Será possível ver Bolsonaro fora ainda em 2021?

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CHICO WHITAKER*

As dificuldades para superar o desafio de frear a figura sinistra do presidente da República

 

Apesar de bastante numerosa, não deixou de ser um pouco frustrante a participação nas manifestações de 2 de outubro, em perto de cem cidades brasileiras. E não deixa de ser penoso constatar que a presença ainda foi pouco “popular”, como se diria, isto é, ainda é pouco expressiva a participação de pessoas sem maior vinculação a partidos, sindicatos e movimentos sociais. Nesse sentido, talvez não tenha sido boa a escolha de um sábado para realizar as manifestações – um dia que é de trabalho para muitos. Além disso, a oposição a Bolsonaro não utiliza de modo significativo a oferta de transporte para encher as ruas, como o fazem maciçamente os apoiadores do governo, como vimos recentemente em 7 de setembro.

Tendo como bandeira principal o “Fora Bolsonaro” e o impeachment para afastá-lo, este foi o “recado” dado pela “voz das ruas” à Câmara dos Deputados, para que pelo menos discuta formalmente os mais de 150 pedidos acumulados na mesa do seu Presidente.  Resta saber se será ouvido. Podemos ter dúvidas a respeito. O impeachment se encontra de fato bloqueado por uma maioria na Câmara dos Deputados cooptada por Bolsonaro pelos meios espúrios que sabemos. Seu Presidente, que faz parte dessa maioria, nem encaminha os pedidos à discussão da casa, como aliás também não o fez o Presidente anterior.

Na verdade, pode-se dizer que a maioria da Câmara atual representa somente uma minoria de brasileiros ainda fieis a Bolsonaro, e só tem ouvidos atentos – para se aproveitarem também – à voz dos setores sociais oportunistas que tiram proveito de tudo, até da desgraça popular. Essa maioria está de fato a serviço do principal objetivo que Bolsonaro definiu, desde que foi empossado: destruir todos os avanços civilizatórios que a sociedade brasileira conseguiu, penosamente, desde o fim da ditadura militar.

Na verdade, vivemos condições semelhantes às vividas pelos espanhóis quando surgiu em seu país, em 2011, o movimento dos “Indignados”. Em suas manifestações, gritavam ao parlamento, “vocês não nos representam!”. A diferença é que no Brasil está sobrando pouco espaço para que cresça a indignação que existe.

É visível a “naturalização” da matança de que somos vítimas, apesar de todos nós já termos perdido – para sempre – bons amigos e familiares. Isto é ainda mais doloroso porque mais de metade dessas mortes poderia ter sido evitada. Foi provocada, e o é até hoje, pelas ações e omissões do capitão-Presidente e pelo seu negacionismo, assumido por todo o seu governo. Na prática pouco a pouco vamos nos tornar campeões do mundo nesta competição macabra, em que somos ainda vice-campeões, atrás dos Estados Unidos.

Por outro lado, a militância foi se burocratizando, nos movimentos e partidos políticos e nos agentes do Estado que deveriam proteger direitos. E como se tudo isso não bastasse para acabar com ilusões, os cidadãos e cidadãs “sem poder” que desejariam de fato o Fora Bolsonaro se veem paralisados por suas lideranças políticas e pelos candidatos a essa liderança. Estes, um ano e meio antes, pensam muito mais nas eleições de 2022 e nos seus projetos políticos coletivos e pessoais. A todos os níveis já se multiplicam candidatos lutando por redutos eleitorais, apoios, alianças e recursos, dentro da cultura competitiva própria ao regime econômico em que vivemos, que torna também difícil a formação de “frentes” mais poderosas para afastar o Presidente da República.

A maioria dessas lideranças se acomoda à permanência, até essas eleições, do personagem moralmente repugnante que ocupa a Presidência da República, como se estivesse diante de uma doença degenerativa terrível, mas sem remédio. Mentalmente desequilibrado, ele disse, antes de ser eleito, que foi “formado para matar” – nem Hitler foi tão explicito em seus desígnios. E para isso resolveu se tornar “cumplice do vírus” que assola o planeta, como já disse Miguel Reale Junior, um dos assessores jurídicos da CPI da pandemia.

