A questão racial na crítica de Adorno ao jazz

Francis Picabia
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Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*

Theodor W. Adorno diagnosticou como o jazz integrou os negros à sociedade por meio de estereótipos e representações racistas

No primeiro dia do ano foi publicado no site A Terra é Redonda, o artigo “Theodor Adorno e o jazz”  de Celso Frederico, o qual tratava da “implicância adorniana” frente a essa música. Infelizmente, o texto está recheado de mal-entendidos que dão eco a uma extensa miríade de autores que veem na crítica adorniana ao jazz elementos de elitismo, preconceito e dogmatismo teórico[i], como se Adorno tivesse julgado aprioristicamente aquela música como algo condenável do ponto de vista moral, já que “preferia” a música nova de Schoenberg e seus discípulos.[ii]

Entretanto, tais posições não se sustentam se visarmos aquilo que Frederico parece ter se esquecido de levar em consideração, a saber, o tipo de jazz com o qual Theodor Adorno travou contato quando escreveu seus textos sobre o assunto. Nesse sentido, acredito que a maneira como a questão racial é formulada dentro da análise adorniana do jazz nos oferece um bom contraponto, mesmo que indireto, às questões expostas por Frederico. Dito isto, proponho aqui não uma réplica pormenorizada, mas uma interpretação distinta que leva em consideração aspectos que ali foram ignorados.

De maneira geral, poderíamos afirmar que Adorno caracterizou o jazz ao longo de seus escritos como o exemplo mais claro de um processo de colonização da forma mercadoria no âmbito cultural, enquanto expressão daquele fetichismo descrito por Karl Marx. Embora tenha surgido às margens da indústria do entretenimento e entre as populações negras e pobres dos Estados Unidos, o jazz foi rapidamente transformado na música comercial por excelência, sofrendo profundas alterações em seu material musical e em seu público.

Alardeado pela indústria cultural ao longo dos anos 1920 em diante como uma música moderna, democrática e despojada, o jazz também carregava consigo, entretanto, uma contradição notada por Adorno desde o princípio, a saber, a imagem de um estilo ao mesmo tempo selvagem e moderno, autêntico e inédito. Embora bastante distinto daquela música que surgiu no início do século, o jazz comercial reivindicava para si os símbolos daquela origem, a qual tinha se tornado, nas mãos das grandes gravadoras, uma espécie de romantização idealizada do passado, uma fábula de sua origem negra (Negerfabel). Reproduzido como uma música autêntica e disruptiva por ter saído dos rincões mais pobres e portanto “intocados” do país, aqueles elementos estranhos à estética europeia que o jazz carregava consigo foram descaracterizados e transformados em fetiches que podiam ser usados comercialmente.

Em suma, confessava-se a origem negra dessa música ao mesmo tempo que os elementos daquela fase de sua produção eram eliminados. Paralelamente a isso, o papel social que o jazz ocupava entre os negros era expropriado pelos grandes monopólios da cultura, que para impingir sobre sua música o selo do sucesso, integravam os negros de forma preconceituosa.

Esse fenômeno, que aqui chamaremos de dialética da integração-estereotípica, foi bastante notado por Adorno, embora seja deixado de lado pela maior parte da literatura. Como fenômeno contraditório, esse tipo de integração dos negros à sociedade – tanto norte-americana como europeia – permitiu, de forma inédita, que uma importante expressão cultural oriunda de tal grupo obtivesse ampla repercussão para além das barreiras raciais previamente estabelecidas, com a ascensão de artistas, músicos e compositores negros. Entretanto, buscamos aqui ressaltar como tal integração se deu por meio de representações preconceituosas que traziam consigo muito do ideário racista em voga naquelas sociedades, da mesma forma que encobria o fato de que aquilo que era veiculado como jazz tinha pouquíssima relação com suas origens.

Durante a República de Weimar, contexto no qual Theodor Adorno escreveu suas primeiras análises dessa música, o jazz se constituiu como um tipo de música comercial, voltada à dança, sem muitas inovações rítmicas, harmônicas e melódicas. Sua entrada no país se deu logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando as primeiras bandas de jazz, em sua grande maioria compostas por músicos brancos europeus, começaram a se apresentar pelo país[iii]. Durante esse período, poucas bandas de jazz norte-americanas pisaram em solo alemão, devido ao isolamento no qual o país se encontrava tendo em vista os bloqueios econômicos em curso.

