Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL*
Estamos, de fato, nos estertores ucranianos dessa guerra infeliz (mais uma!) que os Estados Unidos acharam que podiam ganhar
Em termos operacionais, o conflito militar na Ucrânia definiu-se há quase um ano, quando, após ter sucumbido à armadilha praticamente inevitável de uma guerra de desgaste, imposta pelo exército russo, a Ucrânia viu fracassar a tentativa de uma “grande contraofensiva” e, com ela, exaurir seus últimos recursos de reação.
Esse foi o momento em que, em lugar da racionalidade operacional de planejar uma resistência organizada que, aqui sim, lhe permitisse ainda assomar a uma posição razoável de negociação, o regime ucraniano preferiu seguir duas diretivas tão obstinadas quanto condenadas ao fracasso: (i) a sua própria, de satisfazer as expectativas da lógica militar do Ocidente em manter a iniciativa do ataque e produzir fatos midiáticos em troca da manutenção de apoio logístico e financeiro (o primeiro, de eficácia técnica duvidosa; o segundo, destinado a alimentar as redes locais de corrupção); e (ii) a do Ocidente Coletivo, de tentar, insistentemente e a todo custo (seguindo a lógica das “guerras eternas” norte-americanas), impor uma derrota estratégica à Rússia.
A única curiosidade assombrosa no seguimento desse conflito desde então é que ambas as manifestações de teimosia perduraram e perduram de forma escandalosamente inamovível. Em termos militares (e geopolíticos), o regime ucraniano pós-Maidan e a OTAN se parecem a dois burros xucros empanturrados de arrogância.
Claro, olhando mais de perto, não é difícil perceber toda uma sociológica de interesses particularistas que movem adiante essa marcha bestial. Portanto, não custa advertir que o que hoje, mais que tudo, mantém a guerra na Ucrânia (e, por consequência, assegura a derrota previsível do combo OTAN-Maidan) são esses interesses particularistas – que, além dos terroristas institucionais ideologicamente motivados, vão dos complexos industriais-militares e do carreirismo burocrático predatório de funcionários de Estado (norte-americanos e europeus, civis e militares) à mais trivial sanha salteadora de gangues mafiosas –, e não uma racionalidade atribuível a coletivos nacionais.
Esta última parece dizer respeito apenas ao lado russo, num cenário em que a valsa do Titanic que toca no convés ucraniano não parece ser outra que a das derradeiras ilusões do globalismo liberal, sucumbindo diante de um iceberg nacional chamado Rússia.
No último dia 6 de agosto, o regime ucraniano lançou um ataque ao território não muito protegido da fronteira da região administrativa (oblast) russa de Kursk, lançando mão de cinco brigadas muito bem preparadas, com um efetivo de cerca de 11.600 combatentes, retirados da frente do Donbass e suplementados com soldados poloneses, franceses e mercenários georgianos, além de fortemente aparelhados com equipamento (sobretudo blindagem) ocidental. Por conta desse último aspecto, suspeita-se que a operação tenha sido, na verdade, planejada por oficiais da OTAN, podendo ter mobilizado um tempo considerável de preparação minuciosa.
Em termos táticos, a operação se caracterizou como um ataque relâmpago, para dar passo a grupos de sabotagem, visando uma penetração em profundidade em território russo, até chegar à usina nuclear de Kursk, na cidade de Kurchatov (o que deveria ser realizado até o quinto dia de operação, de acordo com as informações colhidas dos soldados ucranianos feitos prisioneiros).
O avanço não conseguiu ir além da cidadezinha de Sudzha, a cerca de 10 Km da fronteira e ainda a 60 Km da central nuclear. A cidade, no entanto, abriga o centro de controle de abastecimento do gasoduto Bratstvo, que daí sai, atravessando a Ucrânia, para fornecer gás a Eslováquia e Hungria.
