A originalidade da crise econômica e sanitária da Covid-19

Dora Longo Bahia. Escalpo Paulista, 2005
 Acrílica sobre parede 210 x 240 cm (aprox.)
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Por FRANÇOIS CHESNAIS*

A saída da crise não depende da melhoria da taxa de lucro. Depende do recuo da pandemia, ou seja, primeiramente dos avanços médicos (testes e vacinas) e, em seguida, da eficácia da ação governamental

O objetivo desta contribuição é enfatizar, mais fortemente do que geralmente se faz, a absoluta originalidade da crise atual, a saber, sua dualidade contraditória. As causas do Grande Confinamento (the Great Lockdown) – como foi chamado a partir das “Perspectivas da Economia Mundial” do FMI, de abril de 2020 – são endógenas às relações entre a sociedade humana e a natureza no âmbito do capitalismo. Contudo, como crise econômica, trata-se de um choque exógeno ao movimento de acumulação de capital e às contradições que ele tradicionalmente gera. A saída da crise não depende da melhoria da taxa de lucro. Depende do recuo da pandemia, ou seja, primeiramente dos avanços médicos (testes e vacinas) e, em seguida, da eficácia da ação governamental. A figura abaixo ilustra dois fatos fundamentais. Primeiro, a velocidade e magnitude da queda do PIB mundial mostrada pela linha vermelha, o que traduz claramente a ideia de um choque anormal, que nada tem a ver com uma desaceleração conjuntural habitual. Segundo, as incertezas sobre se a pandemia será contida ou agravada, expressas pela curva pontilhada.

Figura 1. O colapso econômico de março de 2020 e a longa e incerta recuperação

Coronavírus: uma pandemia própria à era do Antropoceno

Um artigo intitulado “Covid-19, uma doença do Anthropoceno”foi publicado em maio de 2020 no site da US National Library of Medicine, National Institutes of Health (NIH) [1]. Ele retraça a história de doenças surgidas nos últimos 40 anos, a partir da transmissão viral de espécies de animais selvagens para humanos, que precederam o coronavírus. Cito passagens substanciais dele.

Primeiro, há a pandemia de AIDS:

“Um antecedente próximo e trágico da Covid-19 foi a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) causada pela infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Esta doença apareceu em 1981 e, em 2018, atingiu cerca de 40 milhões de pessoas e causou mais de 750.000 mortes. Os vírus HIV são o resultado de múltiplas transmissões entre espécies de vírus da imunodeficiência que infectam naturalmente os primatas africanos. A maioria dessas transferências provavelmente resultou em vírus que se espalharam de forma limitada em humanos, até que uma dessas transmissões – que envolveu um vírus da imunodeficiência de chimpanzés no sudeste de Camarões – deu origem à principal causa da pandemia em humanos. A transmissão de um vírus de uma espécie de animal selvagem para os humanos não é incomum. Na verdade, uma alta proporção de patógenos humanos são zoonoses ou são de origem zoonótica, antes de serem transmitidos apenas aos humanos. Desde o surgimento da AIDS, muitas outras doenças infecciosas epidêmicas, como a doença por vírus Ebola, a SARS e a MERS, para citar apenas as mais recentes, foram causadas pela transmissão de vírus de animais selvagens para humanos.

“Essas transmissões entre espécies animais e destas para os humanos não são fruto do acaso. Há fortes evidências de que as mudanças ecológicas levaram ao aumento, em países emergentes, das taxas de doenças como a malária, a síndrome pulmonar por hantavírus, o vírus Nipah e a doença pelo vírus Ebola. A atividade humana vem transformando paulatinamente os habitats naturais da Terra e os ecossistemas de maneira perturbadora, modificando drasticamente os padrões e mecanismos de interação entre as espécies e facilitando a transmissão de doenças infecciosas entre espécies animais e humanos”.