Por isso, diferentemente do resto da Europa, onde a hot music (o jazz musicalmente mais complexo) encontrava maior acolhida, o jazz alemão se tornava cada vez mais endógeno, fazendo das referências de sua origem negra uma reprodução dos estereótipos raciais já presentes naquela cultura europeia[iv]. Além de se limitarem a um material musical mais tradicional, sem arroubos rítmicos e mais presos a uma reprodução literal da partitura, a formação musical das bandas alemãs também era muito tributária da música de concerto, do ragtime, das valsas e da banda militar.[v]

Mesmo com a melhora gradativa da condição econômica do país a partir da segunda metade da década de 1920 e o entusiasmo de Weimar diante da sociedade estadunidense, símbolo do progresso, a régua estigmatizadora perante as referências negras do jazz norte-americano continuou a traçar a fisionomia daquela música. As gravadoras e editoras alemãs continuaram a impor restrições ao mercado fonográfico norte-americano, o que manteve boa parte de sua música alheia aos estilos mais próximos da tradição da hot music. Nesse contexto, vigoraram restrições governamentais relativas à importação, venda e circulação de obras de artistas afro-americanos, numa clara política de segregação racial que buscava salvaguardar o mercado alemão do predomínio de artistas negros. A música aceita e comercializada pelo país vinha em grande parte de um circuito de editoras nova-iorquinas conhecidas como Tin Pan Alley, onde a tendência do jazz orquestral, branco e musicalmente pouco complexo, era hegemônica.

Assim sendo, embora a sociedade alemã estivesse entusiasmada perante a modernidade representada pelos EUA, havia seletividade em tal postura, já que esta permaneceria reticente em relação aos elementos negros daquela cultura. Quando entravam no país, os traços da origem negra do jazz eram necessariamente transformados em fetiches e em estereótipos raciais. Era comum em alguns jornais da época, por exemplo, identificar no elemento negro do jazz uma moral sexual e racial nociva à “superior cultura alemã”.[vi]

Assim, a indústria do entretenimento relegava aos artistas negros um papel secundário, apelando a imagens exóticas de seu comportamento através de espetáculos e filmes com atores recorrendo, por exemplo, ao black face. Percebe-se aqui que o dilema estava em enaltecer os Estados Unidos e o jazz ao mesmo tempo em que se fetichizava seu conteúdo negro. Os negros eram bem-vindos, mas somente enquanto caricaturas.

A partir dessa breve reconstrução histórica, compreendemos que Theodor Adorno estava diante de uma cena cultural que tinha não só esvaziado o jazz de seus elementos musicais originais, como também redefinido essa música em termos de sua fisionomia social. Nos Estados Unidos, algo semelhante ocorreria a partir do final da década de 1930, quando o jazz foi transformado em um “tesouro nacional”, ocupando as ondas radiofônicas, os salões de baile e as trilhas sonoras de Hollywood.

Quando Celso Frederico afirma, por exemplo, que “desde o final dos anos 1930 nenhuma música de jazz figurou na lista dos maiores sucessos”, incorre num erro histórico – o que pode ser demonstrado por qualquer lista dos artistas e músicas mais ouvidos no país ao longo de toda a década de 1930 e 1940[vii]. Já no cenário alemão, com o qual Adorno estava em contato, a transformação do jazz em música comercial e de sucesso ocorreu uma década antes, como foi exposto. Porém, em ambos os contextos se observou uma integração-estereotípica das origens negras do jazz, as quais foram rapidamente submetidas a uma romantização que enaltecia os negros naquilo que eles teriam de exótico, selvagem e autêntico. Segundo Adorno, os elementos negros presentes na origem do jazz, que a princípio “revelavam certa espontaneidade”, foram gradualmente acomodados ao sistema e “amenizaram-se com a crescente comercialização e com a ampliação do público”.[viii]

Em 1927, por exemplo, temos um bom exemplo de como isso ocorria. Naquele ano, a prefeitura de Frankfurt organizou o festival Música na vida das Nações, com diversas apresentações que tinham por intenção abarcar a música de diferentes povos[ix]. Adorno acompanhou diversos concertos e apresentações que foram oferecidas ao longo do evento. Entre elas, assistiu ao espetáculo La Revue Nègre: Black People, dirigida pelo dançarino Louis Douglas[x]. A apresentação contava com a famosa dançarina Josephine Baker, além da participação do clarinetista Sidney Bechet e da banda Chocolate Kiddies[xi]. O espetáculo era acompanhado pela narração de um texto que oferecia ao público histórias de “pequenas mulheres canibais” africanas, representadas por dançarinas vestidas com tangas e piercings no nariz. Em algumas das apresentações, Baker utilizava uma espécie de “saia de bananas”, que reforçava o clima de glorificação do primitivo e do excêntrico como aquele “bom selvagem de Rousseau”.

