A presença da estupidez

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Por Valdemir Pires*

O governo de Jair Bolsonaro, já uma vergonha global para o Brasil, disseminou no país um falso dilema entre direito à saúde e direito ao emprego

Diante de qualquer desafio ou problema, lançar mão do conhecimento, como primeiro passo para seu enfrentamento ou solução, é a atitude certa e desejável, no sentido de que é a atitude com maior probabilidade de conduzir a respostas e soluções de maior e melhor impacto. Desafios e problemas complexos, por sua vez, requerem conhecimentos científicos para serem encarados, porque este tipo de conhecimento, devido ao modo como se constrói, em ambientes de pesquisa (revisões do estado da arte, análises aprofundadas, metodologias garantidoras de objetividade, avaliações por pares etc.), tem o efeito de abreviar o tempo para se chegar ao que é necessário ou desejado, com resolutividade a mais efetiva e duradoura possível. Não é à toa que todas as sociedades contemporâneas retiram numerosos de seus membros e volumosa parte de seus recursos do processo diretamente produtivo, destinando-os à pesquisa, muitas delas básicas, ou seja, sem aplicação imediata. Em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e em ciência e tecnologia (C&T) uma parcela do PIB de todos os países é investida; quanto mais rico o país, maior este percentual e,  em consequência, mais rico e seguro é e será o investidor. Não faz o menor sentido desconsiderar o conhecimento, muito  menos o científico, para entender e resolver os problemas do mundo contemporâneo, sejam eles individuais ou coletivos. Alguns podem querer voltar a caminhar de quatro, tendo direito a isso: o que não podem é clamar ou exigir que todos o façam, ou impor aos outros o fim dos aparatos utilizados pelo homem ereto:  mesas, assentos, talheres, veículos, máquinas e ferramentas, teorias. A Terra, definitivamente é redonda e não é necessária mais teoria para demonstrá-lo: estão aí os satélites para mostrar em filmagens; o que se trata, agora, é de avançar, como já se está avançando, para chegar aos astros “vizinhos”. Ponto. Não se fala mais nisso.

Conhecimento, entretanto, não é tudo, porque muitas são as circunstâncias, na vida individual e coletiva dos homens, em que a objetividade não é possível e, então, escolhas têm que ser feitas. Nessas circunstâncias entram em questão os valores e princípios, inseridos nas consciências individuais a partir de elementos subjetivos: trajetória de vida, momento da vida (infância, juventude, maturidade, velhice), relacionamentos prévios e almejados (afetivos, profissionais, políticos, sociais), interesses (pessoais, grupais, de classe etc.), pontos de vista etc. Sendo os valores construídos e/ou abraçados por cada um, de acordo com suas circunstâncias, conveniências e desejos, precisam ser “negociados”, confrontados entre si, para que prevaleça um ou outro, naquelas situações da vida em que aquilo que uns querem não é o que outros aceitam ou desejam. É desse fracionamento inevitável dos homens entre si que surge a necessidade da política: quando subjetividades estão em desalinho, oposição, confronto ou conflito, é necessário usar o poder para, via poder, administrar as divergências (democrática ou autoritariamente — outra escolha básica). E, neste momento, de decisão sob conflito, surge uma questão: basta conhecimento para decidir bem e corretamente? E a resposta é: Não, o conhecimento (inclusive e, em alguns casos, principalmente, o científico) deve ser levado em conta, mas ele não é suficiente, não abarca tudo que está em jogo. O que mais é necessário, então? A resposta: SABEDORIA. Sabedoria começa por lançar mão do conhecimento, mas conduz às áreas adjacentes, leva àqueles pontos cinzentos (ainda pouco claros) do mundo, da vida, das relações, pontos estes rodeados e de dúvidas e questionamentos e perfurados por eles. A sabedoria é necessária para lidar com as paixões e desejos, com os afetos, com os conflitos e as incertezas, com as dúvidas e os medos humanos. Ela é um saber sensível que não busca verdades, mas persegue o desejável ou, no mínimo, o aceitável por todos (num consenso sempre precário) para que a vida siga e seja de acordo com o que os homens podem, sem se destruírem, sem inviabilizarem a coexistência.  Ela é a única porta que se abre diante de dilemas insolúveis (as chamadas escolhas de Sofia). De que lado está a sabedoria quando uma decisão (sobre, por exemplo, qual dos cinco jovens afetados pela Covid-19 ficará com o respirador do hospital, no momento em todos eles estiverem à espera, correndo risco de morte?) tem que ser tomada por alguém? Além disso, pode uma decisão dessas ser tomada por uma única pessoa, `à luz de sua avaliação pessoal?

