Por MARTÍN MARTINELLI*
Prefácio do livro de Guadi Calvo
Guadi Calvo é um prolífico jornalista e autor, traduzido para mais de dez idiomas, cujos interesses acrescentam nuances variadas às suas obras.
Poderíamos dizer que ele utiliza uma paleta de cores com uma ampla gama de tonalidades e as insere em sua visão de mundo. Com profundo interesse pelo cinema e pela fotografia, e pelas diversas latitudes do mundo, ele condensa e conecta temas com um nível de detalhe, ajudando o leitor a cruzar as fronteiras de narrativas hegemônicas hábeis. O leitor depara-se com um enquadramento político, geopolítico, cultural, religioso e histórico, do ponto de vista jornalístico e para além dele.
Embora o título do livro seja sobre a Revolução Francesa, é para afirmar que ela morreu. A intenção parece ser trazer à luz casos globais menos conhecidos que este, como a Revolução Argelina e a sua Frente de Libertação Nacional. E assim, na cidade Luz, é exibido um fato obscuro, ou melhor, fatídico, racista e violento, que ela tentou esconder durante décadas. É essa a intenção do livro, estabelecer um diálogo com diversos ambientes e populações diretamente afetadas pela expansão euro-americana no mundo. Que tenham algo a dizer e que o escritor sintetize, sendo e se tornando parte deles.
Em seu novo livro, Guadi Calvo tira vinte fotos da principal pintura do mundo. Um trabalho exaustivo que aborda uma série de temas e assim mostra um fio condutor, que parece não ser percebido à primeira vista. Porém, com uma prosa jornalística, acessível e suportável, ele introduz perspectivas de lugares remotos em alguns casos, mas que estiveram nas grandes páginas de notícias em diferentes momentos.
Os títulos de seus artigos possuem atrativo estilístico e denotam uma seleção artística. Desmantelar todo o aparato jornalístico cuja intenção é gerar nevoeiro e confusão. Tem a capacidade de dar imagens literárias ao leitor, e até de espalhar o gosto pelos temas onde o orienta e os imerge.
Este escrito demonstra profundidade histórica e espacial, ao analisar casos atuais. Exibe as terríveis consequências das guerras e da violência ao longo dos séculos XX e XXI, e fá-lo abrangendo uma espécie de multiespacialidade, um Aleph se nos referirmos a um dos escritores citados no seu manuscrito.
Paixão por escrever e por transmitir, contar, relatar factos jornalísticos e acima de tudo, uma abordagem detalhada das diferentes realidades humanas. Reconhece o uso do jornalismo como arma de guerra e de propaganda, e é por isso que mantém o seu ponto de vista o mais longe possível de preconceitos face a estes fenómenos.
Por exemplo, este jornalista evoca a Síndrome do Vietnã como uma sombra gigantesca que afecta as novas invasões empreendidas pela potência norte-americana. E restaura o papel de liderança aos homens de Ho Chi Min nesse grande feito heróico e histórico. Assim ele reivindica, naquela fotografia da guerra e noutras passagens, a primeira vítima da guerra como verdade, e consegue contrariar essa lógica habitual.
Com sutil ironia, ele desfere golpes nas narrativas dominantes da Anglosfera, desmistificando suas versões açucaradas da história. Mostra a máscara frágil da “maior democracia do mundo” usada como disfarce para violações de direitos humanos de todos os tipos.
Atravessa o Afeganistão como um lugar estratégico por excelência onde, entre as suas cadeias de montanhas e os seus habitantes resistentes, pereceram impérios de todos os tipos. E parte daí de uma profundidade temporal, e reconstitui todos os atores envolvidos no conflito que acabou ajudando a implodir a União Soviética, bem como posteriormente expulsando a maior potência militar contemporânea.
Atravessa as paisagens da Nigéria à Índia, passando pela Arábia Saudita, Iraque, Afeganistão, Irão, e lateralmente pelas mais famosas capitais europeias e pelo impacto do seu impacto colonialista e imperialista, face às mais variadas formas de resistência. Seu livro traz uma incrível exposição de geografias, personagens e povos, uma espécie de Mil e uma noites da história recente. Com duas características, o histórico de ter focado anteriormente em Nossa América ou América Latina, e o desvendar e resumir grandes histórias de modos de vida, geralmente escondidas, distorcidas pela grande mídia.
Pelas circunstâncias explicadas e descritas, refere-se a centenas de nomes de países, talvez se contarmos, refere-se a quase todos aqueles localizados na Afro-Eurásia. Da Argentina, seu olhar percorre regiões do mundo e localidades específicas com grande nível de detalhamento e precisão dos nomes e da amplitude dos temas fotografados. Isso convida o leitor a conectá-los como o autor faz.
Convida você a viajar pelas ruas e passagens de lugares distantes, mas próximos. De interagir em repressões e invasões de transeuntes e de cidades inteiras. O seu texto ajuda a compreender e a conhecer, mas sobretudo a saber posicionar-se perante as correntes de informação que muitas vezes obscurecem em vez de transmitir uma realidade.
O seu interesse reside em demonstrar como os poderes de facto e os poderes do dia mentem e se escondem, e como o jornalismo é usado nesta tentativa de controlo cognitivo e de batalha de ideias ou cultura. Dos truques do Safari Club, uma organização de “democracias” erguida para deter os “avanços” do comunismo, dos movimentos nacionalistas e revolucionários durante a agitada metade do século XX. Até ao “Acordo da Ásia Menor”, conhecido como “Sykes-Picot” de 1916, ou seja, o pacto anglo-francês para a divisão do Médio Oriente, extensível com diferenças a grandes partes de África, Ásia e num outro período à América Latina América. Nesse ensaio tão histórico ressoa uma frase: “Países criados artificialmente, sem fundamentos históricos…”.
