Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JR.*
Os pardos não formam um grupo homogêneo, redutível a uma única origem, como parecem querer tantos
De acordo com os dados do Censo populacional de 2022, promovido pelo IBGE, o perfil demográfico do Brasil alterou-se significativamente na última década. Talvez a mudança mais expressiva diga respeito à porcentagem da população que se autointitula “parda”, que superou, pela primeira vez, o número de autodeclarados “brancos” no Censo. Esse é um dado que suscita, antes de mais nada, uma pergunta delicada: quem são, afinal, esses “pardos”?
A resposta a essa pergunta se confunde com a própria ontologia do Brasil. Infelizmente, não parece haver uma única resposta plenamente satisfatória. A verdade é que os pardos não formam um grupo homogêneo, redutível a uma única origem, como parecem querer tantos. Assim, a não ser que pensássemos, por exemplo, a partir da fórmula deleuziana pluralismo = monismo, a noção de que a hegemonia demográfica dos pardos teria um efeito necessariamente homogeneizador e benéfico para o Brasil é espúria.
De acordo com o movimento negro, o Estatuto da Igualdade Racial e, cada vez mais, o senso comum, o pardo nada mais seria do que um “negro de pele clara”, e “negro”, historicamente sinônimo de “preto”, passou a ser um hiperônimo, somatória das populações preta e parda. Nas palavras da filósofa Sueli Carneiro, “O movimento negro instituiu que negro é igual à somatória de preto mais pardo. A minha geração fez essa engenharia política, e nós dissemos: tudo que estiver dito aí que é pardo e preto, para nós é negro” (Mano a mano). Trata-se, portanto, de uma escolha política, não de uma chave interpretativa definitiva para a realidade brasileira.
O objetivo dessa “engenharia política” reducionista é nobre: a criação de um grande bloco demográfico-eleitoral para o avanço de pautas progressistas, particularmente a luta antirracista. Toda manobra política ousada, no entanto, tem seus efeitos colaterais, que aqui envolvem a simplificação conceitual forçada e arbitrária de uma realidade sobremaneira complexa. Contra isso, eis que se ergue outra tendência político-identitária: o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB), cuja postura não reducionista pode ser considerada uma espécie de “realismo pardo-mestiço”, por assim dizer.
A priori, considerar o pardo como categoria autônoma não é necessariamente uma má ideia. Afinal, a história não acabou, como quis Francis Fukuyama. Só acabará quando todos estivermos mortos, e até lá, processos de etnogênese continuarão a ocorrer como sempre têm ocorrido há dezenas de milhares de anos. A atuação política do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, no entanto, costuma ser uma piada de mau gosto. Infelizmente, suas afinidades políticas com o ex-presidente Jair Bolsonaro são inequívocas. Na CPI das ONGs, a atual presidente do MPMB criticou os resultados do Censo Populacional de 2022 e afirmou que as estatísticas oficiais quanto à mortandade de indígenas no Amazonas durante a pandemia de Covid-19 deveram-se à reclassificação oportunista de pardos como indígenas (Mingote, 2023).
É difícil saber se o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro se propõe a ser um movimento social sério, com convicção sincera de suas próprias pautas, ou apenas um detrator das pautas de outros movimentos sociais. Tão difícil quanto teorizar a mestiçagem no Brasil sem cair em alguma espécie de freyrianismo. Seja como for, a própria existência do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro destaca a impossibilidade de se aplicar um reducionismo absolutizante à categoria parda, que às vezes sequer diz respeito a qualquer mestiçagem.
De fato, o histórico desse termo é antigo e complexo. Já em 1500, Pero Vaz de Caminha se refere aos tupis da costa como “pardos” (Caminha, 1500, p. 2). Ao longo do período colonial, pessoas de ascendência indígena eram comumente consideradas “pardas”, juntamente, é claro, com as de ascendência africana (Chaves de Resende, 2003, pp. 141-210). Assim, o termo aparece como uma espécie de apanhado geral para todo aquele que não é “branco”, ou como substituto para todos aqueles termos etnotaxonômicos coloniais (e.g. “mameluco”, “mulato”, “cafuzo” etc.), talvez um análogo ao mestizo do mundo hispânico.
O próprio IBGE, na contramão do Estatuto da Igualdade Racial, possui uma compreensão pluralista e menos reducionista da categoria: “para a pessoa que se declarar parda ou que se identifique com mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta, parda e indígena” (IBGE, 2023, p. 21). Não é de se estranhar que o IBGE e o Estatuto Nacional da Igualdade Racial discordem nesse sentido, considerando a finalidade fortemente descritiva (e não normativa, como ocorre com o Estatuto) desse órgão, cujos dados baseiam-se em autodeclarações de indivíduos que apresentam concepções diversas.
É muito prático, para fins estatísticos oficiais, tratar essa categoria tão heterogênea como um único bloco à parte dos demais. Recorrendo novamente a termos deleuzianos, as categorias do Censo são molares, fazendo dele incapaz de capturar a natureza molecular da parditude. No fim das contas, toda e qualquer identidade racial é, por definição, uma camisa de força, uma espécie de ficção (in)útil, coágulo efêmero no fluxo incessante de material genético humano ao longo dos séculos e milênios. A rigor, parditude é a condição universal.