Adorno escreveu brevemente a respeito do que viu e ouviu. Segundo o autor, embora o espetáculo prometesse mostrar de forma ampla ao público toda a diversidade da cultura afro-americana, as apresentações eram bastante reducionistas, o que homogeneizava qualquer pretensão de expor elementos de pluralidade cultural. O autor aponta para traços pitorescos e excêntricos contidos no espetáculo, que se prestavam a tornar a apresentação mais atraente ao grande público, numa estratégia que investia no fascínio diante do exótico que o selvagem representava. O autor chega a citar como elementos desse exotismo um “par de girls cheias de dentes de ouro”.[xii]

Embora saliente tais elementos pitorescos que ofereciam diversão, Adorno nota como o espetáculo se afastava dos estereótipos somente em um breve momento, a saber, quando tematizava a dura realidade das origens do jazz ao mostrar “a tristeza de um pobre cabaré de subúrbio”[xiii] e a banda que nele tocava sua música dançante. Porém, o autor nota que mesmo a “desgarradora tristeza” representada nessa cena acabava por reproduzir a imagem segundo a qual os pobres, por meio de sua música e tomados por uma espécie de “força primitiva incomensurável”, não se deixavam abalar por nada e seguiam sempre em frente. Ao reafirmar a imagem daqueles que sofrem como indivíduos fortes, resilientes e que “tudo aguentam”, o espetáculo integrava a cultura negra aos palcos europeus mediante a neutralização de qualquer potencial crítico. Nas palavras do autor, La Revue Nègre oferecia à reflexão “o comportamento de um público fascinado pela força primitiva supostamente negroide, que a encontra ali onde ela não mais existe em absoluto”[xiv].

Por meio dessa crítica, Theodor Adorno dava mais um passo em sua compreensão de como a origem negra do jazz, ao ser transformada naquela “fábula de origem”, fazia uso de imagens folclóricas e excêntricas que reduziam a cultura negra, seus corpos, ideias e música a um índice do primitivo que teria encontrado um lugar na modernidade. Identificando no passado de um grupo social específico e marginalizado uma instância de legitimidade pura da música, o jazz colava à sua imagem comercial uma essência “autenticamente popular”.

Porém, como vimos anteriormente, a música que circulava sob o rótulo do jazz nesse período não poderia estar mais distante de suas origens. Adorno insistia em revelar tal distância, enfatizando que o que restava daquelas origens estava tragicamente restrito ao nível do discurso e do rótulo comercial. Diante daquela cena, Adorno afirmaria que “o que o jazz tem a ver com a música negra genuína é altamente questionável”, e o fato de que “muitos negros o pratiquem e que o público demande pela mercadoria do jazz negro diz pouco”[xv].

Sendo reduzido a um fetiche, Adorno demonstra como o elemento negro do jazz foi expulso da música e deu lugar a elementos formais “pré-formatados de maneira completamente abstrata pela exigência capitalista de sua intercambialidade”[xvi]. Por meio de tais asserções, o autor mostra enfim como o jazz transformou sua tradição num “artigo mercantil”, que não só desmerecia as reais origens do estilo, como reiterava sobre esse grupo social estereótipos bastante danosos. Para ele, a forma mercadoria assumida pelo jazz veiculava uma imagem que falseava a história de luta e sofrimento daquele povo. Tomando-o como mais uma faceta do imperialismo colonial[xvii], Adorno ressalta como a integração-estereotípica do negro à sociedade por meio do jazz era dada sobre as mesmas bases segregacionistas e racistas daquelas políticas que organizavam a economia mundial, ao mesmo tempo que escancarava o potencial destrutivo da indústria cultural em desalojar as culturas particulares de seus contextos originais – o oposto da afirmação de Frederico, segundo a qual “as diversas músicas do mundo, suas diversidades e características próprias são, assim, solenemente descartadas nessa interpretação restrita e, digamos, preconceituosa [de Adorno]”.

Em realidade, o que o frankfurtiano faz através da análise do jazz é notar como tais características originais são destituídas de seu sentido ao serem integradas pelo sistema totalizante da cultura sob o capitalismo. Nascido como uma prática musical de grupos marginalizados e depois alçado à categoria de música comercial, o jazz foi entregue às leis externas determinadas pelo mercado, esvaziando de sua música a autonomia que podia carregar.