A estratégia política dessas lideranças é menos afastá-lo do que deixá-lo se desgastar para que saia depois da contagem dos votos, como se vivêssemos tempos e condições normais de “mudança de governante”, como nas alternâncias no poder próprias a países mais democráticos que o nosso. Por isso consideram uteis manifestações com o grito Fora Bolsonaro, mas só para desgastá-lo, já que no fundo não acreditam que seja possível conseguir o afastamento do atual Presidente antes das eleições. Pode-se até dizer, em outras palavras, que para eles o grito “não é para valer”. Com o que deixam falando sozinhos os que consideram que é preciso tirar o criminoso ainda este ano de 2021 do cargo que conquistou. Para os que assim pensam este objetivo é inescapável porque, enquanto ele permanecer presidente, continuará a usar todo o poder objetivo e simbólico que tem no seu cargo para confundir o povo. E porque uma política de saúde que estanque o morticínio causado pela Covid 19 não será possível com o governo sob sua Presidência.

Esquecem-se, os voltados para 2022, que para ser eleito ele usou, massivamente, a difusão de mentiras direcionadas a parcelas da população passiveis de serem enganadas, e a montagem de uma farsa que o vitimizou aos olhos dos incautos e o protegeu de debates eleitorais que o desmontariam. E que, no poder, novas mentiras e novos teatros farsescos serão sempre possíveis, em tempos de internet em que inteligências mal intencionadas descobriram como usar a matemática dos grandes números, as fake news e as redes sociais para “orientar” as maiorias.

Para piorar as perspectivas, aqueles que só pensam em 2022 centram sua atenção na conquista da chefia do Poder Executivo. Isto é, fazem muito pouco ou nada, como partidos e como movimentos sociais, para cuidar da futura composição do Poder Legislativo. Como é nossa tradição, não se fala da importância do voto para o Legislativo. Com isso, também como sempre, poderão prevalecer, entre os eleitos para esse Poder, os oportunistas e corruptos que visam chegar a ele para ganhar dinheiro com “rachadinhas” e outros truques, ou chantageando o Executivo e as empresas que ele contrata, quando estes dependem de seu voto no Parlamento para legalizar suas ações. E de novo teremos tristemente que gritar: “vocês não nos representam!”

Mas ainda mais preocupante é que quem sonha em ganhar eleições em 2022 desconsidera tudo que a mente doentia de Bolsonaro poderá preparar até lá até para impedir a realização das próprias eleições, ou pelo menos para negar seus resultados. E dessa forma criar situações ainda mais dolorosas para todos nós. Ele já não disse, com todas as letras, que a única maneira de resolver efetivamente os problemas do Brasil é fazê-lo viver uma guerra civil?

Seria necessário, portanto, encontrar uma forma de furar o bloqueio generalizado ao impeachment de Bolsonaro, ou então algum outro caminho para afastá-lo urgentemente. Ora, descartado o caminho de uma decisão do TSE anulando as eleições do 2018 por crimes eleitorais, por ser quase impossível politicamente, e o da interdição de Bolsonaro por insanidade mental, por ser irrealizável tecnicamente, resta o do processo criminal. Este caminho foi aberto já em março deste ano, sem que muito se noticiasse, pela Associação Juízes pela Democracia – AJD, em representação que fez ao Procurador Geral da República – PGR. Sua iniciativa foi reforçada em seguida por três outras representações no mesmo sentido: do Conselho Federal da OAB (com o apoio da Comissão Arns), do Movimento 342 Artes e da Associação de Familiares de Vítimas da Covid – AVICO.

Foi nesse quadro que um dos grupos políticos de que participo, autodenominado “Todos pelo Bem Comum”, deixou de lado, por ora, seu objetivo inicial, que era o de estimular a multiplicação de núcleos de reflexão e ação para a auto formação política da base da sociedade – uma vez que uma das causas da eleição do atual irresponsável Presidente foi o abandono dessa formação pelas organizações sociais, partidos e Igrejas. E lançou uma campanha de apoio às representações ao PGR, com o nome “Ô Ministério Público, Denuncia Já!” que visava torna-las mais conhecidas, assim como o caminho que propunham de processo criminal para afastar Bolsonaro.

Criou para isso uma plataforma digital (ocandeeiro.org) e um abaixo assinado https://www.change.org/ÔMinisterioPublicoDenunciaJá. E vem promovendo debates ao vivo na internet – que, uma vez gravados, continuam no ar na plataforma, para serem vistos e ouvidos por quem se interesse. Assumida por 40 organizações da sociedade civil, a campanha era dirigida ao corpo de Procuradores e Procuradoras Federais, para que cobrassem do seu chefe máximo o cumprimento de seu dever ético.

