culminou com o julgamento, a condenação e a prisão de Lula. A inesquecível cena histórica de Lula, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, levantando as mãos de Boulos e Manuela D,Ávila, parecia sinalizar um novo horizonte de unidade. No entanto, mesmo com Lula preso, o PSOL manteve uma candidatura própria nas eleições de 2018 e, ainda, sob a pressão da ala sectária do partido, que o acusava de ter conciliado com o PT. O segundo turno das eleições presidenciais foi certamente, no contexto, um momento virtuoso de unidade diante da iminente vitória eleitoral de Bolsonaro.
Nem o trauma do assassinato de Marielle Franco e uma retomada sem precedentes do número de assassinatos de simpatizantes do PT, de lideranças dos sem-terra, quilombolas e dos povos indígenas deu força à unidade política. Mesmo assim, não prosperou a idéia de uma unidade estratégica e programática das esquerdas brasileiras, limitando-se à unidade de ação parlamentar, encontros nas fundações partidárias, nas frentes de massa.
O governo Temer, com sua maioria parlamentar, começou a aprovar leis e PECs, como a PEC-95, que atingiam o núcleo histórico mesmo dos direitos dos trabalhadores brasileiros e o sistema de direitos sociais previstos na Constituição de 1988. Nem assim, a unidade política da esquerda e centro-esquerda fez avanços substantivos, em particular com a postura agressiva e destrutiva de Ciro Gomes.
Veio, por fim, a eleição de Bolsonaro, unificando forças neo-fascistas e todo o neoliberalismo brasileiro no segundo turno. Mesmo assim, Ciro Gomes negou apoio à candidatura Haddad &Manuela.
Agora, em plena disputa política eleitoral no segundo ano do governo Bolsonaro, sob o impacto da maior pandemia da história do Brasil e de um verdadeiro genocídio do povo brasileiro, as forças de esquerda decidem trilhar na maior parte das capitais do país caminhos próprios e separados nas eleições municipais!
Nunca se usou este termo – minoridade política e moral – para qualificar a postura histórica das esquerdas brasileiras em meio a uma crise, cujo potencial de devastação é seguramente maior do que aquele de 1964. Ele é formulado para designar não um erro tático ou estratégico, fruto de uma avaliação incorreta de uma dada conjuntura, mas para designar a imaturidade, a ausência de estatura e densidade política para enfrentar uma crise histórica desta envergadura. Porque é óbvio que nenhuma das forças de esquerda têm, por si só, capacidade para abrir um caminho de enfrentamento e construção de alternativa à crise. Certamente, a unidade política das esquerdas é condição incontornavelmente necessária – embora certamente não suficiente – para superar a crise brasileira.
Sem esta unidade política das esquerdas, capaz de polarizar as centro-esquerdas, a força de convocação e de voz pública, de criação de energias, de polarização política com o bolsonarismo e o amplo arco das alianças neoliberais fica gravemente diminuído em um momento decisivo. É muito provável que, na maioria das capitais, as forças desunidas das esquerdas não consigam sequer ir ao segundo turno das eleições de 2020.
Por isso, é insuficiente falar de minoridade política: a priorização de interesses partidários particularistas, neste contexto de extrema dramaticidade, expressa uma minoridade moral das maiorias partidárias, nacionais ou locais, que conduzem os processos eleitorais em relação às suas responsabilidades históricas diante das tradições de luta e de direitos do povo brasileiro.
Esta desunião política das esquerdas brasileiras tem um impacto direto na conjuntura política e na correlação de forças nacional: ela trava o processo da luta democrática, que tem no tardiamente iniciado movimento “Fora Bolsonaro”, a sua centralidade. A luta democrática depende fundamentalmente da unidade das esquerdas para ganhar dinamismo, em um quadro em que todo o campo neoliberal defende o mandato de Bolsonaro e a continuidade do programa de refundação do estado brasileiro, apesar de suas disputas e divergências internas.