O até aqui exposto deveria ser suficiente para perceber a profundidade da perda e do risco que representa a presença e manifestação, em qualquer tempo e lugar, da estupidez (incapacidade de fazer uso da razão para decidir e agir) e da ignorância (insuficiência de dados informações para decidir e agir) entre os homens. Combater a estupidez e a ignorância é uma condição civilizatória, é uma condição para bem viver, individual e socialmente. Isso está plenamente estabelecido. O anti-intelectualismo, o ataque ao conhecimento científico e aos seus portadores, o descaso com a escola e a universidade, a afronta à educação e à cultura, a manipulação da informação são manifestações que vêm das trevas e conduzem a elas. Ponto. Não se fala mais nisso.

Isso posto (ainda que não aceito pelos mais renitentes), é preciso falar sobre a pandemia DA (note-se o feminino) Covid-19 (COrona VIrus Disease 2019, SARS-CoV-2). Falar e ouvir muito, ou seja, debater, discutir bastante — no momento a ignorância é imensa a respeito, a começar pelo uso do nome no masculino, quando se trata da “doença, enfermidade, moléstia (Disease) Covid-19″. Sim, é preciso refletir coletivamente sobre esta pandemia, porque esta doença terrível, pouco conhecida e transmissível em progressão geométrica (muito rapidamente a partir do primeiro contágio) está mudando o mundo em profundidade, afetando, já de saída, a condição humana em seus aspectos elementares: condição de ser social (que vive necessariamente com os demais), condição de animal político (que está imerso num ambiente afetado pelo poder) e condição de homos economicus (que depende da interação e da troca para obter suas condições materiais de existência). Mesmo que seja debelada a atual pandemia, a humanidade não poderá voltar a ser o que era, porque se o fizer, não terá aprendido o necessário com ela, ficando tão vulnerável à próxima (que virá) quanto está diante desta.

É preciso, também, refletir sobre o desdobramento da pandemia no Brasil, dadas as especificidades do caso. A Covid-19 chegou ao país num momento social, econômica e politicamente desfavorável, para não dizer catastrófico. Enquanto seu enfrentamento exige coesão social, união nacional e ação coletiva concertada, governos à frente, os brasileiros estão profundamente divididos entre si, por causa de uma disputa político-ideológica  que vem se arrastando desde o começo da década, e estão, até como decorrência dessa divisão, sob um governo central errático (para dizer o mínimo), incapaz de solucionar até mesmo problemas muito menores do que este, agora, de saúde pública.

O governo de Jair Bolsonaro, já uma vergonha global para o Brasil, disseminou no país um falso dilema entre direito à saúde e direito ao emprego. Isso com a ajuda poderosa de seus correligionários terraplanistas e adeptos do ódio gratuito, amplificada pelo uso explícito das redes sociais disseminadoras de mentiras (ou fakenews) e geradoras de ignorantes e estúpidos em massa. Por conta disso, o debate sobre o enfrentamento da pandemia está se travando, em nível nacional, de modo polarizado, entre os que acham que o isolamento social deve cessar (para que a economia não pare e os empregos e negócios não se percam – economia antes, saúde depois) e os que pensam que o isolamento social deve ser mantido, pelo tempo necessário, custe o que custar — saúde antes, economia depois). Debate enviesado, a partir de um falso dilema, típico de quem não pensa considerando a complexidade das coisas e dos fenômenos, típico, portanto, da horda de ignorantes e estúpidos (sem poupar os adjetivos devidos e corretamente aplicados) que elegeram e (em menor quantidade) ainda apoiam o claramente ignorante e estúpido Jair Bolsonaro — “mito”, sim, bem na era do conhecimento e da informação!, na qual o mito é o que se aceita e exalta como superior exatamente porque não se entende a partir da racionalidade, mito no pior sentido da palavra. 

Não há incompatibilidade alguma entre decidir e agir para preservar a vida das pessoas e o nível de atividade e emprego do país. O que está em pauta é preservar ao máximo possível a integridade física dos agentes econômicos (pois, além de tudo, são e continuarão sendo necessários depois da crise) e, ao mesmo tempo, evitar ao máximo os impactos negativos da inatividade temporária dos trabalhadores (pois sem produção não há sustento para a vida) sobre o sistema e o processo econômicos . O enfrentamento a ser feito abarca duas frentes simultâneas. O que se tem que fazer é evitar que a propagação em ritmo exponencial da Covid-19 inviabilize que as vidas sejam salvas pelos equipamentos e equipes disponíveis na rede de tratamento médico do país. Se o ritmo de contaminação se der de maneira que os aparelhos de auxílio à respiração  e os profissionais que os manejam possam atender e curar os pacientes que chegam aos hospitais, os danos tanto sobre as vidas como sobre a economia serão amenizados (evitados totalmente não é mais possível). E o único caminho para isso é a adoção do isolamento social e o aprofundamento das medidas de higiene pessoal, a serem facilitadas para os que estejam em espaços públicos por necessidade. Assim que a compatibilização entre a demanda por atendimento médico e hospitalar e a oferta disponível (inclusive após ser aumentada pelos governos, em ritmo emergencial) se equilibrarem ou chegarem próximo disso, as regras de isolamento social  poderão ser relaxadas paulatinamente: comércio, serviços, espaços públicos, aglomerações poderão ir sendo, aos poucos, novamente apropriados pela população, nunca sem cuidados que evitem a contaminação (uso de máscaras, higienização de mãos, limpeza constante de ambientes e equipamentos, manutenção de distância mínima entre pessoas, monitoramento de casos, aplicação de testes etc.).