A crônica das suas histórias, guerras, confrontos armados ou torturas desenfreadas, desmascara a pseudo-democracia americana, nas suas palavras, no caso das prisões no Iraque, como Abu Ghraib onde os prisioneiros foram fotografados pelos fuzileiros navais nas situações mais humilhantes.
A história destas formas de tortura serve para desmascarar e divulgar histórias chocantes que revelam as ações de uma força tão opressiva quanto expansiva, como é e tem sido o Exército dos EUA. Confirma assim as formas de “terrorismo” e tortura, no eufemismo “técnicas aprimoradas de interrogatório” que poderiam ser chamadas de “múltiplas formas de desumanização e maus-tratos nos piores níveis humanos”, usado na suposta “Guerra ao Terror”. Uma cópia menor das fábricas da morte nazistas.
Também nos capítulos sobre a Arábia Saudita ou a Nigéria em particular, ele novamente se aprofunda em temas que se sobrepõem ou são menos conhecidos do público em geral. Faz o mesmo com a Índia, o “Baluchistão” no Paquistão ou os Talibã. Assim, mostra mais uma vez uma capacidade analítica e uma exibição de informação que completa o “grande quadro” ou grande quadro da realidade mundial, sem a qual a informação é ensurdecedora, ou melhor, difícil de organizar e, portanto, de analisar.
Lá ele trata da pobreza e da marginalidade, geradas nesses países, a partir das grandes potências e da geopolítica global, e do enquadramento visual que isso produz, observado como um todo. Como exemplo de um mosaico tão detalhado: a força actual da Índia, contrastada com a enorme desigualdade dentro dela e numa área particular.
Diante da semeadura e colheita de guerras do Complexo Militar-Industrial dos Estados Unidos e seus aliados, o autor convida a um passeio por lugares do mundo pelos quais se interessa há anos, e que, devido às mudanças e tensões no cenário atual, mais cedo ou mais tarde estarão nas primeiras páginas. Mesmo assim, refere-se a nomes, lugares, partidos políticos e organizações pouco conhecidas pela forma de informação global que funcionou até hoje, ignorando 88% da humanidade e exagerando as ações da elite minoritária do mundo euro-americano.
As margens são uma questão de consideração crucial para o autor. Da pobreza na Índia, aos problemas de guerras, ditaduras, terrorismo e epidemias vividas pelos países do Corno de África: Somália, Eritreia, Etiópia e Djibuti, juntamente com o Iémen na Península Arábica. Insira temas e regiões com precisão cirúrgica. Ele começa os capítulos com uma visão descritiva, geográfica e histórica de cada local escolhido sobre o qual escreve.
Outro dos objectivos do livro aparece, embora escondido na página quando se fala do Baluchistão no Paquistão “torna essencial compreender e articular não só os traços gerais das políticas regionais, particularmente da Índia e do Irão, mas também é essencial no equilíbrio das três grandes potências mundiais, China, Rússia e Estados Unidos, juntamente com os seus parceiros menores na União Europeia (UE).”
Ao falar do Baluchistão, região que faz parte do Irã e do Paquistão, ele completa regiões e, assim, sistematiza as informações e destaca a relevância intrínseca junto com as condições multifacetadas da região. Ele explica aqui sobre o Porto de Gwadar, “As Novas Rotas da Seda” da China e seu “Colar de Pérolas”.
É por isso que vemos um caminho desde as investigações iniciais do Afeganistão e do Iraque (mesmo outras que não aparecem neste livro sobre muitos outros países) até às mais recentes, em parte devido a lutas pelo poder a nível global. Mas, sobretudo, como isso se reflete nas sociedades mais afetadas por estas transformações. A pobreza e a desigualdade também são uma constante no livro, ele nomeia o capitalismo o tempo todo sem nomeá-lo.
O livro investiga a Arábia Saudita, as madrassas (escolas de formação religiosa e assistência social) e o Paquistão, e regressa ao Afeganistão. Tanto é que, voltando a um dos seus subtítulos “Guerras, guerras e mais guerras até ao fim”, revela nas rebeliões árabes um encerramento do ciclo, mas com continuidades. O leque de regiões percorridas neste livro/viagem transporta-nos de volta às Mil e uma noites, contrariando por isso as habituais visões homogéneas destes territórios.
Assim, esta escrita articula vastas regiões do mundo que se tornaram cada vez mais interligadas nos últimos séculos. E em certo sentido, introduz o leitor a começar a questionar outras condições de vida e outras regiões que são em grande parte esquecidas, intencionalmente pela grande mídia. Por isso são necessários para compreender as tensões geopolíticas e que o mundo não começa e termina com o que sabemos sobre ele.
A questão das identidades nacionais e dos atuais Estados-nação também colide em muitos lugares com diferentes visões do mundo, mas também explica grandes aspectos não resolvidos que ainda causam ou permitem a sobrevivência da instabilidade. Para mergulhar numa obra repleta de estímulos e realidades, contemporâneas e históricas, este livro contém reflexões e notas, em grande parte do sul, vistas e contadas daquele lugar do mundo.
Poderíamos dizer que o livro vai de 2001 até os dias de hoje, mas seria muito abreviado pelas referências que aborda. O mesmo acontece com as cidades e locais visitados. Esta viagem convida você a ler e aprender mais, e a seguir os escritos habituais de Guadi Calvo.
*Martín Martinelli é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidad Nacional de Luján (Argentina).
Referência
Guadi Calvo. La noche que murió la Revolución Francesa: Escritos sobre la hipocresía.
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