O estudo cita o pesquisador chinês PJ Li [2], que explica que: “Há anos as tentativas do governo chinês de regulamentar o comércio de carne de animais selvagens vêm sendo frustradas por um poderoso lobby comercial, cujos lucros dependem da manutenção do acesso ao consumo desses animais por um setor predominantemente rico da sociedade chinesa. Para completar a cadeia de causalidade, os alertas dos cientistas sobre os efeitos potencialmente catastróficos do possível aparecimento de doenças infecciosas raramente foram ouvidos. No caso do surto anterior de SARS, acredita-se que o comércio de morcegos tenha colocado animais infectados em contato com hospedeiros amplificadores suscetíveis, como a Paguma larvata(um tipo de gato selvagem), em algum elo da cadeia alimentar da fauna, iniciando um ciclo no qual as pessoas foram então infectadas. Li relata que dois especialistas chineses em SARS, Zhong Nanshan e Guan Yi, haviam alertado sobre a possibilidade de uma pandemia originada nos mercados de carne selvagem na China e sobre a necessidade de proibir tais práticas comerciais”.

Subjacente ao Antropoceno está o Capitaloceno

No estudo dos pesquisadores do NIH, há algo bastante inesperado vindo de cientistas das ciências naturais: a afirmação de que devemos voltar à origem desses processos e definir claramente qual é sua força motriz, a saber: “Consumo de combustíveis fósseis para energia, desmatamento e conversão de habitats naturais em terras agrícolas ou pecuária. Estas figuram entre as principais fontes de emissão de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, facilitam o surgimento de novas zoonoses com potencial pandêmico, como a SARS-CoV-2. A extração de petróleo e madeira em zonas de floresta primária envolve a abertura de rotas em áreas de difícil acesso, incentivando o contato entre humanos e a vida selvagem e facilitando a caça e o consumo de carne silvestre. O avanço da fronteira agrícola para atender aos sistemas alimentares atuais aumenta a frequência de ecótonos, áreas-chave no surgimento de doenças infecciosas. Ao mesmo tempo, a destruição do habitat ocasionada por essas atividades é a principal causa da perda de biodiversidade, que também está associada ao surgimento de doenças infecciosas”.

Subjacente ao Antropoceno está, portanto, o chamado Capitaloceno. Para Jason Moore, a quem se deve essa noção, o Capitaloceno é “uma forma de organizar a natureza tornando-a ao mesmo tempo algo externo ao homem e algo ‘cheap’, no duplo sentido que este termo possui em inglês: aquilo que é barato, mas também o verbo ‘cheapen’ que significa menosprezar, depreciar, degradar” [3]. A posição dominante dos teóricos do Antropoceno é ade localizar o início dessa nova era geológicanos anos 1830-1850, época do pleno desenvolvimento da revolução industrial e do início de sua internacionalização. Jason Moore afirma, contudo, que a virada é muito anterior, remontando à economia de plantation e a uma relação de exploração dos recursos naturais que anda de mãos dadas com o uso massivo de trabalho escravo. O Antropoceno, que deve ser chamado de Capitaloceno, pode “ser simbolicamente datado de 1492. As emissões de CO2 intensificaram-se a partir do século XIX, mas a forma capitalista de lidar com a natureza data de muito tempo antes” [4].

Novas pandemias devem atingir o planeta se o desmatamento e a perda de biodiversidade continuarem em seu ritmo catastrófico atual. Esta é a conclusão dos relatórios apresentados no final de setembro à Cúpula das Nações Unidas sobre Biodiversidade sob o tema “Ação urgente sobre a biodiversidade para o desenvolvimento sustentável” [5]. Um estudo estadunidense constatou que atualmente os EUA “investem relativamente pouco na prevenção do desmatamento e na regulamentação do comércio de animais selvagens, apesar de pesquisas bem conduzidas demonstrarem um alto retorno sobre o investimento na limitação de zoonoses, além de muitos outros benefícios. Como o gasto público para o enfrentamento da Covid-19 continua aumentando, nossa análise sugere que os custos associados a esses esforços de prevenção seriam significativamente menores do que os custos econômicos e de mortalidade resultantes de uma resposta a esses patógenos assim que eles tivessem aparecido” [6].