Se uma faixa de fronteira não é necessariamente uma frente de combate é porque unidades militares fixas não devem ser expostas, sem razão, ao alcance da possível artilharia do outro lado. (Claro, o contexto do Brasil, por exemplo, é bem diferente, e tem a ver, além da história, com as muitas funcionalidades sociais das Forças Armadas daqui; e, ao ter quartéis sediados logo nas fronteiras, o Brasil expressa também que não assume seus vizinhos como inimigos potenciais).
Essa regra geral não significa que, após um ucraniano cruzar a faixa de fronteira, tudo o que lhe resta é seguir cavalgando até Moscou. É logo a seguir que a vantagem logística local se faz evidente, e se um avanço militar não arrastar consigo uma considerável retaguarda logística, ele simplesmente será suprimido.
É por isso que a Europa não é uma boa “faixa de fronteira” para os Estados Unidos num conflito convencional com a Rússia. Não estamos mais em tempos de Segunda Guerra Mundial. No estado atual de armamento e vigilância espacial, o Atlântico é uma dor de cabeça logística praticamente invencível. Os próprios militares norte-americanos já declararam isso várias vezes em comissões do Congresso. Vai ser preciso que a Europa vire uma grande Ucrânia. E o mesmo vale para o Pacífico, com relação a Taiwan.
Assim, se, taticamente, a operação ucraniana mostrou-se como uma corrida desenfreada de tentáculos isolados (sequer, efetivamente, colunas militares), pela sua aparente ausência de objetivos operacionais (além da presumível ação de terrorismo nuclear e de um blefe para tentar fazer a Rússia desviar tropas do Donbass), pela baixa densidade de efetivos e pela notável distensão das suas linhas logísticas ao longo do avanço, ela dificilmente pode ser considerada como a abertura de uma frente de combate que vise conquistar território, permanecendo sob um status híbrido e indefinido entre uma incursão e uma aventura territorial inconsequente.
Nesse sentido, a justificativa inicialmente apresentada pelo regime ucraniano, pela boca do Chefe de Gabinete da Presidência, Mikhail Podolyak, de conquistar um trunfo territorial para se colocar numa melhor posição de negociação com a Rússia, cai por terra. Se era esse o objetivo, o efeito foi inverso, ao convencer o governo russo de que qualquer negociação é impossível com essa gente que faz uma operação militar para atacar civis – o que, aliás, o regime ucraniano tem feito desde 2014 (algo que os russos sabem muito bem; só precisam evidenciá-lo como argumento).
Oito dias depois do início da operação, já com resultados desastrosos visíveis, o mesmo Mikhail Podolyak parece ter-se visto na contingência de corrigir sua formulação inicial, afirmando agora que o objetivo estratégico da operação era desferir um “golpe público” contra a liderança russa, demonstrando sua inépcia e fraqueza. Esse, na verdade, foi o tom da orquestração midiática ocidental que se seguiu a essa nova aventura militar ucraniana, endossando o que o jornalista Yuri Selivanov chamou de “a guerra de relações públicas mais cara da história”.
Mais uma vez, a operação ucraniana visava… a mídia. E, mais uma vez, a grande esperança dessa aposta (além de assegurar a continuidade do patrocínio ocidental… e da guerra) era a de criar uma crise interna na Rússia, o milagre que o regime ucraniano gostaria de poder operar para, só assim, virar o jogo. Digamos que isso mais parece um cacoete exalado pelo horizonte da guerra híbrida como panaceia definitiva.
Mas agora, até mesmo a plataforma semioficial de disseminação ideológica da política externa norte-americana, a revista Foreign Affairs, já está avisando que esse expediente não está colando nem vai colar, e que Vladimir Putin é um fenômeno de resiliência. Mas o que também fica muito evidente é que, do alto da sua miopia excepcionalista, gente como a que frequenta as páginas da Foreign Affairs ainda está muito longe de fazer alguma mínima ideia do porquê. Acreditando piamente nas baboseiras da sua fé liberal, a “alma russa” lhes é inacessível. Enquanto isso, aumenta repentinamente o número de voluntários russos que se inscrevem para lutar contra a Ucrânia (e, por extensão, contra a OTAN).