Esse novo caminho tinha à frente, no entanto, dois obstáculos, que o tornavam difícil, mas não impossível: o da inação comprovada do Procurador Geral da República no encaminhamento dessas representações – o que até já levou a Comissão Arns a representar ao Supremo Tribunal Federal denunciando o crime de prevaricação que o PGR estaria cometendo; e o da autorização, pela Câmara, de abertura de um processo criminal, para o que seriam necessários os mesmos 342 votos exigidos pelo impeachment.

Quanto ao PGR, é certo que ele é uma das blindagens de proteção com que conta o Presidente criminoso. Recentemente entrou até na área do nuclear, menos frequentada pelo Ministério Público, para atender a interesses a cujo serviço está o atual governo: solicitou ao STF declarações descabidas de inconstitucionalidade de preceitos constitucionais estaduais que buscam impedir a multiplicação insana de usinas nucleares no Brasil. Mas ele começa a sofrer uma pressão contra a sua inação para proteger Bolsonaro em seus crimes na pandemia, pressão essa que vem de dentro da própria instituição que chefia, assim como até do STF.

Além disso, uma luz no fim desse túnel começou a piscar: a CPI da pandemia também apresentará ao PGR um pedido de denúncia criminal de Bolsonaro ao STF, elencando ainda mais crimes do que os apresentados nas representações já feitas. Ele terá, portanto, ainda maior dificuldade de continuar em sua inação quando receber, já no mês de novembro, as milhares de páginas do relatório da CPI.

Quanto à dificuldade de autorização, pela Câmara, de um processo criminal, um pedido com esse objetivo vindo do STF já terá mais peso do que uma centena de pedidos de impeachment vindos da sociedade civil. E se esta se mobilizasse e vencesse a inação do Procurador Geral da República, essa primeira vitória já criaria brechas na resistência da maioria cooptada por Bolsonaro, e já contaríamos com muitos mais “sem poder” para passar a pressionar os Deputados Federais.

Entretanto, como numa democracia toda ação política encontra resistências, o caminho do processo criminal ainda se encontra semi-bloqueado. Proposto a quase sete meses, continua literalmente ignorado por partidos, sindicatos e movimentos sociais, e desconhecido da grande maioria da população.

Os jornalistas, blogueiros, jornais e TVs com quem supostamente se poderia contar ainda não registraram, em seus carnês, a necessidade de pressionar o PGR. Já se ocupam dos tradicionais acertos e enfrentamentos entre os candidatos a Presidente que surgem no pântano político. Os próprios organizadores da campanha Fora Bolsonaro ainda não descobriram a possibilidade de processo criminal como hipótese de trabalho. Nos discursos das manifestações do dia 2 ele não foi citado por nenhum orador, que eu saiba, nem surgiu em nenhuma faixa ou cartaz que tenha atraído a atenção na massa de reivindicações levantadas, ao lado dos pedidos de impeachment. E como as manifestações do dia 2 foram menos massivas do que nós todos desejaríamos, já se diz que não era isso que se pretendia, mas sim começar o caminho pela construção da unidade para vencer o embate eleitoral com Bolsonaro – em 2022…

Por sua vez, a campanha de apoio ao processo criminal, lançada pelo Candeeiro três meses depois da primeira representação ao PGR, isto é, há quatro meses, permanece igualmente desconhecida, no limbo, já que lhe faltam recursos para difundi-la, como os que empresários gananciosos colocam à disposição de gabinetes do ódio e afins para espalhar fake news. Seu abaixo assinado avança vagarosamente, competindo com centenas de outros provocados pelas “boiadas destruidoras” que todos os setores do governo Bolsonaro lançam sistematicamente no Congresso e sobre os brasileiros. E nem todas as organizações que representaram ao PGR – igualmente solicitadas, intensamente, pela resistência às “boiadas” – encontram tempo para tornar suas próprias representações mais conhecidas, menos ainda para participar das iniciativas do Candeeiro, com suas lives. como se também não confiassem tanto no caminho que abriram para o afastamento de Bolsonaro.

Poderíamos trazer muito mais constatações para esse muro de lamentações, na dificuldade enorme que estamos vivendo de superar o desafio de “eliminar do horizonte político do Brasil a figura sinistra de Jair Bolsonaro e a cepa de micróbios nazistas que habita a sua alma”, como escreveu Luiz Francisco de Carvalho Filho em artigo recente na Folha.