A presente situação mundial e o caso da China

Hoje não estamos diante de futuras medidas de prevenção, mas de um estado de coisas em que a retomada da produção, do consumo e do crescimento é condicionada em primeiro lugar pelo declínio da pandemia, ou seja, até vermos a comercialização de uma vacina eficaz e sem efeitos colaterais graves – e, até lá, pela eficácia das medidas tomadas por cada governo para conter a disseminação da Covid-19 e permitir o retorno dos trabalhadores a seus locais de trabalho. Esse é o caso da China: ponto de partida da pandemia, é também o país onde ela foi combatida com mais sucesso (exceto Taiwan e Coreia do Sul). Enquanto grandes países, incluindo os Estados Unidos, ainda estão na primeira fase da propagação da pandemia, e outros, incluindo importantes países europeus, estão enfrentando uma nova onda que os coloca ao longo da linha pontilhada da Figura 1, a China recuperou taxas de crescimento que, de acordo com a OCDE, a tornarão a única economia a terminar 2020 com uma taxa anual positiva [7].

Figura 2. China, uma recuperação espetacular

Essa recuperação se deve ao sucesso da campanha sanitária, que merece ser examinada. Um artigo publicado por uma organização se auto-definindo como da extrema esquerda americana (muito favorável ao regime cubano e ao regime venezuelano) destaca importantes fatores políticos e sociais. Ele ignora completamente as características totalitárias do regime chinês (ex. a repressão massiva contra os uigures), bem como a desconsideração por parte das autoridades dos alertas sobre a possível pandemia feitos pelos médicos a partir do final de novembro de 2019. Mas destaca, para além desses aspectos com características propagandistas pró-chinesas, o tipo de medidas tomadas para enfrentar uma pandemia em um país com a dimensão demográfica da China [8]: “O vírus apareceu pela primeira vez em Wuhan no final de dezembro de 2019 [9]. Em duas a três semanas, ele se espalhou rapidamente pela cidade como um rastilho de pólvora, pegando todos desprevenidos. Em 23 de janeiro, o governo chinês ordenou o confinamento total de Wuhan, uma cidade de 11 milhões de habitantes. Foi o maior da história. Dois dias depois, toda a província de Hubei, que abarca um total de 45 milhões de pessoas, foi fechada pelos três meses seguintes a fim de impedir completamente a disseminação do vírus. A ordem de confinamento proibiu todos os habitantes de deixar suas casas pelos três meses seguintes. Cerca de 580.000 voluntários da zona rural e de outras cidades foram mobilizados para ajudar as pessoas e prover suas necessidades. Como ninguém podia sair para fazer compras, os conselhos de bairro [que certamente se confundem com os conselhos de vigilância ligados ao partido] organizaram esses voluntários, que se tornaram “solucionadores de problemas” para as tarefas do dia a dia. Eles ajudavam os mais velhos, organizavam entregas de alimentos e se deslocavam diariamente para entregar remédios às famílias.

Horas depois do início do confinamento [estrito e prolongado], médicos voluntários de todo o país começaram a chegar para auxiliarem Wuhan e Hubei. 35.000 chegaram entre o final de janeiro e abril em Wuhan, o epicentro da epidemia. Além disso, em 10 dias, 12.000 trabalhadores chegaram para construir dois hospitais de campanha especiais, Huoshenshan e Leishenshan, com capacidade para tratar milhares de pacientes com Covid-19. O exército chinês também enviou 340 equipes médicas militares (vários milhares de médicos), bem como equipes de logística para Wuhan e Hubei. Muitos eram estudantes de medicina militar na casa dos vinte anos.

O apoio logístico foi muito importante para o sucesso no combate ao vírus. No início de janeiro, quando a epidemia começou, a China rapidamente ficou sem equipamentos de proteção individual (EPI). As necessidades diárias de EPI em Wuhan incluíam 60.000 trajes de proteção, 125.000 máscaras médicas e 25.000 óculos de proteção. No entanto, a China normalmente produz apenas 30.000 trajes de proteção por dia. O governo agiu rapidamente, sobretudo mobilizando empresas estatais em todo o país para aumentar a produção de EPI existente e construir novas linhas de produção. Em poucas semanas, em meados de fevereiro, a crise de EPI havia terminado. Cada membro da equipe médica contava com trajes de proteção. Além disso, a fim de fortalecer a capacidade de testagem e detecção imediata, o governo mobilizou e coordenou rapidamente o estabelecimento de instalações de testagem públicas e privadas com kits de teste. Assim, uma empresa de genética e testagem chamada BGI construiu em alguns dias o laboratório Huo-Yan, um centro de testagem de Covid-19 totalmente funcional em Wuhan, capaz de atender dezenas de milhares de pessoas”.

