A nave dos loucos

Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos, óleo sobre madeira, 58 cmx 33 cm, 1503-1504.
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Por JOÃO PAULO AYUB FONSECA*

A luta Antimanicomial deve ser encarada como uma espécie de âncora a impedir que os humanos todos se percam nas rotas da exclusão, à deriva

Comemorou-se no Brasil, no dia 18 de maio, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Não é de se espantar o fato de que a luta deve ser comemorada. Afinal, a loucura, a exclusão e a liberdade desde tempos imemoriais constituem uma relação agonística. O campo de batalha permanente é retratado de diversas formas pela literatura, pintura e artes plásticas. A partir desta perspectiva, a arte possui o sentido único de dizer aquilo que se esconde nos interstícios da realidade social. É este o caso particular da composição A Nave dos Loucos (1503-1504), de Hieronymus Bosch.

Muito pouco se sabe sobre a vida deste holandês que viveu entre os séculos XV e XVI, autor de pinturas tão magníficas quanto enigmáticas em sua profusão desordenada de símbolos, cores e formas oníricas. Curiosamente, ainda hoje não há entre os estudiosos que alimentam sua fortuna crítica um consenso quanto aos sentidos e significados expressos na obra. Além disso, verifica-se certa confusão na datação precisa dos quadros, sendo que apenas alguns poucos foram assinados pelo pintor. Documentos escritos revelam sua participação na Confraria de Nossa Senhora. Contudo, devido ao fato de sua pintura estar quase sempre mergulhada na construção de um simbolismo pouco evidente, tais referências, indicativas de um catolicismo praticante, dão ensejo a leituras que indicam sua aproximação com o imaginário oriundo de seitas pagãs.

A obra de Bosch suscitou uma série de interpretações extremamente valiosas, provocando o desdobramento de sua compreensão. Uma de suas destacadas leituras se fez presente na História da Loucura de Michel Foucault (Perspectiva, 2019). O livro de Foucault inscreve um dos quadros do pintor, a Nave dos Loucos, na dinâmica estrutural de um período histórico marcado pela presença repetida de expressões artísticas interessadas no registro do desvio moral de comportamento. Uma delas seria o poema satírico A nau dos insensatos, publicada na Basileia em 1494 por Sebastian Brandt, autor alemão que viveu entre os anos 1457 e 1521. Num tom crítico moralizante, a insensatez humana é denunciada em todos os níveis sociais. Não escaparam a nobreza, o vulgo, o clero e os membros das universidades.

A Nave dos loucos transformou-se em alegoria dos que viajam ou navegam pelo mar à deriva, alheios ao destino de suas embarcações. Como aponta Foucault n’A História da Loucura, a nau dos excluídos, vagando indefinidamente por rios e mares, leva embora da cidade os sujeitos indesejados. Essa viagem imprecisa representa, ainda, um rito de passagem e de purificação em que a única verdade e a única pátria destes passageiros “são esta extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer”.

Segundo o historiador da arte Ernst Gombrich (A história da arte. LTC, 1999), o destaque dado ao pintor holandês deve-se, entre outras coisas, à sua qualidade inigualável que permitiu, a partir das tradições e realizações da pintura de seu tempo, a construção de uma imagem do mundo invertida, composta por um conjunto “igualmente plausível de figuras que nenhum olho humano jamais vira”. Ainda de acordo com Gombrich, “Bosch ficou famoso por suas assustadoras representações das forças do mal”. A imagem invertida do mundo, com destaque para a presença de fantasmas do inferno mergulhados em paisagens oníricas, tem o poder de conferir representatividade aos medos que povoavam as mentes de toda sociedade. As figuras oníricas representadas por Bosch, todos os tipos de demônios encarnados em figuras meio humanas, meio animais, meio máquinas, adquirem uma função de suplementação da realidade, materializando e dando forma ao pavor que atravessava os espíritos dos sujeitos da Idade Média.

O exílio permanente da loucura ganha força expressiva no universo artístico habitado pelo pintor na medida em que revela um estranho espaço de morte e purificação. Nos quadros de Bosch a loucura está presente no avesso dos seres, como que a revelar a incompletude inerente a todos os espíritos. Assim como no poema de Sebastian Brant, na obra A nave dos loucos ninguém escapa do cortejo dos insensatos:  membros do clero embriagados e mergulhados em vícios de toda espécie, corpos seminus agarrados ao barco e uma árvore servindo de mastro ao navio – como sugere Foucault, esta seria a árvore do conhecimento. Acima do movimento caótico dos insensatos, chama a atenção um homem em trajes de louco que flutua calmamente. Nesta composição de Bosch, a insensatez joga um jogo infernal de inversões de valores e significados, conferindo, de forma irônica, um ponto de estabilidade à paisagem retratada.