Partindo da premissa imperfeita do IBGE, não se pode entender a parditude olhando apenas para o componente africano da herança genética brasileira. Faz-se necessária uma abordagem mais holística. Um bom começo seria olhar para outra das categorias do Censo, que também exibiu números impressionantes: a população indígena. Na última década, o contingente populacional de indígenas autodeclarados no Brasil multiplicou-se aproximadamente por dois. Trata-se de um crescimento prodigioso, o exato oposto daquilo que temiam os antropólogos salvaguardistas dos últimos dois séculos. Isso não se deve apenas ao crescimento vegetativo dessa população, mas também ao fato de que muitos brasileiros vêm se (re)descobrindo indígenas.
É tentador conceber o Brasil como uma espécie de Estados Unidos da América do Sul. Ambos são países grandes, formados pela confluência nem sempre pacífica (para não dizer pior) de inúmeros povos. Ambos somos, além disso, bastante diferentes de nossos vizinhos. Pelo menos é nisso que gostamos de acreditar. Afinal, bolivianos, peruanos, guatemaltecos e mexicanos são todos um bando de “índios”, e não queremos ser como eles. Esse foi o tipo de narrativa que historicamente levou o Brasil a posicionar-se na contramão da América Hispânica, por exemplo, apoiando a anexação das províncias setentrionais do México pelos Estados Unidos.
Ainda hoje, essa noção é uma das principais responsáveis pelo nosso nível de integração relativamente baixo na vizinhança. Mas não é só isso. Os paralelismos históricos, geográficos, linguísticos e (mais relevante para os propósitos deste texto) demográficos entre o Brasil e os EUA, sejam eles reais ou imaginários, tornam nosso país particularmente suscetível à importação acrítica de toda e qualquer doutrina outorgada pela intelligentsia estadunidense.
Essa questão não é tão grave, digamos, na Bolívia ou no México, pois há algo nesses países que os diferencia inequivocamente dos EUA: indigenatos cultural e demograficamente muito expressivos. No Brasil, a identidade indígena sempre foi sujeita a policiamento e normatização intensos, tendência que teve seu auge durante o regime militar (Viveiros de Castro, 2006, p. 4). Um dos resultados disso, para a alegria tanto de latifundiários quanto de engenheiros sociais de terras distantes, foi a dilapidação do indigenato brasileiro. A julgar pelos dados do IBGE, no entanto, isso parece estar mudando. Se a população indígena brasileira dobrou na última década, não seria surpreendente se ela chegasse, ainda neste século, a pelo menos dez vezes seu tamanho atual, alimentada maiormente por retomadas identitárias.
Esse é mais um dos problemas da redução monista do pardo ao “negro de pele clara”: entre outras coisas, a categoria em questão serve para sonegar um enorme contingente de indígenas (des)aculturados no Brasil. Que fique muito claro, no entanto, que não se trata aqui de uma competição. Afinal, negritude e indianidade não são excludentes. Basta uma visita ao Nordeste para encontrar populações afro-indígenas, como os tapeba do Ceará ou os pescadores afro-tremembés do litoral piauiense. Dessa forma, assim como não pressupunha necessariamente mestiçagem, conforme já vimos, a parditude também não pressupõe um branqueamento, ao contrário dos temores de alguns, pois muitas vezes o “branco” sequer consta na equação.
Destarte, é evidente que toda e qualquer tentativa de explicação generalizante da parditude está fadada ao fracasso. Talvez a melhor teorização do “pardo” enquanto categoria sui generis continue sendo a ninguendade de Darcy Ribeiro (2006, p. 119), justamente por seu caráter não-essencialista. De fato, se há algo que sabemos sobre o Brasil, é que a percepção da identidade de cerca de metade da população costuma estar à mercê da conveniência, da boa vontade alheia, da iluminação ambiente ou da quantidade de sol que tomaram nas férias.
*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel em Direito pela USP.
Referências
IBGE. Censo Demográfico 2022: Identificação étnico-racial da população, por sexo e idade. 2023. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3105/cd_2022_etnico_racial.pdf
CAMINHA, Pêro Vaz de. Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. 1500 Disponível em: https://purl.pt/162/1/brasil/obras/carta_pvcaminha/index.html (acesso em 15 de janeiro de 2024).
CHAVES DE RESENDE, Maria Leônia. Gentios Brasílicos: Índios Coloniais em Minas Gerais Setecentista. 2003. Campinas: biblioteca.funai.com.br. Disponível em: http://biblioteca.funai.gov.br/media/pdf/TESES/MFN-9770.pdf
MANO A MANO. Sueli Carneiro. [Locução de]: Mano Brown. Entrevistada: Sueli Carneiro. Spotify studios, maio de 2022. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr
MINGOTE, Bianca. Rádio Senado: Presidente do Movimento Pardo-Mestiço critica resultados do Censo 2022 na CPI das ONGs. 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/08/22/presidente-do-movimento-pardo-mestico-critica-resultados-censo-2022-na-cpi-das-ongs
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Povos Indígenas no Brasil: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. 2006. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_é_%C3%ADndio.pdf
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