Nem tanto ao mar nem tanto à terra, entre as pretensões táticas e as estratégicas, a dimensão operacional talvez pudesse ser a mais realista, ainda que, aqui, seja a mais etérea. Uma das apostas – um tanto simplória, é verdade – do regime ucraniano, ao atacar territórios domésticos pacíficos da Rússia, era fazê-la retirar tropas da frente de combate efetivo, sobretudo do oeste do Donbass, onde a situação tem se mostrado crítica e calamitosa para as forças ucranianas. Nesse sentido, a iniciativa de Kursk seria como que a resposta invertida para o avanço russo sobre a fronteira de Kharkov. Só que isso acabou fazendo com que os ucranianos se parecessem a amadores, frente aos verdadeiros profissionais.
Ao avançar com reservas renovadas sobre a fronteira norte de Kharkov, os russos, estes sim, criaram um considerável pânico militar no regime ucraniano, que fez Volodymyr Zelesnky, o presidente postiço da Ucrânia, instar ao Comandante das Forças Armadas, Aleksandr Syrskyi, a retirada de nove brigadas da frente do Donbass para fazer frente à intromissão russa, que logo assumiu posições defensivas para receber essas nove brigadas em um novo moedor de carne.
Se na Batalha de Bakhmut (Artyomovsk) o número diário de baixas irrecuperáveis da Ucrânia era de cerca de 1.000 combatentes, hoje está na casa dos 2.000. O avanço de Kharkov foi mais um passo bem pensado na guerra de atrito russa.
Se a operação Kursk foi uma resposta a Kharkov, foi então uma resposta estéril de impacto (a única que a Guerra do Ocidente é capaz de conceber) a um jogo que lhe é completamente alheio e que o supera como se aplicasse um gambito a cada lance. Assim, as nove brigadas retiradas por Syrskyi custaram a perda de Novgorod (Nova York) e da metade do aglomerado de Toretsk, e, mais importante, de um rosário de vilarejos em direção a Pokrovsk.
Para tentar ao menos uma retirada em Kursk – onde as forças ucranianas já estão dispersas, fustigadas pela aviação russa e cercadas em porções de bosques (zelenkas) –, Syrskyi deslocou forças e ordenou preparar a defesa aproximada em Pokrovsk, minguando ainda mais a segunda linha de defesa, que os russos estão prestes a romper, depois de terem destroçado a primeira.
Caindo Pokrovsk, toda a frente do Donbass será dividida em duas e comida em fatias. Pokrovsk é talvez o segundo mais importante entroncamento logístico da frente ucraniana (só superado por Kramatorsk), além de ser uma fonte estratégica de matéria prima para a metalurgia: a única mina de carvão de coque ainda disponível para o regime ucraniano.
Some-se a isso o fato aparentemente verossímil de que a Rússia tem estacionado logo ao sul, no oblast de Zaporozhye, um contingente de coisa de 30.000 combatentes, que não foram movidos sequer para “tampar” Kursk.
Por tudo isso, a iniciativa de Kursk se afigura como um lance desesperado, que já está produzindo perdas tão intensas quanto as da fracassada “contraofensiva” ucraniana do último verão boreal. E, como na situação anterior, perdas que não podem ser repostas, sobretudo no que respeita a combatentes bem preparados.
Parece que estamos, de fato, nos estertores ucranianos dessa guerra infeliz (mais uma!) que os Estados Unidos acharam que podiam ganhar, logo contra aquela que, a partir de agora, será a maior potência militar do planeta. Virá algum outro cordeiro sacrificial europeu na sua sequência?
*Ricardo Cavalcanti-Schiel é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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