A perspectiva demoníaca de Bosch desvela de um modo magistral a geografia espiritual de uma época. O navio dos insensatos exalta a face invertida dos homens. Segundo Foucault, ainda não havia sido desenvolvido um dispositivo de saber-poder destinado a silenciar sua parte obscura. A vida revelava-se num espetáculo trágico, verdadeiro beco sem saída. Formas insanas, animadas por desvios de conduta moral e/ou religiosa, habitavam o lugar da exclusão, um inevitável destino de sofrimento e danação. Nesse contexto, os loucos eram retratados como marginais lançados ao abismo de sua própria sorte.

Sobre o tão expressivo registro deste procedimento de marginalização, onde o “outro” se mostra na crueza de sua separação radical do “mesmo”, importa notar que não somente as relações que fundamentam uma certa estrutura deste “jogo de exclusão” se mantiveram com o passar dos anos. Segundo Foucault, a exclusão absoluta, a expulsão compulsória para além dos muros das cidades, um espaço de indiferenciação absoluta, desumana, anteriormente ocupado por leprosos, foi um “privilégio” desfrutado por indivíduos destituídos de uma condição mínima de cidadania nas cidades medievais europeias. Há também registros históricos de soluções caseiras, como a construção de lares especiais para aqueles considerados “loucos de casa”.

Na pintura de Bosch, a água que sustenta a embarcação desfruta de valores ambíguos. Trata-se de um domínio ao mesmo tempo incerto e movediço, mas também capaz de um papel terapêutico (vale lembrar, com Foucault, a “hidroterapia da loucura” operada pela psiquiatria nascente do século XVII). Seu aspecto impreciso exerceu importante função na construção de um imaginário da loucura no Ocidente, em oposição à terra firme e rochosa da razão. Diz Foucault:

Na imaginação ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra firme. Ilha ou continente, ela repele a água com uma obstinação maciça: ela só lhe concede sua areia. A desrazão, ela, foi aquática, desde o fundo dos tempos e até uma data bastante próxima. E, mais precisamente, oceânica: espaço infinito, incerto; figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas senão uma esteira delgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono; estradas sem caminho. A loucura é o exterior líquido e jorrante da rochosa razão. É, talvez, a essa liquidez essencial da loucura nas nossas velhas paisagens imaginárias que devemos um certo número de temas importantes: a embriaguez, modelo breve e provisório da loucura; os vapores, loucuras ligeiras, difusas, enevoadas, em via de condensação em um corpo muito quente e uma alma abrasadora; a melancolia, água negra e calma, lago fúnebre, espelho em lágrimas; a demência furiosa do paroxismo sexual e de sua fusão.

Na investida demoníaca contra um mundo apenas aparentemente ordenado segundo as regras endurecidas do ascetismo religioso, Bosch não deixa de lançar ao espaço indefinido das águas a nobreza da época e os membros do clero. No barco navega até mesmo a árvore do saber. Na confecção de um universo depravado, povoado pela gula, cobiça, avareza e luxuria, entre outros pecados capitais, tudo deve ser purificado. Apenas a figura do louco, este sim tranquilamente disposto em seu habitat natural, não estranha o descaminho e a incerteza das águas.

Ao retratar a face oprimida e os sentidos da dor dos excluídos, o artista expõe a lógica que subjaz a exclusão. É preciso saber perguntar à obra o que a dinâmica de suas cores e traços quer dizer. O gesto que consiste em lançar o outro (ou lançar-se a si mesmo) à indeterminação das águas do rio ou do mar, um gesto que conduz a uma separação/exclusão radical deste outro de um conjunto de determinações comunitárias – sejam elas geográficas, culturais, políticas ou econômicas – responde a uma função social de caráter farmacológico. Tal pressuposto baseia-se numa tese antropológica crucial para o entendimento da relação entre cultura e violência, segundo a qual toda comunidade humana possui, enquanto instituição primeira e fundamental, rituais sacrificiais de purificação. O sacrifício é, desde sempre, um ato social por excelência, um mecanismo produtor do sagrado e, num de seus sentidos que aqui nos interessa, de separação.

