A que ordem e progresso servimos?

Imagem: Vinicius Vieira
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Por MARCUS BERNARDES*

A quem os símbolos nacionais servem? Por quem e para quem são criados?

Os símbolos fazem as pontes representativas entre o concreto e o abstrato. A própria palavra carrega em sua etimologia significados contrastantes, syn em grego pode significar união, enquanto o verbo ballein indica lançar. A metáfora da ponte parece ser interessante, pois sugere movimento e estabilidade, ao mesmo tempo. O símbolo toma o lugar (se une?) daquilo que quer representar, mas esse lugar é apenas no nível abstrato. Uma árvore representada em uma pintura não deixa de existir quando é simbolizada, mas ganha novos ares para nós. O concreto então tem a condição de se lançar para outras possibilidades.

Tomemos um objeto mais complexo que a árvore: a identidade brasileira, assim mesmo, no singular. A quem os símbolos nacionais servem? Por quem e para quem são criados? Longe de esgotar o assunto, apenas sugerindo alguns caminhos, quero me deter na bandeira nacional do Brasil e como ela tem sido utilizada por grupos bolsonaristas na sua versão CBF.

Ao contrário do que aprendemos na escola, o verde não simboliza as matas, o amarelo não é o ouro, o azul não é o céu e por aí vai. As estrelas representam os estados e o distrito federal, essa parte é verdade. Toda a simbologia das cores remete às famílias portuguesas que colonizaram (a natureza e as pessoas) nesse território. Divergindo das lutas de independência na América hispânica, o nosso processo de independência foi fajuto, misturado às ilusões da criação de um império, como dizia Anísio Teixeira, ainda que a estabilidade da monarquia nunca tenha acontecido de fato em função de importantes lutas regionais, essas sim de maior autodeterminação dos povos.

Os símbolos nacionais (restrinjo-me a pensar apenas a bandeira e o hino), embora produtos do período imperial, foram ressignificados e comprados para servir à nascente república. Nas primeiras décadas do século XX veremos um esforço grandioso de muitos intelectuais para definir os elementos da brasilidade. Esse movimento é parceiro da criação da fábula das três raças, uma configuração ideológica do mito da democracia racial. Agora, o Brasil tinha as suas próprias cores da bandeira, seu lema originalíssimo de “ordem e progresso” e seu próprio mito de fundação. Toda a retórica de nação estava montada.

Essas narrativas produzem noções homogêneas e unificadas que invisibilizam a subordinação de povos e diferentes culturas ao projeto de identidade nacional. O esforço totalizador é uma política das nações necessariamente ideológica, que esconde as possiblidades multiétnicas e plurinacionais de nosso país, bem como os conflitos (que estão acontecendo exatamente agora, quando você lê esses grafemas da língua portuguesa).

Dito isso, não é estranho que grupos conservadores que apoiam incondicionalmente o presidente Bolsonaro (sem partido) retomem a simbologia nacional para se (auto)identificarem. São acionados os velhos discursos da família tradicional brasileira (que escodem racismo e sexismo), da unidade nacional, da deturpação da moral e bons costumes burgueses, além disso são comuns nas manifestações nostalgias não só do período da ditadura empresarial-militar (existe uma aproximação significativa entre autoritarismo e símbolos nacionais, “Brasil: ame-o ou deixe-o”), como também do próprio período monárquico! Quais operações ideológicas são necessárias para um cidadão republicano se identificar com uma monarquia estrangeira e escravocrata?

Dizem, nesses círculos liberais e conservadores, que os comunistas querem acabar com a nação brasileira. Se for essa nação colonialista que repete símbolos de violência, que estereotipam e matam as mais de trezentas etnias indígenas que (sobre)vivem no Brasil, que fecham os olhos para o feminicídio e as múltiplas sexualidades existentes em nome da sacralidade da família tradicional brasileira, que finge respeitar espiritualidades diversas desde que digam amém, que não se importam com o genocídio da população negra e a crescente precarização do trabalho, essa nação deve ser realmente extinta. A luta comunista é internacionalista por ser contra diversos mecanismos de explorações e pela certeza de que a manutenção de uma nova ordem da vida é amparada em novos sentidos de cooperação, e ainda assim, não são eliminadas as peculiaridades de cada local. A simbologia nacional que devemos almejar é uma que não apague as diferenças, mas que as celebre. Um Brasil multiétnico como um Estado (em transição para o seu fim assim que eliminados os antagonismos de classes) verdadeiramente plurinacional.

*Marcus Bernardes é professor de sociologia e antropologia. Coordena o Núcleo de Pesquisa em Educação e Culturas do Observatório UniFG do Semiárido Nordestino.

 

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