A palavra inventada

Gerald Wilde, O Casamento do Céu e do Inferno, 1971-2
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Por FERNANDO RIOS & JOSÉ DE SOUSA MIGUEL LOPES*

Segundo diálogo de Fernando Rios com José de Sousa Miguel Lopes

I. Fernando Rios

de repente, o homo sapiens sapiens inventou a palavra
e, entre choros e risos, parou de grunhir
ninguém sabe quando e como
mas sua vida mudou

ficamos mais humanos?
passamos a compreender melhor o outro?
passamos a amar mais?
passamos a odiar mais?
quanto de poder entrou na palavra?

a palavra ama, canta e dança
a palavra odeia, tortura e mata

que estranha e reveladora palavra tão hominídea
que tanto embrulha para presente
quanto enrola em mortalha

que ambígua sapiente idade
nos seus milhões de anos de vida
e nos seus milhares de anos palavrando

palavrando o quê, para quê, para quem?
para nós? quem somos palavrosamente nós?


II. José de Sousa Miguel Lopes

vivemos em um mundo ruidoso
de muitas palavras
de muito diz que diz

somos internautas, twiteiros.
temos celulares sempre à mão,
em qualquer tempo e espaço
queremos que nos leiam, nos ouçam,
porém, sabemos pouco de parar e ouvir.


III. Fernando Rios

há quem fala e quem não fala?
quem vale mais? quem pode mais?

e quem responde à pergunta de gayatri chakravorty spivak:
“pode o subalterno falar?
quem é o subalterno? ele tem palavra?
e quando ele fala, quem ouve?

onde é guardada a palavra de quem não fala?
quanto de câncer explode na garganta que engole a palavra?

quando a palavra se transforma em afeto?
quando a palavra se transforma em cutelo?

quanto pode uma palavra?
nua ou vestida, a palavra afaga e acaricia
vestida ou nua, a palavra intimida e açoita

o que fazemos com a palavra?

ela dorme serenamente no dicionário
mas quando acorda, quando a acordamos
se transforma… em quê?


IV. José de Sousa Miguel Lopes

quantas vezes impedimos o diálogo?
na ânsia de falar, não escutamos.
temos muitas desculpas para não ouvir o outro
e temos sempre imensa vontade de falar

o falar domina? o falar aniquila?

queremos ser ouvidos, mas não queremos ouvir.
escutar, ouvir… é muito mais difícil.

para ouvir, temos que ficar em silêncio,
temos que prestar atenção,
temos que esquecer nossos pensamentos
e deixar que a ideia e a voz do outro,
que nos fala, que nos chega
que entra em mim, que entra em nós.

precisamos calar

e temos que reconhecer que o outro existe
e que tem algo para nos dizer.
e ouvindo de verdade o outro
podemos pensar trocar ideias
ganhar ideias trocar palavras
ganhar palavras aprender
e criar novas realidades
juntos


V. Fernando Rios

onde está a palavra? numa página ao léu?
no tempo, no espaço, na memória?
no céu da boca, na boca inteira?
em que cérebro mausoléu?
em que corpo exposto ao público?

que palavra enche a boca, mas esvazia o coração?
que palavra conta história, mas enterra o passado?

que palavra escorre dos olhos?
que palavra afaga? que palavra afoga?

alguma palavra enche o estômago?

e as palavras sobre as peles
protegem do frio, aliviam o calor?
que palavras falam e calam
em silenciosos estardalhaços?


VI. José de Sousa Miguel Lopes

o silêncio não é a negação da palavra,
como a palavra não é tampouco a negação do silêncio.

há silêncios eloquentes, palavrosos
como há palavras vãs, vazias

o rumor de nossas palavras só tem sentido
porque nelas se reflete o mundo infinito
que está para lá de sua sonoridade:
o mundo dos sentimentos, das ideias,
das grandes realidades. 

silêncio e palavra:
dois instrumentos que se completam.

existe um silêncio expressivo
e uma intensa palavra silenciosa,

há um silêncio que fala, capaz de dizer tudo e qualquer coisa
e uma palavra oca, que diz nada

o silêncio é também o lugar de sentidos
que se fazem fora da representação da palavra,
sentidos que estão no imaginário humano,
nas tramas do que o sujeito aprende
e transforma em fantasia, em imaginação. 