Características marcantes da crise do ponto de vista econômico

Voltemos por um momento ao relatório do FMI de junho. Lê-se aí que a característica mais específica e notável do Grande Confinamento é que “a desaceleração é profunda e sentida simultaneamente em todo o mundo” [10]. O termo em inglês é mais expressivo: “a synchronized, deep downturn”. Para aqueles que o comparam com a Grande Depressão na década de 1930, que se seguiu ao crash de Wall Street em 1929, deve-se observar que tal sincronização não ocorreu. A Grã-Bretanha e a Alemanha (segunda potência industrial da época) só foram afetadas em 1931. A crise dos anos 1930 não foi global no sentido da crise atual, que se desenvolve no quadro da globalização do capital no século XXI. A URSS estava à margem do mercado mundial, assim como a China, que enfrentava uma longa guerra civil. Argentina e Brasil conseguiram se proteger com barreiras comerciais e reduzir sua dependência das exportações.

Em 2020, a sincronização muito forte mostrada na Figura 1 deve-se a que em algumas semanas o confinamento foi aplicado em todos os países do mundo com efeitos imediatos no comércio (bens e serviços). “O fato de que a desaceleração está acontecendo em todo o mundo ao mesmo tempo ampliou a perturbação econômica em todos os países”.

O FMI observa que “na maioria das recessões, os consumidores recorrem a suas poupanças ou contam com redes de proteção social e com o apoio familiar para fazer frente a seus gastos; assim, o consumo sofre relativamente menos do que o investimento. Porém, desta vez, a produção de serviços e o consumo também caíram significativamente. Essa situação é o resultado de uma combinação única de fatores: distanciamento físico; medidas de confinamento que precisaram ser implementadas para retardar a transmissão e permitir aos sistemas de saúde lidarem com o número crescente de casos; perdas significativas de receita; e erosão da confiança do consumidor”.

Outra característica da crise com consequências muito graves é a distribuição muito desigual do desemprego. “Os trabalhadores pouco qualificados que não podem trabalhar em casa foram os mais afetados pelo choque do mercado de trabalho. Ao que parece, homens e mulheres também não foram afetados da mesma forma pela queda da renda: nas camadas mais pobres da população de alguns países, as mulheres sofrem mais com a crise do que os homens. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que quase 80% dos dois bilhões de trabalhadores do setor informal em todo o mundo foram severamente afetados pela crise”.

A crise atingiu todos os países, porém, ao contrário dos países avançados, os países emergentes enfrentam vários tipos de choques simultaneamente. Em primeiro lugar, a crise sanitária, que às vezes realça deficiências no sistema de saúde, e cuja gravidade depende em parte do seu grau de desenvolvimento. Segundo, os choques econômicos, conforme o tamanho do país e, em particular, a dependência da demanda externa para seu crescimento. A dependência muito forte de um único setor de atividade pode fragilizar o país. Terceiro, há o espaço de manobra em termos de políticas econômicas – monetárias e orçamentárias – para cada país. Por fim, a situação política e social pode ter um impacto significativo na capacidade do país de enfrentar a crise.

Um setor financeiro flutuando, seguro do apoio incondicional dos bancos centrais

Uma alta funcionária do secretariado do FMI postou um estudo no blog da organização em junho. Uma de suas conclusões é “uma divergência marcante entre os mercados financeiros e a economia real: os indicadores financeiros apontam para perspectivas mais fortes de recuperação do que as sugeridas pela atividade real. Apesar de uma correção recente, o índice S&P 500 recuperou a maior parte de suas perdas desde o início da crise; o índice FTSE para os países emergentes e para a África melhoraram significativamente; o Ibovespa elevou-se significativamente, apesar do recente aumento nas taxas de infecção no Brasil; os fluxos de investimento em carteira para países emergentes e em desenvolvimento se estabilizaram” [11]. A correção mencionada pela autora teve vida curta. Em julho, as cotações voltaram a subir. Em meados de setembro o índice voltou a cair devido à preocupação dos investidores com o descontrole da pandemia nos Estados Unidos e seu agravamento na Europa, bem como com as tensões entre Estados Unidos e China. Alguns títulos estão incrivelmente sobrevalorizados. É o caso da Tesla, cuja receita cresceu 5% e seu fluxo de caixa, pouco mais de 20%, mas cujo preço das ações subiu 750%. No entanto, a empresa oferece mais ou menos os mesmos produtos de um ano atrás, tem a mesma gestão e atua no mesmo mercado. Não é de admirar que os comentaristas financeiros estejam falando deum momento extremamente perigoso [12].