De acordo com René Girard em seu livro A violência e o Sagrado (Paz e Terra, 2008), a necessidade desses ritos, identificados em todas as etapas da história humana, desde seus registros mais arcaicos, deve-se a um inevitável acúmulo de tensões e violências geradas no convívio diário entre os sujeitos no interior do corpo social. A tensão decorrente de uma crescente rivalidade entre os membros de uma determinada cultura – um estado de coisas nomeado por Girard de “rivalidade mimética” – ameaça a sobrevivência de seus laços constitutivos. O ritual de sacrifício objetiva uma espécie de purificação da violência, um equilíbrio homeostático do corpo social. Verdadeiros doadores de salvação, as vítimas são sacrificadas com o objetivo de descarregar a tensão acumulada no interior da comunidade. Os “bodes expiatórios” são sempre escolhidos entre aqueles indivíduos ou grupos portadores de certo caráter diferenciador, seja um traço cultural, religioso ou mesmo traços “naturais” desviantes. A natureza “monstruosa” determina a condição de marginalidade.

A tese de Girard ganha força quando pensamos nos sistemas de exclusão presentes no interior dos estados modernos. O caso radical e paradigmático, tendo em vista sua racionalidade operacional e explicitação discursiva, é o experimento eugenista do governo nazista conhecido como T-4. A ordem de execução – eutanásia – de alemães considerados pelo regime nazista como “indignos de viver” (pessoas com deficiência física ou mental) se deu ao final do ano de 1939, pouco antes do início da segunda grande guerra, e vigorou oficialmente até o dia 24 de agosto de 1941. A pressão surgida no interior da sociedade alemã, encampada por autoridades da igreja, pôs fim, aos menos oficialmente, ao arranjo mortífero que se deu entre militares, médicos e enfermeiros. No entanto, o plano de Hitler de promoção de uma “raça pura” se expandiu e ganhou proporções monumentais nos campos de concentração.

Retomando as análises empreendidas na História da Loucura, os rituais e lugares obscuros ocupados pela lepra na Idade Média foram destinados à desrazão, que se tornou uma ameaça insistente e bastante temida. Para Foucault, o quadro de Bosch prenuncia um movimento que resultou na constituição da psiquiatria e seus regimes de exclusão a partir do século XVII. Até chegar o momento em que a experiência trágica da loucura se viu totalmente silenciada pela constituição do saber psiquiátrico, manteve-se o registro de uma dualidade estrutural claramente demarcada, uma “partilha rigorosa” significando ao mesmo tempo exclusão social e reintegração espiritual. Liberar o louco à sua própria loucura, lançando-o à indeterminação das águas, significou a possibilidade de uma dupla salvação: para a vítima e para o algoz.

A violência, o controle social e o estigma em torno das pessoas que sofrem de transtornos mentais não se reduzem a uma questão circunscrita apenas ao corpo da loucura. Ao contrário, na batalha que se trava através deste corpo estão em jogo, fundamentalmente, as formas fundamentais que determinam uma certa “condição humana”. Ao longo da história, verificou-se que o cerco e as açoes orientadas no sentido da demarcação do espaço da loucura garantiram a estabilidade, os contornos e o estatuto da razão e da normalidade. Estamos todos, irremediavelmente, implicados nessa batalha.

A data comemorativa da luta antimanicomial no Brasil surgiu em decorrência do Movimento da Reforma Psiquiátrica nascido nos anos 1970. Um movimento protagonizado pelos trabalhadores em saúde mental alinhado ao processo de redemocratização que deixou como um legado, além da data comemorativa, conquistas relacionadas ao direito das pessoas em sofrimento psíquico e atenção à saúde mental livre de qualquer violência e discriminação. Diz o artigo primeiro da Lei Paulo Delgado de 06 de abril de 2001: “Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra”. Por tudo isso, a luta Antimanicomial deve ser encarada como uma espécie de âncora a impedir que os humanos todos se percam nas rotas da exclusão, à deriva.

*João Paulo Ayub Fonseca, psicanalista, é doutor em ciências sociais pela Unicamp. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios).

Referências


FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2019.

GIRARD, R. A violência e o sagrado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008.

GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.

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