De fato, já estamos em um impasse do movimento democrático “Fora Bolsonaro”, após um tardio início promissor, no sentido de polarizar a conjuntura brasileira no segundo semestre. Mas o risco hoje é exatamente o contrário: um governo Bolsonaro renovado em sua capacidade de polarização, recomposta uma unidade programática do campo neoliberal, disputando entre si o protagonismo, alijando as esquerdas das disputas centrais.
Houve, de fato, dois grandes movimentos políticos nos últimos dias. O primeiro deles foi uma recomposição de forças do governo Bolsonaro, após a sua situação de maior crise, com a cisão Moro, a prisão de Queiroz, as tensões em crescendo com o STF e as tendências de queda de sua popularidade. O episódio da renegociação com a plataforma radical neo-liberal de Guedes, em sua relação com as demandas e expectativas dos setores financeiros, a neutralização dos conflitos de escândalo do ex-Ministro da Educação, a prisão domiciliar de Queiroz e o alívio das pressões judiciais sobre Flávio Bolsonaro, a redução das investidas públicas de confrontação com as instituições sugerem uma certa estabilização de um centro estratégico de poder do governo Bolsonaro, certamente apoiado em sua base militar. Mas certamente, o grande fator favorável a esta reaglutinação de forças, foi a apropriação por Bolsonaro do imenso impacto social do auxílio emergencial, muitas vezes superior e concentrado no tempo em relação àquele do Bolsa-Família.
O segundo grande movimento político foi das forças neoliberais, que disputam com o governo Bolsonaro a hegemonia do processo. A recente entrevista de Rodrigo Maia, afirmando escandalosamente que os crimes cometidos pelo governo Dilma foram muito mais graves do que aqueles pretensamente cometidos pelo governo Bolsonaro, veio consolidar um posicionamento dos governadores do PSDB, de Fernando Henrique, da Rede Globo e da Folha de S. Paulo, em defesa do mandato de Bolsonaro frente aos encaminhamentos políticos pelas esquerdas e centro-esquerdas em favor de seu impeachment. Sem este movimento político, de reunificação do programa neoliberal, não teria sido possível a dinâmica de recomposição do governo Bolsonaro.
Diante de um governo Bolsonaro recomposto de sua mais grave crise, de uma repactuação do programa neoliberal – que teve agora na confirmação do veto de Bolsonaro pela maioria da Câmara dos Deputados ao reajuste dos salários do funcionalismo público, antes derrotado no Senado – o seu símbolo maior, a desunião das esquerdas reforça uma ausência de capacidade de construir alternativas políticas com credibilidade e apoio social potencialmente majoritário.
Quando se luta em situações adversas, é preciso reconhecer certas situações e dinâmicas que não estão ao alcance da vontade política das esquerdas modificar, mesmo com um esforço voluntarioso e até heroico. Não é este, porém, o caso da unidade das esquerdas no plano político: este depende das forças majoritárias que dirigem os principais partidos.
Esta unidade, unificando um discurso alternativo e polarizador com a aliança neoliberal e fascista, teria certamente uma grande e importante audiência social. A liderança histórica de Lula continua sendo fundamental no plano nacional. Uma unidade das esquerdas nas disputas municipais seria decisiva para nacionalizar a disputa e disputar com o programa neoliberal. A resignação com a desunião não é, definitivamente, a melhor política neste momento.
Cada conquista da unidade partidária, mesmo sendo parcial, deve ser saudada. Unidades de programa e ações unitárias de movimentos sociais em relação a questões fundamentais podem ser desenvolvidas. Acordos de co-governança, de alianças e participações em futuros governos, com distribuição equivalente de tempos de propaganda na campanha têm amplo campo de possibilidade de negociação.
Estes esforços de convergência política poderiam repor nacionalmente o lugar das esquerdas e centro-esquerdas brasileiras na disputa de alternativas para o país. Sem este esforço, é o próprio caminho da esperança, duramente conquistado nestes anos de dramática resistência, que pode ir se fechando.
*Juarez Guimarães é professor de Ciência Política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Risco e futuro da democracia brasileira (Fundação Perseu Abramo).
Publicado originalmente no portal Carta Maior