Figura 3. Índice S&P 500 (março de 2019 a 25 de setembro de 2020)

É importante retomarmos a questão do pânico da bolsa em março. Em 12 de fevereiro de 2020, o Dow Jones Industrial Average (DJIA) atingiu uma alta histórica de 29.551 pontos. Em seguida, os investidores abriram repentinamente os olhos para a pandemia. Em 9 de março, o DJIA caiu mais de 2.000 pontos e continuou caindo, para 18.321 em 23 de março. A queda foi interrompida por uma intervenção sem precedentes do Federal Reserve (Fed), que correu em auxílio dos investidores financeiros. À medida que o mercado de ações de Nova York despencava com a propagação da pandemia, ele agiu rapidamente para fornecer liquidez aos mercados, aumentando o passivo do seu balanço em 12,4% apenas na semana de 26 de março, superando a soma de US$ 5 trilhões pela primeira vez em sua história. A partir de maio, enquanto o desemprego nos Estados Unidos disparava semana após semana, o índice DJIA fazia o mesmo. Esse descompasso deve continuar, assim como o apoio do Fed aos mercados. O presidente do órgão, Jerome Powell, reconheceu em meados de maio que as perspectivas para os empregos eram graves, preocupando até o The Economist [13], mas insistiu que o Fed continuaria a tomar medidas extraordinárias para apoiar o setor financeiro. Daí o crescente distanciamento entre a situação dos trabalhadores e das classes médias e a da classe mais abastada detentora de ações, sem falar na do estrato de 1% e até de 0,1%.

A divergência entre os preços das ações e a “economia real” deve ser examinada de um segundo ângulo. O forte declínio da produção e o altíssimo nível de desemprego significam que a quantidade de mais-valia apropriada pelos grupos industriais, mesmo aumentando a pressão sobre seus terceirizados, está baixa. Como mostra o exemplo de Tesla, os mercados de ações romperam todos os vínculos com a economia real e vivem numa bolha. Hoje seu funcionamento é paroxístico, na caracterização feita por Rudolf Hilferding:

“A compra e venda dos títulos de juros são uma simples mudança na divisão privada da propriedade, sem nenhuma influência na produção ou na realização do lucro (como é o caso na transação de mercadorias). Os ganhos ou perdas da especulação, portanto, surgem apenas de diferenças de valorização dos títulos de juros a cada momento. Não são lucro, uma participação na mais-valia, mas apenas surgem das diferenças de valorização daquela parte da mais-valia que retorna aos titulares das ações, diferenças que, veremos, não são provocadas por mudanças no lucro efetivamente realizado. São apenas ganhos diferenciais. Enquanto a classe capitalista como tal se apropria, sem equivalente, de uma parte do trabalho do proletariado e obtém seu lucro desta forma, os especuladores ganham apenas uns dos outros. O prejuízo de uns é o lucro dos outros. Les affaires, c’est l’argent des autres. A especulação consiste na exploração da variação dos preços” [14]

A necessidade de cada administrador de fundos de investimento obter ganhos diferenciais, por menores que sejam, às custas dos concorrentes, é ainda mais imperativa na medida em que as taxas de juros estão muito baixas. Essa fragilidade resulta da acumulação, ao longo de trinta anos, de capital portador de juros e de dividendos [15] à qual se somou a política do banco central de apoio aos bancos.