Não deveria haver, também, nas ações governamentais de combate à Covid-19, colisão entre os níveis de governo. O federalismo que caracteriza e dá nome ao Brasil (República Federativa do Brasil) requer, teoricamente, e  explicita constitucionalmente (para que se vá da teoria à prática) que União,  Estados, Distrito Federal e Municípios atuem colaborativamente entre si na busca do bem-estar social, dividindo entre para isso os recursos disponíveis e as responsabilidades atribuídas (federalismo fiscal). Nesse federalismo reserva-se à União tudo o que seja do interesse nacional, suplantando os interesses estaduais, regionais e municipais, para se evitar que o aquilo que um ente federativo faça atrapalhe o que o outro faz. O combate à pandemia está claramente enquadrado nessa lógica poupadora de esforços e garantidora de direção única: de que adiantaria a cidade de Araraquara ou o Estado de São Paulo, por exemplo, adotarem medidas preventivas contra o vírus, se todos ou demais não o fizessem? O vírus venceria o jogo. Porque o time adversário a ele não soube jogar, porque os políticos e cidadãos não foram capazes de fazer o que deveriam — só por isso. O vírus não é invencível, mas impõe um comportamento respeitoso. E caro, e difícil. E sair correndo do campo não dá mais, a bola está rolando.

Registre-se, ademais, que na medida em que a União flexibilize ou até suprima as regras de isolamento, por estupidez (especialmente econômica, à base da busca de simplório equilíbrio fiscal de cunho neoliberal), ignorância e oportunismo do grupo no poder central, os governos estaduais não resistirão à pressão de agentes econômicos desesperados (muitos já sem caixa) para liberar a  retomada das atividades econômicas. Sobrará para os prefeitos sustentarem o mais efetivo combate à pandemia (o isolamento social), normatizando-o, fiscalizando o respeito a ele e tomando medidas punitivas, absolutamente antipáticas. Dos 5.570 prefeitos do país, quantos são candidatos à reeleição no pleito que se aproxima? Quantos são social e sanitariamente responsáveis? Quantos, enfim, resistirão aos que, em tão grande quantidade, assumem o dilema emprego x sobrevivência dos trabalhadores como real? A disputa política em torno de tema tão crucial para a sobrevivência dos brasileiros e para que a Nação não sucumba à pandemia deveria, a todo custo, ser superada. E não será. Infelizmente não será. Faltam para isso políticos à altura dos desafios postos; na verdade já vinha faltando antes, para lidar com desafios bem menores.

Não faltam apenas políticos e partidos de qualidade ao Brasil, neste grave momento, como, de resto, ultimamente. O déficit é grande também em termos de civilidade e consciência cidadã. É angustiante perceber que não são poucos os que fazem carreatas quando deveriam estar em isolamento, os que continuam indo aos supermercados com a família para passear, os que se recusam a usar máscaras e ficam abordando os demais em locais públicos, os que se acham protegidos por deus e pelos anjos contra moléstias, os que tossem próximos dos outros sem cuidado para não alvejá-los com o que lhes sai dos pulmões, os que seguem, enfim, apoiando políticos que os estão prejudicando explicitamente (“Ah, me arrependi de votar em Bolsonaro. Na próxima votarei no Moro.” !!!!!!!!!!).

Seja como for, é clara como a luz do dia a necessidade de os governos, União à frente, botarem o federalismo para funcionar contra a pandemia, superando o falso dilema emprego e renda versus saúde. Sem isso, sem colaboração entre os três poderes, nos três níveis de governo, muitos (a maioria) até sobreviverão (ninguém podendo ter certeza de que estará entre estes) e tantos morrerão, como formigas pisoteadas. E esta colaboração federativa e político-institucional urgente não acontecerá sem pressão da sociedade, sem organização e mobilização, e, talvez, sem que Bolsonaro — que nada sabe e nada nunca soube além de esbravejar e semear discórdias e ódio — seja retirado do cargo no qual nunca deveria ter sido colocado. 

*Valdemir Pires, economista, é professor do Departamento de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (UNESP)

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