estamos perante uma cartografia de afetos,
perante acenos esplendorosos à poesia,
à amorosidade, à vida
juntos


VII. Fernando Rios

que palavras emitem os sarados corpos outdoors?
que palavras estancam as veias abertas nos campos de batalha?
que palavras cavalgam utopias?
que palavras trafegam pelos bueiros?
que palavras promovem euforias?
que palavras carregam alforrias?

somos ilhas cercadas de palavras por todos os lados
em que vasto oceano nos metemos
nós de palavrosa mente?

e muitas vezes
numa violência analfomegabetista
emudecemos o outro

e se não ouvimos sua palavra
no mínimo
precisamos começar a ouvir seu agoniado silêncio
porque quando sua voz explodir
pode nos emudecer


VIII. Fernando Rios

as palavras falam e querem dizer
toda palavra pode ser grandiosa
solidária, fraterna, palavra/comunhão

(pense na palavra que você quer falar
ela diz o que você quer dizer?
ela esmaga o outro
ou faz dele um belo renascer?)

pobre ser humano rico ser humano
quantas palavras para tantos corpos
quais quantos podem ser palavrados?

entre a palavra branco e a palavra negro
cabem quantas palavras/peles coloridas
sem deixar feridas?

entre macho e fêmea
cabem quantas palavras/gêneros
de infinitas amorosas moradias?


IX. Fernando Rios

ser humano é masculino humanidade é feminina
juntos, ser humano e humanidade
engravidaram-se arcoiristicamente
de mulheres homens lésbicas gays bissexuais transsexuais
travestis queers questionandos intersexos curiosos
assexuais pansexuais polissexuais aliados two-spirits kink
demissexuais e tantos quantos mais sexos
e tantos quantos mais gêneros enfim
LGBTQQICAPF2K+ e mais e mais e mais
seres humanos humanitários humanitárias
com suas todas palavras
ávidas aves águias beija-flores


X. Fernando Rios

a palavra é conteúdo e continente
a palavra pode aquecer sem queimar
a palavra pode abraçar
a palavra pode quase tudo
para o bem e para o mal
então, por que e quando ela se transforma em punhal?


XI. José de Sousa Miguel Lopes

palavra escrita, falada, dançada, repetida, insistente, coerente, carinhosa, poética, criativa, de ânimo, de consolo, do outro, palavra minha, partilhada, ouvida, de mãe,
de filho, de acalanto


XII. Fernando Rios

palavra é tanto e tudo
que poderia remeter sempre ao convívio
e não ao martírio

e tanto e tudo
que poderia remeter à alegria
à euforia
e não à tristeza, à melancolia

e tanto e tudo
que poderia remeter à vida
e não à triste sina

quando teremos esta sorte:
palavra vida
mais forte que a palavra morte?


XIII. José de Sousa Miguel Lopes

palavra que move sonhos
que se levanta contra a injustiça
que carrega teorias
que ilumina a prática
que arrasta multidões
que cura a ferida
que enxuga as lágrimas
palavra que conta histórias
palavra na vida
palavra vida


XIV. Fernando Rios

este tempo e espaço de ser humano
precisa viver o outro viver no outro

este tempo de humanidade precisa agregar o outro
incluir e agregar o outro do outro onde estou
o que sou eu senão o outro do outro do outro do outro
que somos todos nós e outros?

e então, de mãos dadas, de corpos dados
celebrar a palavra vida e cantar uma ciranda
num cordão mundial

seres humanos e humanidades
unam-se abracem-se amem-se cantem-se
vivam-se, vivamo-nos cada segundo
intensamente
juntos

há que tentarmos
a boa palavra quer e precisa falar e dizer


*Fernando Rios é jornalista, poeta e artista plástico.

*José de Sousa Miguel Lopes é doutor em história e filosofia da educação pela PUC-SP, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

Para acessar o primeiro diálogo clique aqui.

Referência


Os textos de José de Sousa Miguel Lopes foram extraídos do posfácio que ele escreveu para o livro Cartas gravadas: celebração da voz na formação docente.

Editora Appris, Curitiba, 2022.

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