Figura 4: Taxas de empréstimos e taxas sobre fundos depositados em bancos na zona do euro

“Aprender a conviver com o vírus” em uma sociedade dividida em classes e ultra-polarizada

A OCDE exorta seus países-membros a se acostumarem a viver sob a ameaça da pandemia. Lê-se na capa do relatório de setembro que “restaurar a confiança será crucial para o sucesso da recuperação das economias e, para isso, devemos aprender a conviver em segurança com o vírus”. Duas ideias, portanto, restaurar a confiança e “em segurança com o vírus”. Isso pode significar várias coisas. Vejamos primeiro a questão da vacina. As vacinas que são candidatas ao licenciamento estão sendo testadas. Os testes da fase 1 têm como objetivo principal verificar a segurança da vacina, determinar as dosagens e identificar potenciais efeitos colaterais em um pequeno número de pessoas. Os testes da fase 2 exploram mais a segurança e começam a estudar a eficácia em grupos maiores de pessoas. O estágio final, os testes da fase 3, que poucas vacinas alcançam, envolvem milhares ou dezenas de milhares de pessoas. Eles visam confirmar a eficácia da vacina e identificar efeitos colaterais raros que só aparecem em grandes grupos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica as vacinas em processo de desenvolvimento em diferentes estágios dos testes clínicos. Em junho, havia sete delas para a Covid-19 na fase 3 (cinco chinesas, uma americana e uma russa), duas na fase 2/3 (uma britânica e uma alemã), treze na fase 2 e dez na fase 1 [16]. Desde então, cerca de outras vinte entraram na fase 1, incluindo a do Institut Pasteur. Além disso, entre a primeira família de vacinas e as subsequentes, geralmente há um grau crescente de eficácia.

Para conter a pandemia globalmente, precisaremos de uma ou mais vacinas, mas também precisaremos delas em quantidades muito, muito grandes. Serão necessárias literalmente bilhões de doses para proteger um número suficiente de pessoas ao redor do mundo a fim de deter o vírus. Mesmo que uma ou mais vacinas em desenvolvimento se mostrem seguras e eficazes, nenhum fabricante será capaz de produzir mais do que algumas centenas de milhões de doses, pelo menos inicialmente. A solução ideal seria que os governos tivessem unido seus recursos para aumentar as chances de uma vacina eficaz. “Já era” para as vacinas, mas isso ainda pode ser feito para a produção, pelo menos entre alguns países. Associações como COVID-19 Vaccine Global Access Facility (COVAX Facility) e Gavi Covax Advance Market Commitment (AMC) foram criadas para se chegar a isso. A Comissão Europeia também aderiu [17].

Por longos meses, uma vida cotidiana segura com o vírus dependerá, portanto, das medidas tomadas por cada governo. Os resultados não são muito encorajadores. A manchete da edição de 26 de setembro do semanário The Economist diz “Por que tantos governos estão errando? [em face da Covid-19]”. Aqui, novamente, cito uma longa passagem: “O retorno ao confinamento geral, como em Israel, é caro e insustentável. Países como Alemanha, Coreia do Sul e Taiwan usaram testagem e rastreamento muito precisos para determinar locais específicos de forte disseminação. A Alemanha identificou abatedouros, a Coreia do Sul conteve surtos do vírus em bares e igrejas. Se as testagens forem lentas, como na França, irão falhar. Se o rastreamento por contato não for confiável (como o é em Israel, onde o trabalho é feito pelos serviços de inteligência), as pessoas escaparão da detecção. Os governos devem chegar aos compromissos que façam mais sentido econômico e social. As máscaras são baratas, convenientes e funcionam. Abrir escolas deve ser uma prioridade, mas abrir lugares barulhentos e de descontração, como bares, não. Governos como o da Grã-Bretanha, cujas determinações mudam o tempo todo e são dribladas impunemente por seus próprios funcionários, terão pouco sucesso. Aqueles que, como o da Colúmbia Britânica (Canadá), definem os princípios e instam indivíduos, escolas e locais de trabalho a desenvolverem seus próprios planos, serão capazes de sustentar o esforço pelos próximos meses. Quando a Covid-19 irrompeu, os governos foram pegos de surpresa e acionaram o alarme. Hoje eles não têm a mesma desculpa. Na corrida pela normalidade, a Espanha baixou a guarda. Os testes na Grã-Bretanha não estão funcionando, embora os casos de contaminação tenham aumentado desde julho. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, que já foram as organizações de saúde pública mais respeitadas do mundo, foram vítimas de erros, má direção e difamação presidencial. Os líderes israelenses foram vítimas de seu orgulho e de lutas internas. A pandemia está longe de terminar. Ele vai se atenuar, mas os governos precisam se recompor”.