Nesse sentido, Frederico acertadamente comenta que “a implicância adorniana com o jazz tem como pano de fundo a crítica ao seu caráter mercantil. É a partir daí que o jazz é contraposto à arte ‘séria’. Se esta é uma finalidade sem fim, existindo por si e para si; o jazz, contrariamente, existe em função de outra coisa, à semelhança do valor de troca”.

A dialética da integração-estereotípica também se evidenciava na influência que o jazz exerceu na ópera alemã, já que vários compositores passaram a inserir em suas obras não só elementos musicais relacionados a essa tradição musical, como também incorporavam tematicamente símbolos e personagens que faziam alusão aos Estados Unidos. Entretanto, o que havia de jazz nessas obras geralmente espelhava aqueles mesmos estereótipos a respeito dos negros.

A ópera-jazz mais ilustrativa disso foi Jonny spielt auf (1927), de Ernst Krenek. A obra trazia diversos elementos que faziam referência ao jazz, porém, vale a pena aqui nos concentrarmos sobre sua personagem-título. Na história, Jonny é um músico afro-americano que chega à Alemanha trazendo consigo sua paixão pelo jazz. Símbolo do elogio da cultura estadunidense, a personagem já era conhecida da cultura de Weimar. Desde o início do século, já circulavam no país figuras semelhantes de músicos afro-americanos que chegavam ansiosos em tocar sua música nova e exótica no velho continente[xviii]. De forma geral, Jonny era descrito como ignorante, excêntrico em seus modos e sexualmente desinibido.

Embora representante de uma cultura considerada moderna, Jonny personificava o olhar curioso do colonizador branco diante dos corpos negros, numa mistura de fascínio e temor ao vislumbrar o exótico. Para Adorno, essa ópera-jazz representava um momento de fraqueza na obra de Krenek, já que o compositor teria sido engolfado pelas tendências de “romantização da essência americana”[xix]. Não à toa, anos mais tarde Jonny seria tomado pelos nazistas como símbolo da presença negra e “degenerada” na cultura alemã.

Adorno também analisou de que forma a indústria do entretenimento construiu em torno do jazz uma imagem sexualmente desinibida, libertária e eroticamente permissiva, para a qual o público se endereçava a fim de realizar, mesmo que de forma incompleta e inconsciente, seus desejos sexuais. Para o autor, tais elementos eram explícitos nos espetáculos com a exibição de dançarinas seminuas, nas propagandas veiculadas em revistas, no teor sexual de muitas das canções e nos estilos de dança que faziam sucesso[xx].

Através de diferentes meios, o jazz prometia entregar ao público uma satisfação sexual plena e contínua, embora na realidade só fosse capaz de oferecer uma liberação sexual imediata e passageira. Sob tal perspectiva, essa música também expressava o caráter classista da sexualidade mutilada dos grupos que a consumiam. Asceticamente recolhidos em uma moralidade que condenava o erótico, o jazz servia para a burguesia e para as camadas médias como um substituto inconsciente que dava vazão a toda sua esfera sexual reprimida. Sob o ponto de vista psicológico, “o baile se transformava em um meio de satisfação sexual, ao mesmo tempo que respeitava o ideal da virgindade”.[xxi]

A predominância da dimensão erótica na prática do jazz também estava relacionada a fetichização sexual dos corpos negros, sob os quais pairava o estereótipo de uma sexualidade promíscua. Embora a desinibição sexual fosse condenável e vista de forma abjeta pela sociedade burguesa, ela gerava sub-repticiamente fascínio e curiosidade sobre a estrutura psicológica do público quando transposta aos corpos negros. Consumindo uma música que enunciava uma forma de sexualidade livre, restava aos ouvintes invejá-la em sua interioridade. A partir do fascínio que proclamava em relação a suposta sexualidade selvagem dos negros, o jazz se colocava como uma música progressista nos costumes, enquanto na realidade acabava por reproduzir na exploração sexual de tais corpos a velha dominação racial e de classe.

Como todos os demais fetiches promovidos pelo jazz, sua pretensa excentricidade também criava uma estratégia de sucesso bastante adaptada à subjetividade pouco exigente, infantilizada e mutilada do público, que via em tudo aquilo que pretensamente escapava das normas sociais burguesas um objeto digno de um consumo desmedido. Para Adorno, o apelo ao excêntrico ocorria em diferentes esferas.