Será que teremos que nos “acostumar” com o pesadelo do tenebroso e cruel Bolsonaro como Presidente da República até o fim de 2022, se lá conseguirmos chegar sem que a Covid nos vitime? E já que citamos símbolos religiosos, será que por agora ficaremos sem outra saída senão a de pedir a Deus que volte a ser brasileiro, antes que coisas ainda piores nos aconteçam?

*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Raimundo Trindade Vanderlei Tenório Berenice Bento Bento Prado Jr. Airton Paschoa Andrés del Río Lorenzo Vitral Flávio R. Kothe Michael Löwy Rodrigo de Faria Francisco Fernandes Ladeira Antônio Sales Rios Neto Gilberto Lopes Priscila Figueiredo Luiz Eduardo Soares Daniel Afonso da Silva João Carlos Loebens José Dirceu Fernando Nogueira da Costa Marcus Ianoni Henri Acselrad Ricardo Abramovay Gabriel Cohn Osvaldo Coggiola Everaldo de Oliveira Andrade Remy José Fontana Afrânio Catani Jorge Branco Andrew Korybko Annateresa Fabris José Machado Moita Neto Alysson Leandro Mascaro Leonardo Boff Otaviano Helene Chico Alencar Luiz Bernardo Pericás Lucas Fiaschetti Estevez Antonio Martins Milton Pinheiro Eugênio Trivinho Tadeu Valadares Valerio Arcary Thomas Piketty José Geraldo Couto Érico Andrade Leonardo Avritzer Igor Felippe Santos Luiz Renato Martins Benicio Viero Schmidt Daniel Brazil Slavoj Žižek Heraldo Campos Francisco Pereira de Farias Sandra Bitencourt Leonardo Sacramento Caio Bugiato Paulo Sérgio Pinheiro Ronaldo Tadeu de Souza Matheus Silveira de Souza Ronald Rocha José Luís Fiori André Márcio Neves Soares Eliziário Andrade Gilberto Maringoni Ronald León Núñez Rubens Pinto Lyra Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Paulo Ayub Fonseca Paulo Martins Rafael R. Ioris Atilio A. Boron Luiz Marques João Sette Whitaker Ferreira Antonino Infranca Vladimir Safatle João Carlos Salles Samuel Kilsztajn Fernão Pessoa Ramos Luiz Roberto Alves João Feres Júnior Celso Frederico Ladislau Dowbor Marcelo Módolo Jean Pierre Chauvin Luiz Werneck Vianna Manuel Domingos Neto Eleonora Albano Liszt Vieira Michael Roberts Marcos Aurélio da Silva Dennis Oliveira Julian Rodrigues Francisco de Oliveira Barros Júnior Leda Maria Paulani Sergio Amadeu da Silveira Eduardo Borges Denilson Cordeiro Bernardo Ricupero Jean Marc Von Der Weid José Costa Júnior Alexandre Aragão de Albuquerque Paulo Capel Narvai Alexandre de Lima Castro Tranjan Gerson Almeida Tarso Genro Anselm Jappe Paulo Fernandes Silveira Henry Burnett Lincoln Secco Luciano Nascimento Luís Fernando Vitagliano Dênis de Moraes Flávio Aguiar Bruno Machado Kátia Gerab Baggio Marjorie C. Marona Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Chico Whitaker Paulo Nogueira Batista Jr Marilia Pacheco Fiorillo Fábio Konder Comparato Armando Boito Tales Ab'Sáber Luiz Carlos Bresser-Pereira André Singer Mariarosaria Fabris Boaventura de Sousa Santos Carlos Tautz Luis Felipe Miguel Ricardo Antunes Ricardo Fabbrini Renato Dagnino Mário Maestri Michel Goulart da Silva João Adolfo Hansen Carla Teixeira Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Freitas Barbosa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Maria Rita Kehl Elias Jabbour Marilena Chauí José Micaelson Lacerda Morais João Lanari Bo Salem Nasser Jorge Luiz Souto Maior Walnice Nogueira Galvão Celso Favaretto Marcos Silva Ari Marcelo Solon Claudio Katz Eugênio Bucci Juarez Guimarães Vinício Carrilho Martinez Ricardo Musse Daniel Costa Valerio Arcary Manchetômetro Eleutério F. S. Prado

NOVAS PUBLICAÇÕES