Restaurar a confiança, mas de quem? O caso da França

Chegamos, então, à restauração da confiança preconizada pela OCDE: mas de quem? No caso da França, no contexto de uma falta geral de confiança – e até propriamente de desconfiança em relação ao governo na condução do combate à pandemia – a resposta inequívoca é: confiança das empresas. Assim, um comunicado de imprensa da presidência da república francesa de 1 de outubro informa-nos que no “fórum anual Bpifrance Inno Génération, um dos maiores encontros europeus de empresários, o presidente Emmanuel Macron enviou uma mensagem de confiança aos empresários, cujo espírito de reconquista é essencial para superar o período em que vivemos” [18]. As empresas serão apoiadas em todas as frentes. É o caso do 5G, sobre o qual Macron declarou no Palácio do Eliseu, perante os empresários do encontro “French Tech”, que a França iria “dar a virada do 5G”, ironizando quem preferisse “o modelo Amish” e o “retorno à lâmpada a óleo”.

É o caso do « plan France relance» [Plano de retomada para a França], que visa ajudar as empresas, como mostra um longo artigo publicado pela revista online Basta [19]. Na tão alardeada parte que trata dos fundos destinados à “transição ecológica” não há uma palavra sequer sobre o transporte público e a redução do tráfego de automóveis, mas o carro elétrico conta com total apoio do governo. Para citar um dos muitos exemplos dados no artigo Basta, “as empresas obtiveram a implementação de um novo esquema de atividade parcial de longo prazo (APLD) no total de 7 bilhões de euros, que lhes permite reduzir o tempo de trabalho dos seus empregados em até 40%, num período de 6 a 24 meses, beneficiando-se do dinheiro público para cobrir de 85 a 100% dos salários. Incentivadas pelo governo a assinar “massivamente” tais acordos, as empresas poderiam obter assim um relaxamento significativo da obrigação de manter os postos de trabalho subsidiados: no final, o empregador poderá não ser obrigado a reembolsar o auxílio obtido se cortar empregos. Bastando para isso demonstrar que suas perspectivas de negócios pioraram”.

Antes da pandemia, o recenseamento apontava mais de cinco milhões de pobres. 5,5 milhões de pessoas já recebiam ajuda alimentar ocasional ou regular. Isso representa um milhão a mais do que há dez anos, além dos que estão fora dos registros [20]. Somaram-se aí milhares de trabalhadores precários, estudantes e autônomos. Apenas 0,8% do plano de retomada se destina a apoiar essas pessoas, cuja situação se deteriorou ainda mais com a combinação dos efeitos sanitários, econômicos e sociais da pandemia. Apenas 800 milhões de euros estão previstos para financiar o aumento do subsídio ao retorno às aulas (100 euros a mais por criança para famílias de baixa renda) e a redução para 1 euro do preço das refeições para os alunos bolsistas. “Dado que essas despesas já foram feitas”, diz o artigo de Basta, “nem mais um euro deve ser liberado para ajudar as populações em maior dificuldade, enquanto estudos mostram que teria sido suficiente utilizar apenas 7% do plano de retomada (cerca de 7 bilhões de euros) para erradicar a pobreza extrema”.

À guisa de conclusão

Não é, portanto, entre os trabalhadores ainda na ativa, os desempregados e os muito pobres que o governo busca uma restauração da confiança. No caso deles, a injunção de aprender a “conviver com o vírus”, aliada aos métodos de “manutenção da ordem” implantados pelos sucessivos governos tem valor de ameaça. As relações de força são favoráveis ao capital em um grau talvez nunca antes alcançado. É de se temer que com a aproximação do inverno o governo Macron esteja apostando na desmoralização e desânimo dos trabalhadores, bem como na canalização pela liderança sindical da cólera que eventualmente desponte. Mas não é de todo impossível que os trabalhadores se revoltem. Por isso, os e as militantes não devem se deixar dominar por esses sentimentos, por mais difícil que seja, e também não cair nas armadilhas de conflitos internos estéreis.