Psicologicamente, se atrelava àquela mesma vontade de realização de desejos reprimidos, por meio de imagens e estímulos que se tornavam atraentes por sua singularidade, estranheza e exotismo. Na dimensão social, a intensa vida noturna nos teatros de revista e nos bailes era rica em oferecer ao público elementos excêntricos em seus cenários, figurinos, letras de música e danças, numa encenação caricaturizada dos negros e de suas práticas.

Utilizadas com fins comerciais, tais estratégias tinham como objetivo inserir uma dimensão exótica em meio à “regularidade funcional e ao ritmo da vida burguesa”, dando ao excêntrico um lugar de destaque que permitia a indústria maximizar seus lucros e agradar seu público. Entretanto, operava-se aí mais uma faceta do preconceito constantemente reiterado pelo jazz, no qual o outro é parodiado a ponto de se tornar objeto do riso e do escárnio por excelência. No exercício de sua função ideologicamente orientada, a indústria cultural necessariamente transformava toda a novidade em norma, a origem negra em um mito primitivista, o caráter comunitário em êxtase coletivo e, por fim, as peculiaridades musicais em um exotismo propagandístico. Em suma, o jazz tomou para si o reflexo de uma sociedade que passou a encarar a debilidade do indivíduo como virtude.

Duramente atingida pela quebra da bolsa de valores norte-americana em 1929, a República de Weimar viu sua breve prosperidade econômica rapidamente minguar,[xxii] Diante das consequências drásticas da crise, aquela forte influência norte-americana na cultura alemã também perdeu seu brilho. Em poucos meses, todo estrangeirismo estadunidense passou a ser objeto constante de crítica de amplos setores sociais que denunciavam o caráter regressivo de tais influências. O nacionalismo cultural dirigiu sua denúncia e ataque às vanguardas artísticas, ao expressionismo, ao cinema hollywoodiano, e, evidentemente, ao jazz. Assim, a nova tendência hegemônica na cultura mobilizava uma “nostalgia pelo passado” que buscava na tradição uma cultura germânica “autêntica” e ariana. Nesse ínterim, “a boa valsa vienense voltou a ocupar a frente da cena”[xxiii].

Com a ascensão dos nazistas ao poder em 1933, o jazz passou a ser incluído, dentre tantas outras manifestações culturais, no jargão da “arte degenerada”. Embora Frederico afirme de forma um tanto disparatada que “Adorno apoiou a medida”, ele se esquece de dizer que, para o frankfurtiano, o que se entendia por “jazz” nos Estados Unidos nunca chegou a existir em solo alemão, o que implicava encarar a proibição do estilo para além das aparências e da ideologia proibitiva do regime. Para Adorno, o banimento do jazz não podia ser visto como uma consequência direta da perseguição nazista a certa “degeneração metropolitana” ou a qualquer “exotismo desarraigado”[xxiv] que tomava conta do país; tampouco deveria ser visto como consequência da dissolução de uma “autêntica música negra”[xxv] e moderna que, como já vimos, havia há muito sido descaracterizada.

O jazz alemão, na verdade, já estava conformado de tal forma ao status quo que sua proibição diz mais respeito a um discurso de propaganda do que uma real proibição – afinal, essa música continuou a circular com outros rótulos no país durante os anos seguintes. Assim, Adorno afirma que a proibição do jazz se deveu, acima de tudo, à exaustão do próprio estilo, que forneceu de mão beijada ao nazismo uma série de estereótipos raciais. Sob uma nova figura, a Negerfabel agora aparecia desnuda enquanto discurso de ódio e extermínio.

Nas discussões atuais sobre o jazz, é recorrente identificar naquelas práticas musicais da população negra do sul dos Estados Unidos na virada do século XIX para o XX o nascimento de uma estética bastante peculiar que traçou as bases da síncope, da improvisação, do ritmo e de uma nova forma de se reproduzir e de se executar as canções. Buscamos aqui demonstrar que, a princípio, Adorno não contradiz essa interpretação nem coloca em xeque a origem negra do jazz. Na verdade, seu interesse estava em apontar a forma como tais elementos foram apropriados por monopólios da cultura, os quais transformaram o jazz no novo paradigma da música comercial das nascentes indústrias culturais. Ao longo de sua crítica, Adorno realçou como a mercantilização dessa “novidade” foi feita a partir da veiculação de símbolos, práticas, discursos e representações que mantinham intocado o preconceito racial que recaia sobre os negros e marginalizados.

Em suma, a crítica de Adorno nos permite compreender como o “mito de origem negra” do jazz acabou por servir aos interesses mercadológicos, exercendo assim um efeito alienante e ilusório que integrava de forma racista a imagem dos negros ao imaginário europeu e norte-americano. Eis um bom exemplo daquilo a que Frederico se refere, mas não se aprofunda, quando afirma que o objetivo de Adorno era “explorar as relações entre a estrutura interna do jazz e seu correspondente social, vale dizer, as contradições sociais”.

Dito tudo isso, o leitor pode estar se perguntando a respeito das profundas transformações sofridas pelo jazz nas últimas décadas e sua relação ora tensa, ora de convergência com as reivindicações da comunidade negra. Entretanto, a revolução aí operada foi tamanha que essa é uma discussão a ser travada em outra oportunidade.

*Lucas Fiaschetti Estevez é doutorando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP).

 

Notas


[i] MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonia. Barcelona: Gustavo Gili, 1987; MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004; KUEHN, Frank M. C. Adorno e o jazz: uma questão de gosto, desgosto ou miopia? In: FREITAS, Verlaine et al (org.). Gosto, interpretação e crítica, v.2. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2015. p.110-122.

[ii] PATRIOTA, Rainer. Apresentação à Edição Brasileira. In: BERENDT, Joachim-Ernst; HUESMANN, Günther. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. São Paulo: Perspectiva, 2014. p.15-21.

[iii] WIPPLINGER, Jonathan O. The Jazz Republic: Music, Race and American Culture in Weimar Germany. Social History, Popular Culture, and Politics in Germany. EUA, Michigan: University of Michigan Press, 2017.

[iv] THOMPSON, Mark C. Anti-Music: Jazz and Racial Blackness in German Betwenn the Wars. EUA, Albany: State University of New York, 2018.

[v] ROBINSON, J. Bradford. The jazz essays of Theodor Adorno: some thoughts on jazz reception in Weimar Germany. In: Popular Music. Cambridge: Cambridge University Press, Vol. 13, nº 1, jan. 1994.

[vi] DE GRIEVE, Guillaume. Jazz on air: the role of radio in the emerging of jazz in the Weimar Republic. In: Project ‘Jazz broadcastings in Weimar Germany’. Lovânia, Bélgica: Ku Leuven Faculteit Lettere, 2019.

[vii] Recomendo o site The World’s Music Charts, que reúne as principais informações a esse respeito. Disponível em https://tsort.info/music/ds1930.htm

[viii] ADORNO, Theodor. Moda intemporal – sobre o jazz. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática, 2001, p.117.

[ix] MÜLLER-DOOHM, Stefan. Adorno: A Biography. Polity Press: Cambridge, 2005. p.102.

[x] NOWAKOWSKI, Konrad. Jazz in Wien: Die Anfänge biz zur Abreise von Arthur Briggs im Mai 1926. In: GLANZ, Christian; PERMOSER, Manfred. Anklaenge 2011/2012: Jazz Unlimited. Beiträge zur Jazz-Rezeption in Österreich. Viena: Mille Tre Verlag, 2012, p.19-157.

[xi] WIPPLINGER, op. cit., p.125.

[xii] ADORNO, Theodor W. Crítica de Agosto de 1927. In: Escritos Musicales VI: Obra Completa, 19. Madri: Ediciones Akal, 2014, p.96.

[xiii] ADORNO, op. cit., p.96.

[xiv] Ibid., p.96.

[xv] ADORNO, Theodor W. Sobre el jazz. In: Escritos Musicales IV. Obra Completa, v. 17. Madri: Ediciones Akal, 2008; p. 91-92.

[xvi] Ibid., p.91.

[xvii] Ibid., p.92.

[xviii] LAREAU, Alan. Johnny´s Jazz: From Kabarett to Krenek. In: Org: BUDDS, Michael. Jazz & the Germans: essas on the influence of “hot” American idioms on 20th-century German Music. Monographs and bibliographies in Americam Music, nº 17. Hillsdale, Nova York: Pendragon Press, 2002.

[xix] ADORNO, Theodor W. Ernst Krenek. In: Escritos Musicales V. Obra Completa, 18. Madri: Ediciones Akal, 2011a, p.557.

[xx] ADORNO, 2008, op. cit., p.103.

[xxi] Ibid., p.104.

[xxii] RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). São Paulo: Companhia das Letras, 1988; GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

[xxiii] RICHARD, op. cit., p.213.

[xxiv] ADORNO, Theodor W. Adiós al jazz. In: Escritos Musicales V: Obra Completa, 18. Madri: Ediciones Akal, 2011b, p.829.

[xxv] Ibid., p.829.

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