A política necrófila

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018
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Por TARSO GENRO*

O Bolsonarismo, de um só golpe, debilitou tanto a democracia como o modo de vida orientado pelos valores da República

Bobbio lembrando a emergência do fascismo no bojo da crise da democracia italiana disse que “os fascistas eram arqui-italianos; em oposição, os antifascistas não se consideravam italianos do mesmo modo. Os fascistas eram de outra Itália.” E segue: “a partir desse conceito das duas Itálias, poderíamos também desenvolver a distinção entre pátria e nação.”

Somos da mesma nação, mas a real pátria bolsonarista – que induz conscientemente a aceitação da morte programada (dos que estão fora do seu conceito de “nação”), certamente não é a nossa. O nosso conceito de nação, na República, é instrumental para nos tornar iguais em direitos; o conceito de pátria, no fascismo, é instrumental para incitar a desigualdade essencial entre os humanos. E assim o pratica quando aceita a morte do outro “nacional” e exerce no cotidiano a sua política necrófila.

Ninguém menos do que Karl Polanyi demonstrou que a destruição das economias reguladas, formatadas no pós-guerra, foi um fato histórico “reacionário” que iria gerar um “choque” na democracia-liberal, “produzindo maior concentração de renda e de poder”, e assim criando as condições para a unidade política entre os movimentos populistas de direita e o “mercado desregulado”. Mercado e fascismo, na ordem global do capital financeiro hegemônico, poderiam ser compatibilizados, tanto por períodos curtos, como por um ciclo inteiro.

Mais além da crise da democracia liberal que ocorre em escala planetária, chamam atenção – aqui no Brasil – alguns episódios canônicos da sua degradação. Um deles é a “naturalização” do ultraliberalismo, retirado do campo da política para se tornar – através do cassino financeiro global – uma técnica para a acumulação privada sem geração de trabalho. E assim afinou-se com movimentos fascistas e protofascistas financiados por amplos setores das classes dominantes.

Qual o “sentido” crítico, que é formulado de forma quase hipnótica, no plano da grande política pelos gestores midiáticos da opinião manipulada? É o seguinte: Bolsonaro não é ruim porque seja fascista, misógino, com tendências genocidas, mas sim porque ele não está oportunizando – de maneira consequente – que Paulo Guedes faça as suas reformas devastadoras do Estado Social até o fim.

Esta postura da direita e dos seus epígonos neoliberais gera uma consequência e duas oportunidades, para a oposição democrática – de esquerda e centro esquerda – na sua relação com um suposto “centro” republicano no país. A consequência é que este “centro”, representado pela caricatura do “centrão”, não pode ser num próximo governo democrático o fiel da estabilidade institucional, porque a tentativa de regeneração republicana das instituições será fulminada por ele, como ocorreu com todos os Governos depois de 88.

Qual a primeira oportunidade? Esta situação concreta possibilita uma divisão de “blocos”, ensejando – através da autonomia que a política pode adquirir em situações de crise – a formação de um bloco “democrático republicano”, de oposição ao Bolsonarismo, com uma agenda ampla e comprometida com a estabilidade democrática: combate à devastação socioambiental, a guerra à devastação humana pela fome, a retomada do crescimento da economia por fora do “rentismo”, com uma política externa que recupere a dignidade nacional no fragmentado espaço global onde todas as crises se inspiram.

Esta agenda não é só da esquerda no cenário nacional de hoje e se estreitarmos a nossa visão de unidade contra o fascismo, daremos uma oportunidade para que a retórica do fascismo se torne uma religião sem Deus, articule-se de maneira definitiva com o “centrão” e as religiões do dinheiro e faça da sua retórica contra o “comunismo” um movimento fanático de permanente tensionamento da democracia até rompê-la e destruí-la por um longo período.

Além desta oportunidade política, que pode ser encampada pelo campo democrático para retirar de Bolsonaro a possibilidade de um segundo mandato, emerge uma outra, no campo da disputa ideológica. É uma ideia que só poderá se tornar força material com uma linguagem unitária de rejeição dos dogmas fascistas, que arruínam as condições mínimas de solidariedade social que definem a República: falas unitárias que contenham valores de um projeto de solidariedade social e igualdade, que rejeitem o fascismo tanto como projeto político e como modo de vida selvagem e violento.

Rosa Luxemburgo, dizendo que democracia só é democracia se ela valer para todos – excluindo aqueles que querem matá-la -; e Bobbio, dizendo que é preciso eliminar os poderes ocultos na República, pois “o poder infinito corresponde à perfeita invisibilidade” foram, nas suas respectivas vidas por este caminho. O Bolsonarismo, de um só golpe, debilitou tanto a democracia como o modo de vida orientado pelos valores da República, como forma ideal de Estado que se alimenta das virtudes da cidadania, que – mesmo não sendo majoritariamente virtuosa – pode sofrer no seu âmago os corretivos da vida democrática.

O “vestibular” para entrar na “terceira via” feito pelos comentaristas da Globo News, aplicados em fazer a equivalência entre o PT e o Bolsonarismo – método aceito pelos vestibulandos ali expostos – para mim deixou claro que é importante que todos os blocos políticos reais apresentem seus candidatos à Presidência. Este processo nos levará para pactos e dissensos no segundo turno – se ele ocorrer – para novos pactos e compromissos, visando salvar pátria e a nação das mãos violentas e incompetentes do Bolsonarismo em crise, para que seja o eleitor o filtro das alianças para governar um novo Brasil republicano, resgatado da metástase fascista.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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