*François Chesnais é professor da Universidade de Paris XIII. Autor, entre outros livros, de A mundialização financeira(Xamã).

Tradução: Ilan Lapyda

Publicado originalmente em Cahiers & Revue La Brèche

 

Notas


[1] Cristina O’Callaghan-Gordoe Josep M. Antóhttps://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7227607/
Ver, no mesmo sentido, o artigo de Alain Bihr de 20 de maio, https://alencontre.org/societe/de-quelques-enseignements-a-ne-pas-oublier-a-lheure-dun-possible-retour-a-lanormal.html

[2] Li P. 2020. Sem título. South China Morning Post. [Google Scholar] e https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2590053619300308?utm_source=TrendMD&utm_medium=cpc&utm_campaign=Biosafety_and_Health_TrendMD_1 [Google Scholar]

[3] Jason Moore lançou um livro importante a partir de suas publicações acadêmicas na Internet: Capitalism in the Web of Life, Verso, 2015. Em francês, é possível ler o que ele disse em duas entrevistas: Jason W. Moore, «Nous vivons l’effondrement du capitalisme», entrevista com Joseph Confavreux e Jade Lindgaard, Mediapart, 13 de outubro de 2015. https://www.mediapart.fr/journal/culture-idees/131015/jason-w-moore-nous-vivons-l-effondrement-du-capitalisme?onglet=fullecom Kamil Ahsan em http://revueperiode.net/la-nature-du-capital-un-entretien-avec-jason-w-moore/

[4] http://alencontre.org/ecologie/capitalisme-et-changement-climatique-notions-theoriques-et-trajectoire-historique-initiale-i.html

[5] https://www.un.org/pga/74/united-nations-summit-on-biodiversity/

[6] https://science.sciencemag.org/content/369/6502/379

[7] http://www.oecd.org/economic-outlook/sept.2020

[8] https://www.workers.org/2020/08/50824/

[9] Em sua narrativa, «Un hiver à Wuhan», Verticales, setembro de 2020, Alexandre Labruffe traz à tona as primeiras preocupações no hospital que ele investigou no dia 31 de dezembro. Veja também no site A l’Encontre o artigo do especialista em China Frédéric Koller: http://alencontre.org/asie/chine/coronavirus-et-si-loms-avait-ecoute-taiwan.html

[10] https://www.imf.org/fr/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020

[11] Gita Gopinath, Le Grand Confinement dans une perspective mondiale, https://www.imf.org/fr/News/Articles/2020/06/16/blog061619-the-great-lockdown-through-a-global-lens

[12] https://seekingalpha.com/article/4376604-dangerous-phrase-in-investing-world?mod=mw_quote_news

[13] A dangerous gap. The markets versus the real economy, The Economist, May 5, 2020.

[14] Rudolf Hilferding, Le capital financier, 1910, tradução francesa, Les Editions de Minuit, 1970, p. 200. Os itálicos são do original.

[O francês do itálico está no original em alemão – N.T.]

[15] Remeto a meu longo artigo de abril de 2019: http://alencontre.org/economie/la-theorie-du-capital-de-placement-financier-et-les-points-du-systeme-financier-mondial-ou-se-prepare-la-crise-a-venir.html

[16] https://www.gavi.org/vaccineswork/covid-19-vaccine-race

[17] https://euraxess.ec.europa.eu/worldwide/north-america/commission-joins-covid-19-vaccine-global-access-facility-covax

[18] https://www.elysee.fr/emmanuel-macron/2020/10/01/forum-annuel-bpifrance-inno-generation-big

[19] https://www.bastamag.net/Plan-de-relance-100-milliards-croissance-PIB-Bruno-Lemaire-epargne-bouclier-anti-licenciement. Ver também Michel Husson: http://alencontre.org/europe/france/france-relance-ceci-nest-pas-un-plan.html

[20] http://www.observationsociete.fr/revenus/pauvrete

 

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