A hora dos desamparados

John Wells, "Perfis", 1949.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por TARSO GENRO*

Estas eleições serão decididas pela massa de desamparados

“O pesar e o prazer andam tão emparelhados que tanto se desnorteia o triste que desespera quanto o alegre que confia” (Cervantes).

A violência do Estado nos momentos ou etapas de exceção, não gera somente temor ou neuroses no cotidiano das massas alienadas, mas também promove pulsões históricas. Vastas parcelas da sociedade, ora se dirigem para os supostos momentos de alegria e descontração no mercado das ilusões consumistas, ora se conectam aos espaços do crime organizado, já monopolizado como poder no Estado (autoritário) – ou conectando-se (em rede), pelas milícias digitais.

Nestas milícias paranoicas os militantes podem apoiar os campos de concentração, a terra pode ser plana e Bolsonaro pode ser revelado como o redentor de uma nação fictícia: seu fascismo em compota – sem teoria e sem projeto – não podendo elevar-se a um plano político minimamente coerente, expande-se pelo ódio que, carente para ser filosofia da ação, torna-se pura ação criminosa sem partido.

O e-book 100 anos psicologia das massas (Jaqueline de Oliveira Moreira, Ana Carolina Dias da Silva, organizadoras, Ed CRV) traz um conjunto qualificado de textos sobre a vida e a política na democracia contemporânea, de um ângulo que embora não seja inusitado, não é o usual, nem nas narrativas da luta política, nem nos debates e na crítica da emancipação democrática.

O livro é um vasto painel: psicanálise, psicologia das massas, formação e controle do “espírito” dos dominados, traços de filosofia política, nexos entre dominação e libertação das mentes, o falso direito de “todos possuir” – no enredo que a todos nivela pela mercadoria – compõe o sentido principal do livro coletivo. Nele está o excelente texto “Recordar, repetir e…repetir -as massas e os autoritarismos de ontem e hoje” (do pesquisador Domingos Barroso da Silva), no qual me apoio para as presentes considerações sobre a nossa crise democrática.

No “hiperindividualismo” reinante, combinado com “a ressurreição e o progressivo fortalecimento” de uma postura fascista – de líderes como Trump e Bolsonaro – vem o “esmagamento da dimensão pública pelas coisas privadas”, ao que sucede o desprestígio das instituições democráticas e o “ambiente fértil para desenvolvimento de novas formas de tirania”. Estas novas formas de tirania agora disseminam a cultura da “igualdade” (falsa), pelo mercado, com as reformas que seriam necessárias para que “todos um dia lá estejam felizes”.

As novas formas de tirania se expressam num novo contexto ideológico mundial integrado de forma horizontal – pela base – a partir de um conjunto de indivíduos isolados. Eles atuam sós, ou em pequenos grupos, em redes que não respondem necessariamente aos seus “instintos de classe”: seus movimentos mimetizam também um conjunto de estímulos verticais, “de fora” das suas classes originárias, que são fabricados em série pelos bandidos globais como Steve Bannon.

As dificuldades de comunicação, tanto da esquerda – que sempre é mais solidamente democrática – como da direita tradicional não fascista, que tem principalmente relações contingentes com a democracia, estão assentadas portanto neste dilema: os seus núcleos dirigentes continuam formulando seus comandos políticos compostos de narrativas longas, mas a vida cotidiana toma conta da História todos os dias, com tempos curtos, pulsões em série, moralidades provisórias, fomes rapidamente disseminadas e afetos evanescentes.

Estas dificuldades de comunicação para exercer comando político, no atual estágio da crise é enfrentada de forma diferente pelos dois principais líderes políticos nacionais: um representando os escombros do inconsciente iluminista precariamente adquirido nos nossos curtos períodos democráticos; outro representando o máximo de consciência socialdemocrata adquirida no mesmo período de democracia política.

A vida é provisória e a pulsão do mercado é permanente, como a própria crise, ora fundida na pobreza herdada da democracia social deformada, ora na frieza da república impotente. Por isso, quando Bolsonaro imita com crueldade a falta de ar dos que se preparam para morrer, Lula fala na fome endêmica que se espalha no tempo presente; quando Bolsonaro rosna que torturar é necessário, Lula fala em compaixão e celebra a luz com os coletores de resíduos que o mercado marginaliza; quando Bolsonaro celebra o presente, como se fosse garantida a perpetuação do ódio, Lula fala na coesão social do passado pelas três refeições do dia.

Na parte do artigo em que o autor aborda a “Insegurança, precariedade e medo, o sujeito reduzido a indivíduo e acolhido pelas massas”, o autor faz um destaque importante: o significado profundamente humano da “coesão partir dos medos, ódios e ressentimentos compartilhados (através dos quais) afetivamente unidos (eles) conseguem conferir alguma estabilidade à existência, que sentem se volatilizar em razão de uma liberdade que, imposta segundo a cartilha neoliberal, mais equivale a desamparo”.

Talvez quando o conjunto da esquerda entender que estas eleições serão decididas pela massa de desamparados – tratados como gado na pandemia que ainda nos espreita – possamos compor uma unidade, não só na resistência, mas para governar, respondendo às mensagens fortes e curtas de quem não respira, seja pelo vírus, seja pela fome. Lembremos que Bolsonaro, com toda a sua insanidade, vocação para a mentira e mensagens de ódio, ainda é ouvido por 40% da população. Grande parte deles “desamparados” que ele mesmo criou, ajudado pelos “gentlemans” da escolha difícil.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES