Por MÁRIO MAESTRI*
Uma vitória da Rússia reforçará a ameaça existencial ao imperialismo ianque. Os EUA são, desde há muito, uma nação que gasta mais do que os impostos que recolhe e importa mais do que exporta
Os objetivos do combate da OTAN à Rússia na Ucrânia
A tensão crescente, que ameaça se agravar, neste segundo semestre de 2024, ou no início de 2025, não é, em sua essência, a tradicional disputa por mercados e matérias-primas, entre os grandes conglomerados imperialistas. Ainda que, nesse caldo amargo que nos é servido, haja muito disto.
Não estamos nos anos da I e da II Guerra Mundial, em tempos de revolução, em que os trabalhadores depositavam as esperanças no socialismo e no comunismo, avançando a história, ainda que em forma trôpega e, finalmente, com o recuo epocal de fins dos anos 1980.
O século 20 iniciou sob a aurora da Revolução de 1917 e se encerrou sob o signo da maré contra-revolucionária capitalista, em 1991, assinalada pela explosão da URSS e pela restauração capitalista na imensa maioria das nações de economia planificada e nacionalizada. [MAESTRI, 07/07/2023.]
Visão esteticista da história
Na esquerda, tornou-se corriqueira visão esteticista do passado que ignora as vitórias revolucionárias que, mesmo terminando sob o jugo do stalinismo, levaram a humanidade aos patamares inferiores da ordem socialista, mas sempre superiores aos da organização e exploração capitalistas. Renegam as lutas, vitórias e derrotas dos oprimidos, por não se enquadrarem em seus paradigmas puristas supra-históricos.
No mesmo sentido e ainda pior, organizações, que se propõem marxista-revolucionárias, abraçam-se, há décadas, ao imperialismo. Festejaram a destruição do pouco que restava da Revolução de Outubro, sob o tacão burocrático. E apoiaram, nas décadas seguintes, operações imperialistas, como as contra a Revolução Afegã, a Iugoslávia, a Sérvia, a Nicarágua, o Iraque, a Síria, a Líbia, Cuba e, hoje, a Venezuela e a Federação Russa. [LIT-CI, 2013.]
O tsunami contra-revolucionário, com ápice em 1989-1991, foi terrível divisor de águas, que vem determinado a vida da humanidade. Ele remodelou uma grande parte do mundo, em prol do capital, em geral, e do bloco imperialista estadunidense, em especial. Avançou a globalização garantindo impiedosa sobre-acumulação de capitais em detrimento da população mundial.
A solução, ainda que transitória, da crise estrutural do capitalismo exige que ele dê salto de qualidade no banquete pantagruélico dos recursos humanos e naturais mundiais. Não lhe bastou a rapinagem da URSS e o avanço sobre muitas de suas ex-repúblicas e das “repúblicas populares”. Insiste em voltar aos tempos em que a Federação Russa era um “negócio da China”, durante a Era Iéltsin [1991-1999], quando o “PIB da Rússia diminuiu quase à metade”.[LOPES, 31.07.2004; CASELLI, 2013; PUSKOV, 2022.]
Balcanização da Federação Russa
O bloco imperialista ianque procura repetir a passada balcanização da URSS, agora em detrimento das vinte e duas repúblicas da Federação Russa. Sonha com a materialização do projeto do imperialismo europeu de explorar os territórios da Rússia-Eurásia até a medula dos ossos e reduzir sua classe trabalhadora à situação de escravos assalariados.
O mesmo projeto que, mutatis mutandis, impulsionou as invasões das estepes russas por nações colonialistas europeias, desde o século 16 – Polônia, 1610; Suécia, 1709; França, 1812; Alemanha, 1914 e, sobretudo, da Alemanha nazista, 1941. [TOYNBEE, 1955: 16 et passim]. A proposta de construção do “espaço vital” alemão, sobre as cinzas da URSS, não foi invenção hitleriana, mas ensaio de materialização de programa histórico do imperialismo alemão e europeu.
Oito anos após a explosão da URSS, apesar das promessas verbais a Mikhail Gorbachev e a Boris Iéltsin, a OTAN avançou em direção das fronteiras russas. Em 1999, incorporou a República Tcheca e a Hungria; em 2004, a Bulgária, a Estônia, a Lituânia, a Letônia, a Romênia, a Eslováquia e a Eslovênia; em 2009, a Albânia e a Croácia; em 2017, Montenegro e, em 2020, a Macedônia do Norte. Em geral, ex-aliados da URSS no Pacto de Varsóvia. [MAESTRI, 13/04/2022; CARDEN, 2020.]
Tropas e armas nucleares da OTAN, junto às fronteiras da Federação Russa, obrigaria-a à rendição, na impossibilidade de defender-se, não apenas de um ataque nuclear. A marcha imperialista para o Leste, impulsionada pela Secretária de Estado Madeleine Albright [1937-1922], quando da administração Clinton [1993-2001], foi criticada, sem sucesso, por acadêmicos, diplomatas, políticos e militares estadunidenses, que defendiam política de colaboração e não de confronto com a Federação Russa. [LOPES, 31/07/2024.]
Breve janela de tempo
A destruição da Federação Russa assumiu caráter de urgência devido à ameaça que o imperialismo estadunidense passou a conhecer, quanto à sua hegemonia mundial, nascida da gênese da República Popular da China como potência imperialista, por um lado, e da reconstrução capitalista da Rússia em um viés defensivo, por outro. [MAESTRI, 2021.]
O imperialismo EUA compreendia que, diante da sua regressão relativa manufatureira e mesmo, tecnológica, cerrava-se rapidamente a janela de tempo de que dispunha para sufocar a ameaça vital posta pela China, apoiado no que lhe restava de superioridade militar, diplomática e financeira, também em regressão. [MAESTRI, 25 jun. 2019.]
E foi o governo ianque que procurara sarna para se coçar. Nos anos 1970, ele aliou-se à China, contra a URSS, facilitando uma restauração capitalista portentosa da nação-continente. Após o fim da URSS, em 1991, com os EUA como a única nação hegemônica mundialmente, o imperialismo estadunidense abraçou incondicionalmente a globalização, nos anos Clinton.
O Partido Democrata, principal expressão política do capital financeiro e imperialista ianque, deu as costas à classe operária manufatureira estadunidense, impulsionando a deslocalização da produção industrial do país, sobretudo em favor da China, para se esbaldar, super-explorando os trabalhadores, os recursos e os mercados amazônicos chineses e orientais.
Os dentes do dragão
Clinton e o Partido Democrata promoveram o ingresso da imensa nação na Organização Mundial do Comércio, transformando-a na fábrica do mundo, como antes foram a Inglaterra e os Estados Unidos. Muito logo, o Dragão Chinês mostrou os dentes, saltando da produção de mercadorias de escasso valor agregado à de produtos tecnologicamente refinados.
Em evolução natural, a produção chinesa assumiu um caráter monopólico, espraiando-se além-fronteiras. Estabeleceu-se, então, competição incontornável entre ela e a produção estadunidense, através do mundo e nos Estados Unidos. [MAESTRI, 2021; SPERANCETE & MARTINS, 2019.]
Durante os governos de Barack Obama (2009-2017), ensaiou-se reação ao dinamismo mundial chinês, que questionava a hegemonia dos Estados Unidos. Donald Trump prosseguiu nessa linha, em uma visão mercantilista, e no governo de Joe Biden, passou-se a enfrentar a disputa com a China desde uma ótica militar. [O POVO, 18 JAN. 2021; CASA BRANCA, 20/05/2022.]
Renascimento capitalista
Em 2000, a ameaça aos EUA se agravou, com o advento da Era Putin. O neopresidente russo delimitou uma área pública – energía e indústria militar, sobretudo –; reconheceu a “acumulação primitiva” realizada com a rapinagem dos bens estatais; limitou, sob ameaça de expropriação, a ingerência política dos mega-capitalistas. O novo Estado bonapartista burguês legalizou e ordenou a acumulação capitalista e empreendeu a defesa da independência nacional da Federação. [ISHCHENKO, 2024.]
Em 2014, a marcha para o Leste da OTAN-EUA deu salto de qualidade com o golpe de Estado na Ucrânia, contra a Federação Russa, que respondeu recuperando a Crimeia, cedida administrativamente à Ucrânia, em 1954, quando ela e a Rússia faziam parte da URSS. Medida então sem maior repercussão para a população.
Ao golpe de Estado, após 2014, sem solução de continuidade, se passou à Guerra contra o Donbass, avançada pelo novo Estado ucraniano, apoiado pela OTAN. A Federação susteve fracamente e não perfilhou o separatismo das repúblicas de Donec’k e Luhans’k, no noroeste industrializado da Ucrânia. Exigia pouco mais do que uma autonomia federativa no interior da Ucrânia pacificada, com respeito à população etnicamente russa.
Um novo fascismo
O ingresso da Ucrânia na OTAN levaria as tropas ocidentais ao pé das fronteiras da Federação Russa, colocando-a na impossibilidade de defender-se. Pretendia-se aplicar a receita que explodira a Iugoslávia, no contexto da destruição da URSS, estraçalhando a Federação Russa em quatro ou cinco nações, como proposto. [PETRONI, 2022, p. 45; ISHCHENKO, 2020.]
Com a explosão da Rússia, o bloco imperialista ianque, super-vitaminado, partiria para a submissão da República Popular da China, isolada. Reconstruiria-se, assim, em um patamar superior, a hegemonia monopolar ocidental, esperava-se estável e secular, dos anos seguintes à destruição da URSS, em um sentido hiper-autoritário e, mesmo, fascistizante. [KARAGANOV, 2020.]
Impunha-se um ataque à Rússia-China em duas etapas. Os estrategistas imperialistas propõem que os Estados Unidos possam vencer um conflito aberto contra a Federação Rússia ou contra a República Popular, separadas, mas que seriam, certamente, derrotados, contra elas, unidas.
Após o golpe de Estado, de 2014, a OTAN preparou militarmente a Ucrânia para atacar, em inícios de 2022, as Repúblicas do Donbass e, a seguir, a Crimeia. Decreto de Zelensky, de 24 de março de 2021, portanto, um ano anterior ao conflito de 2022, determinava que o exército ucraniano se preparasse para recuperar o Donbass e a Crimeia.
De fato, não de jure
O ataque obrigaria, como sua ameaça obrigou, a Federação Russa a ensaiar resposta militar ou assinalaria sua rendição. Para tal, a União Europeia, a OTAN, os EUA desrespeitaram conscientemente os acordos de Minsk I (09/2014) e II (02/2015), previstos para solução pacífica da questão do Donbass e da Crimeia, como reconheceram, publicamente, Emmanuel Macron e Angela Merkel os garantidores pela França e Alemanha dos mesmos. [KORTUNOV, 2020.]
A OTAN negou-se igualmente a discutir as garantias mínimas de segurança pedidas pela Federação. Diante da incorporação acelerada, de fato, e não de jure, da Ucrânia à OTAN, a Federação Russa lançou a Operação Militar Especial, em 24 de fevereiro de 2022, para obrigar o governo ucraniano a pacto de neutralidade militar. [BAUD, 2024, 46, 96; MAESTRI, 2022.]
As negociações entre a Federação e a Ucrânia, iniciadas após o início do conflito, aproximavam-se da conclusão, com a concessão russa do ingresso ucraniano na União Europeia, que poria fim à histórica associação econômica com a Rússia. Elas foram interrompidas pela pressão de Boris Johnson sobre Volodymyr Zelensky, em nome do bloco imperialista ianque. O presidente ucraniano retornou à sua decisão de libertar militarmente, o Donbass e a Crimeia, da Federação Russa.
Uma guerra breve, com a destruição econômica da Federação Russa
A OTAN prometeu uma guerra breve, contando, não com uma derrota militar da Federação Russa, mas com uma crise geral de sua economia e, consequentemente, de sua sociedade e de seu ordenamento nacional, sob o peso esmagador das infindáveis sanções impostas, desde 2014, e exacerbadas após o início conflito – atualmente, em torno de vinte mil. [BAUD, 2024, 35.]
O bloco imperialista ocidental previa o isolamento diplomático da Federação Russa e a sua transformação em nação-pária, operação na qual obtiver bons resultados com o Iraque de Saddam Hussein; com a Líbia, de Muammar al-Kadafi, com a Síria, de Bashar Al-Saddad, com a Coreia do Norte e com o Irã dos aiatolás. A derrota militar seria consequência da desorganização econômica.
Havia muito que a população europeia era bombardeada por uma insidiosa campanha russofóbica. Na Alemanha, França, Polônia, países bálticos e por aí vai, proibiu-se escutar razões que não fossem as da OTAN. A língua, cultura, história, etc. russas foram demonizadas. Da direita à extrema-esquerda participou-se da campanha. Os partidos verdes babaram sangue.
Recuos e avanço
Optando Zelensky pela guerra, as tropas russas, em torno de Kiev, dirigiram-se para o sudeste da Ucrânia, a histórica Novarossija (Nova Rússia), ou seja, os oblast de Luhans’k, Donec’k, Kherson e Zaporizhzhia. Desde 2014, essas regiões sofriam operação de limpeza étnica. Ela procurava liquidar, pela força, a língua e a cultura tradicionais russas, dominantes na Ucrânia Oriental, e impor identidade nacionalista centrada na Ucrânia Ocidental, o palco da colaboração com o nazismo, em chave anti-soviética, anti-judaica e anti-polonesa, durante a II Guerra Mundial, onde não se fala russo. [TRET’JAKOV, 2024, p.122.]
Em 2014, após o golpe de Estado na Ucrânia, a sublevação das repúblicas separatistas do Donbass eclodiu com o início da limpeza étnica: proibição da língua russa, com a abolição da lei Kivalov-Kolesnichenko, em 23/02/2014; formação das milícias fascistas Aïdar, Azov, Dniepr-1, Dniepr-2, Donbass. [BAUD, 2024, 164].
Os EUA-OTAN propuseram que o deslocamento dos vinte mil soldados, das cercanias de Kiev para o sudeste, juntando-se ao grosso das forças russas, seria uma grave derrota militar russa. Entretanto, jamais fora objetivo da Federação ocupar a capital e a Ucrânia, operação que exigiria um milhão de soldados, e não os 140 mil da Operação Militar Especial.
Reconquista de Kherson e Krarkov
Em março, setembro e outubro de 2022, as tropas russas, em inferioridade numérica diante dos 700 mil soldados ucranianos, cederam em forma organizada importantes territórios do oblast de Kherson e a sua capital, Kharkov, permitindo que a população ucraniana pró-ocidental retomasse a confiança na promessa da OTAN de uma próxima vitória. [ISCENKO, 2024, p. 92.]
Após as vitórias de fins de 2022, exultante, Volodymyr Zelensky declarou que não negociaria a paz-rendição da Rússia com Putin no governo. Aqueles sucessos foram interpretados superficialmente. Desde o início do conflito, o exército russo perseguiu o depauperamento das forças armadas ucranianas, secundarizando os avanços territoriais. “O cálculo russo é que o terreno perdido pode ser recuperado”, enquanto os soldados mortos, não. [BAUD, 2024, 75, 105, 141.]
Em 21 de setembro de 2022, compreendendo o novo caráter do enfrentamento determinado pela OTN, a Federação Russa decretou mobilização de 300 mil reservistas e voluntários. E, apoiada parcialmente em milícias privadas, com destaque para as tropas Wagner, estabilizou a frente de combate, obtendo-se algumas vitórias significativas, como em Bakmut, em março de 2023. [Idem, 106.]
Em 4 de junho de 2023, sob um radioso verão europeu, iniciou-se a anunciada contra-ofensiva ucraniana, cuidadosamente preparada pela OTAN. Esperava-se rápida ruptura das linhas defensivas russas, com penetração em forma de cunha, em direção ao mar de Azov, cortando em dois os exércitos russos, isolando e ocupando a Crimeia. A Federação Russa preparara entrincheiramento, em três linhas, fortemente minado e artilhado. O que não era esperado.
Fracasso geral
Os planos dos generais da OTAN-EUA, de vagas de assaltos de tanques e infantaria, repetiam práticas próprias à II Guerra Mundial, inadequadas ao domínio dos ares e da artilharia pelos russos e aos novos tempos de hegemonia dos drones, nova maldição dos blindados desprotegidos. Fonte ucraniana relata que, em apenas um ataque, em poucas horas, foram perdidos mais de 150 veículos, entre eles, doze Leopards e quinze Bradley. [BAUD, 2024, 208-209].
Sem contar com apoio aéreo e em inferioridade quanto à artilharia, o fracasso da contra-ofensiva ucraniana foi geral, sem ter jamais superado a primeira das três linhas de defesa russas. Foi golpe terminal em exército depauperado, com perdas de soldados veteranos insubstituíveis, que se somaram às dizimações das campanhas anteriores. Com o fracasso militar, seguido do afastamento do prestigiado general Valery Zaluzhny, em 29 de janeiro de 2024, por Volodymyr Zelensky, despencou o apoiou da população ao presidente. [ISCENKO, 2024, p. 92.]
Apesar de prosseguirem as narrativas sobre uma campanha às portas do sucesso, era mais do que previsível a derrota ucraniana, consubstanciando o fracasso geral da campanha EUA-OTAN de dissolução da Federação Russa sob as sanções, o isolamento diplomático, os golpes militares. O que não foi nenhuma surpresa aos analistas não obliterados pela fúria russofóbica imperialista.
Depois de 2014, a Federação Russa compreendera que o ataque da OTAN era certo. Vendera os títulos da dívida estadunidenses; armazenara reservas em ouro; repatriara fundos depositados na União Europeia. Sobretudo, superara o armamento ocidental quanto aos mísseis hipersônicos, balísticos e de cruzeiro; à guerra eletrônica; à defesa aérea. Azeitara a indústria bélica estatal, herdada da URSS, que mantivera a unidade da cadeia produtiva.
Lei do retorno
A militarização da produção e a expansão das exportações de petróleo, gás, adubos, grãos, etc., para novos e antigos compradores, impulsionaram o PIB, a população nacionalmente ativa, o aumento dos salários na Federação Russa. O projetado isolamento diplomático reduziu-se à Europa e aos aliados-súditos do bloco imperialista, sobretudo. Ainda que não poucas empresas e bancos internacionais retraíram-se em relação à Federação Russa, temendo as sanções estadunidenses, sobretudo.
Aprofundou-se a aliança política, diplomática e econômica da Federação com a China, com o Irã e com a República Popular da Coreia, o que aliviou o isolamento do último país, sob a pressão imperialista. E a China manteve a estreita aliança com a Federação e respondeu à intromissão da OTAN, no Pacífico, com uma inesperada incursão, na Europa, quando das recentes manobras militares conjuntas com a Bielo-Rússia. [MINAKOV, 2024, p.73.]
Entre os novos membros do BRICS+, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Irã, encontra-se a estratégica nação-cliente dos EUA, a Arábia Saudita, minando o pagamento do petróleo em dólar (petrodólar). Importante parte do mundo negou-se igualmente a voltar as costas à Rússia, cansada das prepotências do Tio Sam e de seus aliados. Avançou entre as nações a vontade de se desatrelar de um dólar que ameaça a rolar ladeira abaixo, em forma cada vez mais perceptível.
Aliados-súditos históricos dos EUA – a Arábia Saudita, Iraque, África do Sul e, mesmo, o Brasil – começaram a procurar a proteção do guarda-sol russo-chinês. O próprio governo italiano da neo-fascista e pró-estadunidense Giorgia Meloni repensa a desfeita que fizera inicialmente à China. A Índia, nação continental, negou-se a isolar seu tradicional aliado e fornecedor de armas. Países africanos mostram a cara emburrada aos Estados Unidos e aos antigos senhores europeus, com destaque para a França de Emmanuel Macron.
Um tiro pela culatra: guerra e crise na União Europeia
As sanções prejudicaram em forma limitada a economia russa e caEUAram estragos enormes à europeia, sobremaneira à Alemanha, obrigada a substituir o petróleo e o gás russo, barato, pelo estadunidense, custoso. Em 2023, o PIB tedesco recuou em 0.3%. [Le Monde, 1/08/2024.] Um dos objetivos da ofensiva ianque na Ucrânia foi quebrar os laços econômicos Alemanha-Rússia, pondo em marcha-lenta a ex-locomotiva europeia. A inflação do euro, organizada para corroer os salários e relançar a competitividade, ampliou a crise política na União Europeia, enquanto Vladimir Putin manteve alto consenso na Federação Russa. [OFICEROV-BEL’SKIJ, 2024, p. 127.]
Boris Johnson, inimigo visceral da Rússia, defenestrado do governo, foi substituído por primeiros-ministros que terminaram entregando o bastão aos trabalhistas, para que a russofobia inglesa fosse sustentada por administração legitimada pelas eleições. Keir Starmer, o novo primeiro-ministro inglês, apressou-se a declarar apoio total à campanha da OTAN. Atualmente, enfrenta insurreição popular contra a imigração selvagem, fogueada pela direita racista.
A renúncia preventiva da chanceler Angela Merkel, que impulsionara a economia alemã apoiada na energia russa a baixo preço, entregou o poder à coligação pro-bélica dita “semáforo” – sociais-democratas, vermelhos; liberais, amarelos; ecologistas, verdes. O letárgico chanceler social-democrata Olaf Scholz enquadrou-se servilmente aos EUA, que ocupam militarmente a Alemanha desde o fim da II Guerra Mundial, e deixou a economia do país despencar.
O governo semáforo, apenas piscando, já que curto de energia, sobrevive como um walking dead, sob rejeição popular maciça e avassalador avanço de um populismo anti-europeísta, anti-globalista, anti-imigracionista e pacifista. A Alternativa para a Alemanha [Alternative für Deutschland] é atualmente o segundo partido nacional e o primeiro nos territórios da ex-República Democrática, e segue crescendo.
Estado autoritário
Apesar de proibir desde sua fundação, em 2013, a adesão de militantes de extrema-direita, a AfD encontra-se sob a ameaça de dissolução, já que a legislação autoritária alemã permite a repressão de cidadãos e organizações que se oponham à ordem democrática vigente, em palavras mais claras, ao liberal-capitalismo vigente. Em torno de 40% da população alemã declarou não expressar livremente suas opiniões políticas, por medo das consequências. [STEINMANN, 2024, 51-61.]
Na França, Emmanuel Macron, após ataque geral aos trabalhadores, assalariados e segmentos médios, enquanto anunciava envio de tropas à Ucrânia, dissolveu o parlamento, procurando recuperar-se da enorme derrota nas eleições para o Parlamento Europeu. Nas eleições que convocou, o seu partido não foi arrasado apenas devido à tradicional política da esquerda de votar, nos segundos turnos, com o governo do grande capital, sob a escEUA de barrar a direita populista, anti-europeísta, anti-imigracionista, anti-guerra, que ela define de fascista, sem mediações.
A direita populista francesa, o Ressemblement National [Reagrupamento Nacional], de Marine Le Pen, nas eleições para o Parlamento Europeu, de junho deste ano, se transformou no primeiro partido da França, com dez milhões de votos, e segue também crescendo. O RN conta hoje com o substancial apoio dos trabalhadores que, no passado, votavam na esquerda, em geral, e no Partido Comunista Francês, em especial.
Na Europa, cresce o desgosto com a degradação das condições de vida das classes populares e médias; com a perda da soberania nacional para as instituições europeias, controladas pelo globalismo; com imigração selvagem, incentivada para deprimir os salários e a resistência sindical; com o financiamento milionário do conflito na Ucrânia e promessa de guerra geral contra a Rússia e a China, se não é possível agora, nos próximos anos.
Votem, quem decide sou eu
Na Alemanha, a Polônia, a França, a Holanda e a Itália, sem partidos de esquerda que defendam seus interesses, os empregados e os desempregados, os com e os sem trabalho, os quase e os já pobres, etc., voltam-se para partidos da direita populista nacional-autonomista, anti-imigração, comumente pacifistas. Sendo acEUAdos por isso, como alienados, por uma esquerda que persevera em uma pauta estranha às reivindicações do mundo do trabalho e das classes populares.
Em 6 a 9 de junho, a eleição para o Parlamento Europeu registrou o esperado crescimento dos partidos populistas, anatematizados, todos eles, em forma linear, simplória e oportunista, como fascistas, semi-fascistas e pós-fascistas pelos defensores das políticas privatistas, globalistas, sociais-liberais e liberais e, portanto, anti-populares.
Nos últimos anos, as instituições europeias serviram-se dos partidos verdes e ecologistas para arremeter contra a pequena e média economia agro-pastoril, para pôr fim aos subsídios e depreciar os preços dos gêneros de subsistência, aumentando a competitividade da economia europeia. A substituição da produção agro-pastoril por importações destruirá as pequenas e média explorações camponesas e a diversidade e singularidade de seus produtos, assim como paisagens rurais de raízes milenares. E aumentará o desemprego e a pobreza rural.
A culpa é da vaca
Na Dinamarca, sob o aplauso vegetariano e ecologista, aprovou-se a taxação, a partir de 2030, de cada cabeça de gado vacum, por produzir gás carbônico ao ruminarem e defecarem. As mega-manifestações de agricultores obrigaram os governos das nações agrícolas e as instituições europeias a recuarem quanto, entre outras propostas, à de redução forçada anual das áreas plantadas. Os partidos verdes e ecológicos, na vanguarda dessas e de outras políticas semelhantes, despencaram nas eleições de junho.
Ao ser empossado o Parlamento Europeu, os partidos globalistas – de direita, de centro e de esquerda -, que mantiveram, ainda, uma ampla maioria simples, desconheceram olimpicamente os eleitores que expressaram o desgosto com a governança supranacional, europeísta, globalista, militaristas, imigrantista. Mandaram literalmente a democracia que propõem que defendam às favas.
O novo Parlamento Europeu comportou-se simplesmente como o antigo, como se nada tivesse ocorrido. Reelegeu, entre outros figurões, como presidenta da União Europeia, a senhora Ursula Von der Leyen, conservadora, de família aristocrática alemã, acEUAda de corrupção em compra milionária de vacinas. Babando sempre sangue contra a Federação Russa, ela se notabilizou ao ser acEUAda de plágio de sua tese de doutoramento em Medicina, defendida nos EUA.
Pipa nova, vinho velho
Dirigentes nacionais e das instituições europeias perseveram irredutíveis em orientação política, que compromete a economia, a sociedade e a segurança do Velho Mundo, mais e mais questionada por uma população que se esforçam para manipular. O aparente comportamento paradoxal deve-se a terem “ligado o próprio destino político, a própria carreira, o próprio bem-estar material” a essas orientações. [TRET’JAKOV, 2024, p. 117.] A dependência do status simbólico e material pessoal às funções que desempenham, leva-os a acreditar ou a querer acreditar nas narrativas irreais que propõem e defendem.
Uma das primeiras medidas votada pela maioria dos deputados do Parlamento Europeu foi seguir o financiamento milionário da guerra da OTAN, para dessangrar um pouco mais a Federação Russa, às custas da destruição da população e da nação ucraniana, em guerra sabidamente perdida. E, possivelmente, para tentar preparar a continuidade do conflito em outro patamar, cega ou aparentemente cega ao fracasso patente da operação imperialista euro-estadunidense.
Os chefes políticos e militares ucranianos, obedientes às ordens da OTAN, seguem enviando ao combate simulacros de soldados, caçados, a laço, nas ruas, ônibus, cinemas, escolas, como os voluntários de “pau e corda” mandados acorrentados pelo Império do Brasil para combater a República do Paraguai, em 1865-70. [MAESTRI, 2017.] Sem condições físicas e de saúde, doentes, abobalhados, com até sessenta anos, com alguns poucos dias de treinamento, são ceifados, mal chegam aos campos de batalha.
A Rússia não pode vencer! e se vencer?
Há três meses, completado o esgarçamento das tropas ucranianas, os exércitos da Federação Russa passaram à ofensiva, primeiro lenta, conquistando alguns quilômetros por dia, e, logo, acelerando o passo, resguardando suas tropas e dizimando as oponentes. Atacam, ao mesmo tempo, em diversos pontos dos mais de mil quilômetros de frente de combate, conquistando incessantemente trincheiras, aldeias e pequenas cidades. E as tropas, sob às ordens de Volodymyr Zelensky, perseveram em ataque publicitários, para uso externo, como o atual, além das fronteiras russas, depauperando ainda mais as tropas ucranianas.
Apesar do controle geral da mídia, a população do ocidente da Ucrânia, que apoiou o conflito em seus começos, inicia a dar sinais de cansaço e de oposição ao governo e à guerra suicida. Começa a compreender a impossibilidade de vitória e que a guerra não é lutada em defesa de seus interesses. E a importante população de fala e cultura russa, ainda sob o controle de Kiev, apesar da forte repressão que sofre, inicia a levantar a cabeça.
O desgosto popular cresce com a inflação, com o desemprego e, agora, com a nova lei de mobilização geral forçada, que acelerou a fuga de homens sobretudo através das fronteiras com a Romênia, a Hungria, a Moldávia e a Rússia. [Le Monde, 06/08/2024.] Uns dez milhões de ucranianos, 1/4 da população em 2020, se encontram refugiados sobretudo na União Europeia e na … Rússia, que abrigaria mais de dois milhões de prófugos. Isso, sem contar a população russófila da Crimeia e das regiões do sudeste incorporadas à Federação Russa.
Ninguém quer ir à guerra
Se bem, em maioria, os expatriados sejam mulheres [46%], crianças [21%], e apenas 21% de adultos, mais de 860 mil ucranianos, em idade de serviço militar refugiaram-se na União Europeia. Uma população masculina sem intenções de retornar para se incorporar ao exército onde, com a enorme carência de soldados, não se cumpre o contrato de dar baixa após três anos de serviço. A incorporação ao exército ucraniano é hoje uma espécie de quase contrato com a morte. [SCAGLIONE, 2024, p. 59.]
Pesquisas realizadas nos últimos meses apontam que, em torno de 65% dos refugiados, na União Europeia, não pretendem voltar à Ucrânia após o fim da guerra. E a inevitável aclimatação no exterior, em uma estadia que se demora, está levando a que mulheres refugiadas estejam se divorciando de seus maridos que permaneceram na Ucrânia, integrados às forças armadas ou à produção. [MINAKOV, 2024, p.70.]
Em 1991, ao se separar da URSS, a Ucrânia possuía uns 52 milhões de habitantes. Antes da guerra, alguns analistas propõem que apenas ultrapassaria os 37 milhões de habitantes. Perdas devido à imigração e à queda histórica da natalidade. Em 2001, a taxa de natalidade ucraniana era de 1,09 filhos por mulher, sendo necessários 2,01 filhos, para um pequeno crescimento. Atualmente, a população sob o controle de Kiev superaria apenas os 20 milhões de nacionais, com destaque para os velhos, as mulheres, as crianças. [MOSCATELLI, 2024, p. 111; OFICEROV-BEL’SKIJ, 2024, 129.]
Sem luz, sem água, sem aquecimento
Populares ucranianos manifestam reclamando da falta de energia no país, onde Volodymyr Zelensky segue no governo ilegalmente, com seu período presidencial encerrado em 20 de maio. Desde o início do conflito, a Ucrânia vive sob a ditadura militar de fato, exercida por Zelensky, que, já, em março de 2022, ilegalizou onze partidos políticos do país e passou a reprimir, como pró-Rússia, qualquer dissidência ao seu governo. [ISHCHENKO, 2022.]
A rendição de soldados ucranianos aumenta, aos saltos. Em 2022, foram abertos 9.400 processos militares por deserção. Em 2023, 24 mil. Apenas nos seis primeiros meses de 2024, os processos já se elevavam a trinta mil. [REALITY OF WAR, 5.08.2024.] Nos últimos tempos, segundo dados subestimados de Kiev, em torno de 140 mil ucranianos mudaram-se, de mala e cuia, da Ucrânia para os territórios controlados pela Federação. [MINAKOV, 2024, p.70.]
Com a chegada do inverno, a falta de energia, e, portanto, de luz, de aquecimento, de água – em Kiev, nos edifícios, a água chega apenas até o quarto andar-, espera-se nova onda de milhares de refugiados, sobretudo em direção à União Europeia, mas também da Federação Russa, com o mercado de trabalho em expansão. [MINAKOV, 2024, p. 73.] Os novos chegados não serão recebidos de braços abertos, como em inícios de 2022.
Oficiais superiores se negam a lançar as tropas em ofensivas suicidas de objetivos propagandísticos. A dissociação com o governo e com a guerra tem motivado agressões aos odiados recrutadores. Sobretudo, mas não apenas em Odessa, com enorme população etnicamente russa, comandos urbanos noturnos incendeiam veículos das milícias de recrutadores. Na noite de 23 de julho, cinco veículos arderam em Odessa, cidade onde Kiev sufocou, em 2 de maio de 2014, em um banho de sangue, a oposição da população ao golpe de Maidan. Em agosto, grupos da resistência incendiaram sistemas de distribuição de eletricidade em Odessa. [TRET’JAKOV, 2024, 117.]
A Rússia não pode Vencer
Desde o início do conflito, políticos, periodistas, ideólogos favoráveis ao bloco imperialista afirmam que a Rússia não pode vencer. Despejam-se bilhões de dólares no esforço militar e atiça-se a russofobia da população europeia, proibindo intercâmbios universitários; a apresentação de esportistas, de artistas, de peças teatrais, de música russa. Na Alemanha, a expressão de manifestação em defesa da Rússia ou contra de Israel é delito punido pela lei. [PETRONI, 2020.]
Turistas russos são proibidos de ingressar em países da União Europeia que mantém relações diplomáticas com a Federação. Aterroriza-se a população com fantasiosa invasão da Europa, até o Algarve português, caso o “diabólico” Vladimir Putin e as hordas de ex-bolcheviques vençam. Mesmo sabendo que a Federação não tem intenção, interesse e as condições mínimas para invadir a Europa. Os exércitos da OTAN superam em muito os russos, em todos os domínios, menos no nuclear.
A proclamação incessante que a Rússia não pode vencer não é apenas publicitária. A cada vez mais provável vitória da Federação Russa constituirá golpe duríssimo no bloco EUA-OTAN, de amplitude difícil de ser plenamente avaliada. Sobretudo, ela desorganizaria a ofensiva-expansão da OTAN, desde 1999, após a explosão da URSS, contra o leste europeu.
O rei está morto, morte ao rei
Uma vitória da Rússia inviabilizará a Ucrânia como cunha do imperialismo, colocando Volodymyr Zelensky e o círculo governamental na necessidade de explicar por que levaram o país a tal hecatombe. Ela fortaleceria a oposição da população ao governo globalista supra-nacional da União Europeia, enfraquecendo os partidos e políticos belicistas, europeístas, globalistas, imigrantistas europeus.
Um tal sucesso reforçará o deslocamento de nações mantidas até agora sob a hegemonia do bloco imperialista, através da política “da cenoura e do bastão”, que se serve, cada vez mais, do bastão, e oferece, cada vez menos, cenouras. Dissidência que já ocorre, no Velho Mundo, quanto à Hungria, à Eslováquia e a Georgia, esta última nação sob fortíssima pressão do bloco imperialista.
O sucesso da Federação Russa consolidará sua aliança com a China, imporá recuou militar e diplomático aos Estados Unidos no Pacífico, debilitará o apoio popular estadunidense e dos aliados-súcubos à aventura naquela região do mundo. Ele porá fim ou enfraquecerá fortemente à proposta de extensão da OTAN ao Pacífico e fará avançar o BRICS+ em detrimento do G7.
Apoiada no BRICS+, a diplomacia chinesa alcança importantes sucessos, aproximando o Irã da Arábia Saudita e, agora, o Hamas do Fatah, unidos em defesa da resistência contra o sionismo. A República Popular da China é a nação em melhores condições para mediar conversações entre a Rússia e os Estados Unidos, pela paz na Ucrânia.
O fim dos tempos
Uma vitória da Rússia reforçará a ameaça existencial ao imperialismo ianque. Os EUA são, desde há muito, uma nação que gasta mais do que os impostos que recolhe e importa mais do que exporta. A sustentação dos Estados Unidos, há décadas, depende da capacidade de se endividar, a baixo preço, e de financiar-se produzindo papel-moeda, entesourado através do mundo, como moeda de troca-refúgio internacional, etc. [MAHBUBANI, 2021.]
O reino do imperialismo estadunidense é sustentado pela hegemonia mundial do dólar, que, por sua vez, apoia-se na supremacia militar-diplomática estadunidense. As quase mil bases militares dos Estados Unidos através do mundo não são gastos improdutivos, mas imprescindíveis para manter o seu status mundial. Entretanto, como o imperialismo, o dólar encontra-se, igualmente, em decadência tendencial, que pode se acelerar com uma vitória da Federação Russa na Ucrânia.
No início do ano, a dívida pública estadunidense ultrapassou os 35 trilhões de dólares, mais do que o PIB anual do país e umas treze vezes o do Brasil. Realidade que forçou a subida da taxa de juros dos títulos públicos dos EUA para em torno de 5,5% ao ano. Em 2022, mais de 15% dos recursos públicos do país destinavam-se ao pagamento dos juros e amortização da dívida. Em fins do ano seguinte, o governo EUA já pagava mais de um trilhão de dólares anuais como juros e amortizações da dívida, que seguem crescendo. Hoje, em relação ao PIB, os gastos militares e com o pagamento da dívida dos EUA estão emparelhados.
O principal golpe de um fracasso na Ucrânia será o eventual enfraquecimento do dólar, com uma maior autonomia nacional e financeira das nações envolvidas em sua enorme área de ação, tomando distância de uma moeda que se desvaloriza nas últimas décadas, mas que é, ainda, a grande referência internacional. Porém, devido à enxurrada de sanções contra a Rússia, Bielo-Rússia, China, Venezuela, Nicarágua, Irã, Coreia do Norte, Cuba, Síria, através do mundo, os bancos centrais mundiais estão trocando dólares por ouro e por outras divisas, como reservas financeiras. Temendo massificar essa tendência, também em relação ao euro, a União Europeia resiste às propostas de financiar a guerra da Ucrânia com as divisas russas congeladas nos bancos do Velho Mundo.
De pires na mão
Um avanço e uma consolidação das trocas internacionais à margem do dólar assentariam um golpe terrível na economia dos Estados Unidos. O retorno selvagem e incessante, como um estouro de manada de gados bravios, de trilhões de dólares desvalorizados aos Estados Unidos, poria fim ao padrão tradicional de sustentação de sua economia e sociedade, por meio de importações multitudinárias, sem as correspondentes exportações. Isso lançaria a sociedade estadunidense em situação caótica, com uma empenada terrível do custo de vida. A economia mundial seria igualmente atingida por esse movimento de portada histórica. A atual disputa à morte entre republicanos e democratas deve-se igualmente à divergência de como enfrentar tal situação.
Uma vitória da Rússia, na Ucrânia, não constitui, portanto, um fracasso conjuntural, possível de ser superado, a médio prazo, com algum esforço e arranjos. Ela pode encurtar, nos seus desdobramentos, a sobrevida de hegemonia imperialista e fragilizar os capitais deles dependentes no país e no mundo. Os estrategistas da OTAN tomam consciência do quase certo fracasso de sua operação na Ucrânia e essa avaliação começar a se espraiar através da Europa. Apreciamos, agora, a substituição, calibrada, das narrativas triunfalistas por novas, que falam de uma paz que significaria um meio-fracasso russo, já que a Federação não teria conquistado toda a Ucrânia o que, como proposto, estava fora das intenções e possibilidades russas.
Angustiados com o seus destinos pessoais, Volodymyr Zelensky e os seus auxiliares próximos anunciam, pela primeira vez, a disposição de negociar a paz. Proposta publicitária devida à eventual eleição de Donald Trump. Ela registra, também, a constatação de um apoio europeu reticente com a possibilidade de um financiamento da guerra, em 2025, com destaque para a Alemanha. Volodymyr Zelensky e seu círculo têm os seus destinos financeiros e pessoais atados a uma, no mínimo, meia-vitória, igualmente cada vez mais distante.
Uma fuga para adiante
Na OTAN, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Polônia, nos países bálticos, persistem apoiadores da radicalização imediata e salto de qualidade do conflito, para dar-lhes uma nova dimensão, através sobretudo da concessão de mísseis capazes de atingir os territórios russos em profundidade. Defendem que tais ataques obrigariam à Federação a negociar em situação fragilizada, apesar dela avançar na linha de combate. Os técnicos da OTAN para o manejo de tais armas já prestam serviços na Ucrânia.
Um ataque ao coração da Federação Russa significaria uma intervenção, de fato, da OTAN. Ele seria inaceitável ao governo, às forças armadas e à população da Rússia, ensejando uma dura resposta que obrigaria a OTAN a discutir uma intervenção direta na Ucrânia. É tudo o que deseja Volodymyr Zelensky, os falcões da administração Biden, a Polônia, a Lituânia, a Letônia e a Estônia.
A proposta de uma intervenção direta de tropas da OTAN foi defendida, em forma fluída, nos últimos meses pelo presidente Emmanuel Macron, antes de seu fracasso eleitoral, e apoiada pelos governos da Polônia e dos países bálticos. Ela foi rejeitada pelos Estados Unidos e pelos principais governos europeus, entre eles, a Alemanha. Trata-se de ameaça retórica, procurando amaciar a Federação Russa, forçando-a a concessões que diminuam a extensão e o impacto de sua vitória, quando de eventuais discussões sobre o fim conflito.
Sem soldados não há guerra
A derrota da Rússia pode ser questão de extrema importância para o bloco. Não há, porém, possibilidade de reverter a situação na Ucrânia, nos próximos meses. Os estrategistas da OTAN falam na necessidade de, no mínimo, trezentos mil soldados europeus, para uma ofensiva na Ucrânia, contra a Rússia, hoje com um exército em torno de mais de um milhão de soldados, armados e treinados, com uns 400 mil combatentes fogueados envolvidos na Operação Militar Especial.
As tropas das nações europeias prontas para o combate somariam, no total, uns cem mil soldados, caso todos os membros da OTAN aceitassem enviar seus homens para um combate em que a Federação Russa e a Bielo-Rússia declararam que defenderão os seus territórios com armas atômicas táticas, se atacados. Na França, na Itália, na Alemanha e mesmo na Polônia, a partida de alguns milhares de soldados das tropas regulares para atacar a Rússia ensejaria um caos geral político e social.
Os governos militaristas europeus podem enviar rios de recursos à Ucrânia para gastos civis e militares. Não podem enviar populares armados para a guerra. A OTAN não tem os soldados, não tem o armamento, não tem a articulação militar necessária para uma pronta intervenção contra a Rússia. Enfrentar a Federação Russa, agora, não depende de decisão da OTAN, já que é uma iniciativa inexequível.
Responsáveis do pacto dito atlântico propõem, agora, preparação continental para esse ataque, em três, cinco e mais anos, o que é um exercício retórico. Ainda mais com a possibilidade da vitória próxima da Federação Russa, é imponderável a sorte de não poucos governos da Europa, alguns, em curto e médio prazo. Os analistas geopolíticos ditos ocidentais não incorporam às previsões que publicam a ação e o dissenso das classes trabalhadoras e populares.
Duas pedras no caminho: a Palestina e a disputa Trump-Harris
Além do despreparo militar da OTAN, duas outras questões impedem uma radicalização imediata na Ucrânia, para impedir a debacle em curso. Primeira. A ofensiva genocida do sionismo na Palestina se alastra perigosamente. Hoje, Israel combate o Hamas, em Gaza, e ataca a população palestina, na Cisjordânia. Faz rufar os tambores, no norte de Israel e no sul do Líbano, contra o Hezbollah, que provou a competência ao vencer as tropas sionistas em 2006. [CHAMMA, 2018.]
E, se tudo isso não bastasse, as forças armadas sionistas quebram lanças com os hutis, do Iêmen do Sul, e prosseguem os ataques à Síria e às milícias anti-imperialistas do Iraque. Mais ainda, Netanyahu procura abrir confronto direto com o Hezbolah e o Irã, que define como o grande inimigo de Israel, sustido pelos Estados Unidos, para manter-se no governo, com o apoio da extrema-direita, e seguir na construção do Grande Israel, sobre as terras e os povos palestinos. [PARIS & ZERROUKY, 2024; Le Monde, 4/08/2024.]
Atualmente, a Alemanha reconhece a Síria, como nação segura, e a Itália acaba de abrir uma representação diplomática naquele país. Isso, apesar de Alemanha e Itália, no passado recente, terem ajudado a semi-destruir a Síria, apoiando campanha militar ocidental genocida, que procurava colocá-la sob o tacão imperialista e sionista. A vitória síria sobre aquela agressão, após perdas terríveis, deveu-se ao apoio da Federação Russa e do Irã.
Bashar Al-Saddad não é mais um monstro
O atual giro diplomático da Alemanha e da Itália, sem autocrítica, que não foi acompanhado pela França e pela Inglaterra, deve-se à vontade da Alemanha de repatriar, ainda que seja uma minúscula parte das multidões de refugiados sírios que recebeu – em meados de 2023, o país possuía 3,6 milhões de refugiados. A Itália, por sua vez, procura dificultar os desembarques em suas costas de desesperados chegados do Oriente e do norte da África.
Nesse novo contexto, a ofensiva sionista no Oriente Médio se opõe à pressão europeia pela pacificação da região, para diminuir o fluxo de refugiados. O primeiro-ministro trabalhista britânico acaba de declarar que, se o Tribunal Penal Internacional expedir ordem de detenção de Benjamin Netanyahu, a Inglaterra acatara a determinação, em uma dissociação histórica do apoio incondicional inglês ao atual governo sionista. Nos EUA, 55% da população se opõe ao envio de tropas à Palestina para apoiar Israel. [REALITY OF WAR, 06.08.2024.]
A prepotência sem limites de Israel não nasce do poderio de seus exércitos, mas da consciência do apoio por parte dos Estados Unidos, como baluarte do bloco imperialista no Oriente Médio. E os Estados Unidos não querem, e não podem, enfrentar um conflito generalizado no Oriente, e relançar outro, praticamente perdido, na Europa. E tudo isso vendo que seu inimigo primordial, a China, se fortalece, em todos os sentidos, sem se envolver diretamente nos confrontos militares em curso no mundo. [YOU, 2021.]
Donald Trump não pode vencer
As eleições de inícios de novembro, nos Estados Unidos, são a segunda questão que impede relançar o conflito na Ucrânia com intervenção direta da OTAN. Os EUA, em plena regressão tendencial da hegemonia de que gozava, enfrentam a talvez mais grave crise interna desde a Guerra da Secessão, em 1865, expressada na radicalização das eleições presidenciais de novembro. [AMEUR, 2010.]
Propor que, hoje, Democratas e Republicanos, Biden-Harris e Donald Trump são farinha do mesmo saco, como afirmam não poucos analistas e tendências políticas que se propõem do marxismo, é dizer tudo e não dizer nada. Não se mantém também em pé a explicação simplista, oportunista e, no frigir dos ovos, belicista e pró-imperialista, que se afirma, igualmente, marxista, de que Trump represente o fascismo internacional. Por isso, seria necessário votar pelo candidato democrata, em defesa da democracia.
Valério Arcary e uma pré-candidata à vereadora nas próximas eleições, ambos da tendência Resistência do Psol, em dois artigos, apoiam a sinistra dupla Biden-Kamala Harris, por ser, segundo eles, Donald Trump representante do “fascismo mundial” e “proto-fascista”. “[…] precisamos acompanhar de perto o desenvolvimento das eleições norte-americanas e […], intervir para garantir que Kamala Harris ou outro candidato do Partido Democrata seja eleito”.
Trump é o diabo, Harris uma santa
E, se uma vitória do Partido Democrata ocorrer, seria um triunfo, igualmente, sobre a ameaça bolsonarista! “A derrota de Donald Trump seria o melhor desenlace, em especial, para a esquerda brasileira que ainda está ameaçada pelo bolsonarismo.” [ARCARY, 25/07/2024; FLORENCIO, 23/07/2024.] O que transforma os democratas Biden-Harris em paladinos da civilização, apesar de responsáveis diretos do banho de sangue na Ucrânia e na Palestina, apenas citando os cenários mundiais mais determinantes.
Há pergunta jamais respondida por esses anti-fascistas que o imperialismo gosta. Ou seja. No sentido geral do termo, houve, até hoje, após a II Guerra Mundial, algo mais genocida, e, portanto, mais fascista, do que a destruição humana e material da faixa de Gaza, sustido firmemente pelos democratas e Biden-Harris?
Essa defesa esfarrapada do imperialismo nasce sobretudo da necessidade de justificar o apoio à atual gestão liberal soft de Lula-Alckmin, como pretensa ação preventiva ao perigo fascista bolsonarista. Ameaça que se propõe, como sempre pronta, atrás da porta, para dar o bote. Isso, enquanto o atual governo brasileiro, expressão do grande capital, garante a exploração histórica dos trabalhadores, dos assalariados, da população e da nação, no aqui e no agora.
Dois blocos capitalistas
A disputa, à morte, entre Donald Trump e, agora, Kamala Harris, nasce do confronto geral entre dois blocos capitalistas estadunidenses, um dominante, o outro, subordinado. Por um lado, o grande capital monopólico globalizado, hegemônico nas últimas décadas nos EUA, representado pelo Partido Democrata. Por outro, o capital manufatureiro-industrial, arrasado pela deslocalização industrial globalista, que transformou o Cinturão do Aço no atual Cinturão da Ferrugem, defendido nesse momento por Donald Trump e pelo Partido Republicano.
A candidatura democrata propõe prosseguir a globalização desenfreada, manter a imigração selvagem nos EUA, aprofundando a já tradicional degradação dos salários. Defende o complexo industrial militar e, para tal, o avanço do endividamento público; a submissão pela diplomacia, sanções e, quando necessário, pelas armas, das nações rebeldes e dos aliados-súcubos, para seguirem financiando os Estados Unidos. Propõe guerra preventiva permanente em prol de hegemonia ianque de duração eterna. Em 2019-23, as importações militares europeias desde os EUA cresceu em 35%, em relação aos cinco anos precedentes. E seguem crescendo. |[OFICEROV-BEL’SKIJ, 2024, 117.]
Donald Trump, ao contrário, defende políticas protecionistas, industrialistas, para financiar a restauração do antigo poderio manufatureiro estadunidense. Para tal, propõe a construção de estradas, portos, escolas, edifícios, tudo nos EUA, destravando os negócios seus e de seus comparsas. Propõe inverter o movimento de deslocalização industrial, em permanente busca através do mundo de operários pagos com suspiros de salários. Trabalhadores empregados nos EUA são imprescindíveis para comprar as casas, os edifícios, os automóveis, a parafernália manufatureira produzida, no passado, pela então “fábrica do mundo”.
“America First” significa o capital rolando nos bolsos dos capitalistas nacionais, entre eles, os ligados à indústria automobilística, a antiga locomotiva industrial do país, e, portanto, um igual apoio à indústria petrolífera. Quem é que acredita nessas coisas da crise climática e ambiental! Para criar o seu novo mundo, Donald Trump pretende limitar a gastação dos recursos estadunidense na indústria armamentista, que ocupa escassa mão-de-obra, e refrear o policiamento estadunidense universal. Se choca, portanto, com o núcleo central do capital globalizado estadunidense e mundial.
Trump deve morrer
A solução de Donald Trump para a guerra na Ucrânia é simples. Pretende interromper o financiamento do conflito, deixando-o, caso interesse, aos cuidados dos europeus. Ele já lembrou que a função dos EUA não é proteger as fronteiras dos outros. Seu escudeiro e candidato a vice, James David Vance, jovial, barbudo, fotogênico, de apenas quarenta anos, ex-combatente no Iraque, nascido em família rural atingida pela pobreza e pela dependência aos narcóticos, criado pela avó, é crítico voraz do financiamento da guerra na Ucrânia. Porém, é apoiador incondicional de Israel e do assédio ao Irã, um aliado fiel da Federação Russa.
James David Vance e a sua esposa, Usha Chilukuri, de ascendência indiana, comedida no falar e no vestir, são uma nova cara do trumpismo, que busca consolidar o apoio eleitoral de setores trabalhadores e médios não-republicanos. J.D.Vance escreveu suas memórias, best-seller de enorme sucesso, levado às telas com sensibilidade, sob o título de “Era uma vez um sonho”, à disposição na Netflix. Trump quer deixar em paz a Rússia, que não compete com as exportações estadunidenses, e se ocupar da República Popular da China, pressionando-a até o limite do possível.
Trump não sonha em destruir a China, como os democratas. Pretende obrigá-la a conceder mais espaço à produção estadunidense, como fez na sua passada administração com indiscutível sucesso parcial. É a favor da guerra comercial, não dessas em que os oponentes se matam às centenas de milhares. Ele acaba de reafirmar que não haverá guerra contra a China. Ele acaba de se propor como o candidato da paz, ao denunciar que os democratas estão levando os EUA às portas de uma Terceira Guerra Mundial. Trump expressa uma aposta do capital nacional estadunidense e de uma classe operária manufatureira que miram saudosos um passado, já passado. Miragem permitida pelo fracasso do capital globalizado no presente. E, sobretudo, pela falta de uma estrada apontando em direção ao futuro, construída pelo mundo do trabalho.
O atual confronto entre Donald Trump e, agora, Kamala Harris é uma verdadeira luta de foice em noite sem lua, entre duas facções do capital estadunidense, uma que teve sucesso no passado, e foi superada pela própria dinâmica da acumulação do capital globalizado, que, por sua vez, fracassou no presente, e é ameaçada pela expansão chinesa, como apenas proposto. Donald Trump significa o sonho de um retorno ao isolacionismo, forte no passado dos Estados Unidos.
Wokismo, o fiat lux ideológico globalista
O duro confronto entre democratas e republicanos envolve e divide profundamente uma sociedade americana, na qual as classes trabalhadoras, assalariadas e médias viram despencar suas condições de existência nas últimas décadas, quanto aos salários, à moradia, à educação, à segurança. Classes que veem perplexas que não são mais cumpridas as promessas históricas do imperialismo pátrio de lhes conceder condições crescentes de vida, através da canibalização do mundo. Trabalhadores e assalariados que jamais contaram com partidos e movimentos que fossem seus, mesmo em um viés reformista.
Uma disputa que assume contradição super-estrutural, direta e paradoxal, entre o furioso programa woquista abraçado pelo Partido Democrata quando impulsionou incondicionalmente a globalização e a deslocalização industrial. No novo contexto, os democratas viraram as costas ao operariado manufatureiro estadunidense, sua tradicional base eleitoral, e procuraram estabelecer relações prioritárias com as modernas classes médias urbanas, com destaque para as atuantes nos setores high-tech, informático, financeiro, da publicidade, da moda, etc.
O Partido Democrata passou a apostar as fichas, no relativo à política, à ideologia e às eleições, em uma população estadunidense moderna, de classe média, individualista e egocêntrica, vivendo ligada e dependente a um mundo globalizado, com raízes nacionais e regionais fragilizadas, em geral, sem preocupações econômicas candentes. Uma faixa social que, no contexto da globalização e da reorganização neoliberal do mundo, se estendeu através do mundo, com destaque aos países de capitalismo desenvolvido, como os Estados Unidos, a União Europeia, Israel e assim por diante.
Os democratas abandonaram a defesa e propaganda dos ideais materiais e imateriais de uma classe trabalhadora manufatureira ligada ao “made in America” e à “Bandeira Estrelada”, hasteada à porta da vileta com pequeno jardim dianteiro, piscina no quintal e duas garagens. Um sonho, atualmente, na mor das vezes, irrealizável, prometido, no passado, como certo, a ser obtido durante ou após uma vida dedicada ao trabalho. Hoje, na Terra da Promissão, trabalhadores dormem em barracas e em automóveis, partindo pela manhã para trabalhar por salários miseráveis.
O fim da história
A ruminação ideológica do capital globalizado, perfilhada pelo Partido Democrata estadunidense, centrou-se na defesa radical de reivindicações, não mais comunitários e sociais, como a luta pelos direitos da população negra, que, para serem concedidos, mesmo muito parcialmente, exigia recursos públicos ingentes. Abraçou, ao contrário, a defesa de reivindicações particulares individualistas, subjetivistas, sensualistas, hedonistas, da nova classe média globalizada, que se propõe, arbitrariamente, falar por todos.
Setores médios que enterram as reivindicações sociais e universais das classes oprimidas, sob o seu programa particular, propondo-o como o top de uma revolução não apenas realizável na ordem vigente, mas desejável pela globalização capitalista. Programa recolhido e agitado acriticamente por uma enorme parte da esquerda mundial, hoje, enraizada nas classes médias e com, nos melhores dos casos, laços apenas simbólicos com o mundo do trabalho.
Reivindicações arbitrárias, nascidas de humores singulares, que rejeitam, para se realizar, a materialidade dos objetos, dos seres, das práticas sociais. Em um solipsismo e idealismo radicais, propõe-se, literalmente, como individualidade, “não sou o que sou, sou o que quero”. Transforma-se, assim, o real, em uma fantasmagoria, e, as quimeras arbitrárias que o substituem, em régua social, de aceitação obrigatória. Nesse nada admirável mundo novo, a ideologia woke se levanta como o “Fiat lux” da revolução universal do capitalismo globalizado.
Teologia irracionalista
A teologia woke do capital globalizado se consolidou, tendo, como eixo central, a negação, pela “ideologia do gênero”, da materialidade do caráter binário da espécie humana, dividida essencialmente em membros do sexo masculino e feminino. Ela nega que a natureza biológico-genética objetiva defina a sexualidade de um indivíduo, que se materializaria, ao contrário, a partir de escolha arbitrária individual entre os atuais mais de sessenta gêneros propostos.
A “ideologia de gênero” confunde, em forma oportunista, o sexo objetivo de um indivíduo, masculino ou feminino, de sua orientação sexual, esferas tendencialmente autônomas. Um indivíduo do sexo masculino pode ser heterossexual, homossexual, bi-sexual, assexual, dentre outras possibilidades. Todas com o direito de se expressarem plenamente. Para a “ideologia de gênero”, um travesti, um homossexual masculino ou mesmo um heterossexual, por simples autodefinição, pode propor passar a ser uma mulher, quando quiser, com os direitos advindos da sua nova decisão, até renunciar a ela, eventualmente. E vice-versa.
Para a “ideologia de gênero”, a única diferença, entre uma mulher biológica e um homem que se autodefine como mulher, é a proposta de qualificação, da primeira, como mulher cisgênero (cis), e do segundo, como mulher transgênero (trans). Um novo ordenamento arbitrário e unilateral da humanidade, nascido nos EUA, folga dizer, que se procura impor, em forma autoritária, não raro, apoiando-se na força de normas tornadas legais, com punição de sua desobediência.
Não se trata de reconhecimento pleno dos direitos de livre exercício de orientação sexual. Mas da defesa de uma metamorfose quimérica imaterial, realizada, mais comumente, por autodefinição, antes ou após um homem ou uma mulher se entupirem de hormônios, que deverão tomar por toda a vida. E de realizarem eventuais operações mutiladoras, de caráter plástico. Intervenções cirúrgicas, de diversos níveis, não raro irreparáveis, para assumir artificialmente algumas características próprias ao sexo masculino ou feminino.
Transformações exigidas sobremaneira pelo antigo mercado sexual que, se oferecia, antes, travestis, metamorfoseado e potenciado, propõe, agora, as ditas mulheres trans, para o gáudio da grande indústria farmacêutica e hospitalar. Farra medicamentosa e cirúrgica que as organizações wokistas-transgêneros exigem que seja financiada, ad aeternum, pela medicina social, em proveito do complexo farmacêutico-hospitalar. Os mesmos interesses que publicitam o uso de hormônios e suplementos nas academias, igualmente prejudiciais à saúde.
Sexualização medicamentosa da infância
Teologia wokista-transgênero que exige, igualmente, que as crianças, já nos seus primeiros anos, possam ser submetidas a tratamentos hormonais e a operações em geral irreversíveis, a partir do arbítrio errático de seus pais e responsáveis. E propõe que as crianças possam e devem definir suas identidades sexuais, ao serem interrogadas, desde os três ou quatro anos, e que se aja em função das suas respostas, quando se encontram a anos-luz da pré e da adolescência.
Uma operação que avança através do mundo dito civilizado e, no Brasil, se organizou também sob a consigna “Há crianças trans”, com direito a perfil no Instagram e a exposição de menores por seus pais na última Parada do Orgulho LGBT+, sem que as autoridades tenham agido em defesa dos mesmos. No Brasil, determinação do Conselho Federal de Medicina, de 2019, proíbe intervenções hormonais ou cirúrgica em crianças pré-púberes. Exige, igualmente, acompanhamento psicológico e de médicos especializados em qualquer intervenção semelhante em menores de 18 anos.
Fundamentalismo da indeterminação biológico-sexual dos seres humanos que, ao defender a possibilidade das mulheres de se transformarem em homens, por simples autodeclaração, quando elas, eventualmente engravidam, propõe que devam ser tratadas como homens grávidos. E defendem que, nesse caso, a criança não tenha nascido de uma mãe e uma pai, mas de dois pais.
Homens que se definem mulheres exigem serem atendidos por ginecologistas, que tenham a entrada permitida em banheiros femininos, que possam participar em concursos, se candidatar a postos, etc. restritos às mulheres. E, que, logicamente, exigem o direito de concorrer em competições esportivas femininas, apesar das vantagens morfológicas e hormonais masculinas: coração maior; maior capacidade pulmonar; maior densidade óssea mineral; menor força muscular, etc.
Só mulheres, nas competições femininas
No ciclismo, na natação, no boxe, no atletismo e nos esportes de forças e resistência, após liberalidade inicial, se proíbe agora a participação de homens que se definem como mulheres trans, em competições femininas, devido às vantagens fisiológicas que estavam permitindo que eles vencessem as competições e embolsar as recompensas e prêmios, como os casos do ciclista Austin Killips, do nadador Lia Thomas, entre outros. A proibição se estende, igualmente, aos indivíduos intersexo, ou seja, no caso, com órgãos sexuais femininos, mas estrutura morfológica masculina.
Aquelas vitórias deram-se sob o protesto das competidoras vencidas, indignadas por terem que participar, em uma competição feminina, com homens intersexo ou definidos como mulheres trans. Os defensores da legalidade de tais competições, segundo os quais, não facilitariam aos homens definidos como mulheres trans, não se têm perguntado por que as mulheres que se definem como homens trans não reivindicam, igualmente, participar de competições masculinas.
As Vilas e os Jogos Olímpicas de Paris, de 2024, sob a batuta de Emmanuel Macron, serviu como plataforma de divulgação internacional do programa ideológico do globalismo, em suas mais diversas variantes: naturalismo, ecologista, veganismo, wokismo. Após limpar os espaços onde se construíram as Vilas Olímpicas e o centro de Paris de sem-tetos, partiu-se para a organização de jogos que primaram pela inovação revolucionária, no relativo ao alojamento e aos espaços esportivos.
Suando às bicas
Os atletas foram obrigados a dormir em camas dura de papelão reciclado e se cobrir com colchas sintéticas. Com a proibição de aparelhos de ar condicionado, instrumentos anti-naturais, os desportistas suaram às bicas sob o calor exorbitante já clássico do verão europeu, nos quartos de dormir e nos ônibus de transporte.
Os atletas desdenharam as pequenas porções de pratos veganos e vegetarianos oferecidos nas Vilas Olímpicas e correram atrás de suculentas proteínas animais, condizentes com o esforço físico exigido pelas competições. Num mundo globalizado em que nada se quer esconder, as janelas não contaram com cortinas.
O pior foi certamente a troca, onde foi possível, das piscinas purificadas tradicionalmente com cloro pelo rio Sena, em ensaiado retorno aos tempos das competições homéricas. Atletas saíram vomitando das águas poluídas com dejetos fecais, não poucos exigindo cuidados médicos ou se medicando antes e após as competições.
O resultado foi simples, sob os olhos condescendentes dos organizadores. As delegações dos países ricos compraram para seus atletas colchões macios, cortinas, aparelhos de ar condicionados, montaram cozinhas e contrataram cozinheiros, etc. Tudo do bom e do melhor. Enquanto os atletas dos países pobres, ficaram, como é tradicional, ao deus dará!
Homem pode bater em mulher
A grande pedagogia wokista dos Jogos Olímpicos de Emmanuel Macron foi a participação de duas ditas boxeadoras, Imane Khelif, argelina, e Lin Yu-ting, taiwanesa. Elas haviam sido proibidas de lutar pela Associação Internacional de Boxe, por terem se revelado, em exame genético, intersexuais. Ou seja, possuírem constituição cromossômica masculina, XY, e, portanto, a conformação fisiológica correspondente.
O Comitê Internacional Olímpico globalista, que retirou a gestão da competição de boxe dos Jogos de Paris da Associação Internacional de Boxe, por ter pretensas ligações com Putin, disse que se ateve ao sexo registrado nos passaportes. Afirmou, igualmente, que qualquer exame médico seria desrespeito aos direitos humanos dos atletas.
Foi o Comitê Olímpico Internacional, entretanto, que proibiu, igualmente, a participação da Rússia nos Jogos Olímpicos de Paris, sem preocupações com os direitos humanos dos atletas da Federação. E permitiu a dos atletas de Israel, enquanto as tropas sionistas prosseguem em massacre em Gaza que o mundo reconhece como o genocídio de nossos dias.
A participação de Imane Khelif e Lin Yu-Ting se deu sob protestos das atletas femininas, como tem ocorre habitualmente, diante de mais uma interferência masculina na vida e nos direitos femininos reprimidos e desrespeitados desde sempre. O que retrocede as reivindicações e lutas femininas históricas referentes à maternidade; à proteção, à educação e aos cuidados dos recém-nascidos; ao direito ao aborto; à segurança, à saúde e ao acesso democrático a postos de trabalho, de representação, etc. da mulher. Pautas que passam a ser reivindicações efeminas parciais, já que estranhas às dos homens que se definem e exigem serem tratados como mulheres trans.
Novilíngua wokista
Nessa salada irracionalista, chega-se a exigir que se transforme em delitos punidos pela lei o desrespeito ao uso de uma linguagem arbitrária, capaz de descrever os múltiplos gêneros e situações definidos por uma imaginação desenfreada, que hoje ultrapassam, segundo parece, os sessenta. Gêneros praticamente incompreensíveis aos não especialistas, que se propõe que sejam ensinados desde a escola primária, pretensamente para que as crianças, incapazes de apreender o que lhes é apresentado, cresçam, afirma-se, conceitos sexuais. A hiper-sexualização da infância, da adolescência e da juventude é, igualmente, um programa impulsionado pelo grande capital, para explorar novos nichos de mercado. Propostas que aterrorizam pais, mães, avós informados e desenformados, progressista e conservadores.
Em relação à língua portuguesa, a novilíngua wokista avança, entre outras invencionices, a introdução de pronomes pessoais neutros, para não agredir a sensibilidade dos que se autoproclamam de sexualidade indefinida. Teríamos, portanto, “ele”, “ela” e “elu”; “dele”, “dela” e “delu”, e aí vai ao infinito. Um exemplo na novilíngua transgênero: “Elu veio ontem buscar a camisa que era delu.” Era o que faltava em um país de milhões de analfabetos funcionais. Propõe-se igualmente substituir os termos “pai” e “mãe” por “genitores”, já que a diferença entre um e outro seria uma mera construção cultural.
Numa destruição do mundo objetivo atual, passa-se ao arrasamento do passado. Exige-se a correção e a reescrita de obras literárias, teatrais, poéticas, musicais, pictóricas, históricas, desde as suas expressões primordiais, borrando qualquer expressão de um mundo binário ou que fira sensibilidades atuais mal compreendidas quando à raça, à língua, à natureza, aos animais, etc. Reescritura arbitrária, com pretensos valores do presente, que literalmente reconstrói o passado, segundo os padrões do wokismo do mundo capitalista globalizado.
Para ficarmos entre nós, reescrever ou anotar a literatura ficcional brasileira em prosa, ou em verso, desde sua constituição e consolidação, a partir dos anos 1840, para despi-la dos seus conteúdos racistas, sexistas e classistas, exigiria simplesmente anulá-la, já que foi, sobremaneira, expressão de uma sociedade em que as classes dominantes eram racistas, sexistas e classistas. Daí também o valor atual dessa literatura, pois também é um link valioso para a compreensão tendencial de nossa história e raízes, como realmente foram. E imaginem traduzir segundo o padrão wokista-transgênero obras como Don Quixote de la Mancha, de Cervantes, ou Decameron, de Boccaccio!
Do wokismo à homofobia
Com o desandar da carroça racionalista, em favor do wokismo fundamentalista, compreende-se que pais e avós, a população em geral, sobretudo pouco informada e pouco formada, reajam epidermicamente a tais propostas insanas, que ameaçam a infância e pretendem revolucionar o mundo objetivo, pondo fim, até mesmo, ao princípio que toda criança tenha sido gerada da troca genética entre um homem e uma mulher, entre um pai e uma mãe.
No Brasil, a demagogia direitista que se serviu da ideologia teve sua melhor expressão na hoje senadora Dalmares Alves, pastora evangélica e ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro. Ela assentou seu sucesso político com descrições fantasiosas e aterrorizantes, de conteúdo sexual e mórbido, como a proposta de que se teria notícias de “crianças de quatro anos, três anos que, quando cruzam as fronteiras”, no norte do Brasil, “têm seus dentes arrancados para não morderem [o pênis masculino] na hora do sexo oral” e “comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”, ao serem estupradas. [Estado de Minas, 09/10/2022.]
Enquanto o Partido Democrata estadunidense tem defendido em forma extremada as propostas wokistas e transgêneras, através da presidência de Biden e dos governos estaduais democratas, a direita e o partido republicano, por sua vez, têm se mobilizado contra elas, também com o apoio de setores populares não-republicanos.
Uma luta contra o integralismo wokista e transgênero que permite que as forças direitistas, conservadoras e irracionalistas se sirvam dele para fomentar a homofobia, o machismo, o patriarcalismo, fazendo recuar as conquistas apenas recentes de respeito pleno e do direito legal às orientações e opções sexuais individuais, ao aborto, às reivindicações femininas e feministas. Escancaram-se a porta da casa e a do cofre e se reclama quando o ladrão se apodera da gaita.
Para onde sopram os ventos
A provável tendência geral nos próximos meses, até o resultado das eleições presidenciais nos EUA, é o esforço da OTAN em encenar, muito tenuemente, propostas de negociação de paz, sem as concretizar, impedindo uma debacle geral das forças armadas e do governo ucraniano. Para tal, seguirão financiando um Estado falido e apoiando um esforço militar fracassado. A diplomacia russa já ressaltou que os EUA e a OTAN procuram, ao sugerir abrir discussões pela paz, apenas um armistício, sem desdobramento concreto, que permita o fortalecimento posterior das tropas ucranianas.
O centro da disputa na Ucrânia se transferiu, fortemente, ao pleito estadunidense, como explicitado por dois sucessos recentes. O primeiro, a tentativa de assassinato de Donald Trump, em 13 de julho, sábado, na Pensilvânia, que fracassou quase, arriscamos a dizer, como ateu convicto, por alguns centímetros, milagrosamente. Um atentado fogueada pela demonização de Donald Trump como uma ameaça mortal à democracia, proposta pela Partido Democrata e os meios de divulgação que o acompanham.
Antes do atentado, Biden propusera que Trump “seria o alvo” eleitoral prioritário. Formulações retóricas incessantes, pouco inocentes, em um país que tem mais armas domésticas do que habitantes. Foi como se os desejos inconscientes de democratas assustados com uma possível derrota eleitoral se desdobrassem em uma conspiração de assassinato surgida do nada, da qual dizem não ter nenhuma responsabilidade.
Um garoto no telhado
Conspiração, é crível, urdida no âmago de facção pró-democrata radical dos serviços de segurança ianques. Para o assassinato de Donald Trump, não foi certamente escolhido e enviado um atirador selecionado, o que seria arriscado. Os conspiradores teriam apenas facilitado o caminho do jovem tresloucado até telhado, localizado a menos de duzentos metros do candidato republicano. Identificado, anteriormente, como uma ameaça a Donald Trump, entre talvez centenas de outras, sua intenção assassina teria sido facilitada, em forma escancarada.
Durante a investigação preliminar feita sob o controle do governo democrata e de não poucos altos funcionários interessados em uma pronta conclusão inconclusiva, ninguém explicou os inúmeros, seguidos e enormes erros cometidos pelos órgãos responsáveis pela proteção do ex-presidente e candidato republicano. Posto contra a parede, Kimberly Cheatle, diretora dos serviços secretos estadunidenses, foi obrigada a demitir-se devido aos sucessos da Pensilvânia.
Ameaça à sua vida à qual Donald Trump parece ter respondido nomeando a James Davis Vence como candidato a vice-presidente. Alguém que, no caso de seu assassinato, o substituiria, com ainda maior possibilidade de vitória, e manteria suas políticas, podendo concorrer à reeleição, em 2028, difícil para Trump, devido à sua idade.
O magnicídio como solução das dificuldades do bloco imperialista estadunidense já teria sido tentado e fracassado, em relação ao primeiro-ministro eslovaco, Roberto Fico, em maio deste ano, que sobreviveu, apesar de gravemente atingido. Acaba de ser descoberto possível plano para o assassinato do fundador e presidente do partido no governo na Georgia, contra a guerra, e simpático à Rússia.
Mulher, negra e jovem
O segundo sucesso que tumultua a possibilidade de ação imediata da OTAN e do imperialismo foi a troca de candidato do Partido Democrata, às vésperas da nominação de Biden, com os delegados vinculados à sua designação já elegidos. Medida que se tornou imprescindível, após o debate, de 27 de junho, que revelou o universalmente sabido, a senilidade avançada de Joe Biden.
O núcleo central do Partido Democrata e o deep state globalista impuseram aceleradamente a vice-presidenta, Kamala Harris, mantida no ostracismo durante todo o governo, para não surgir como possível candidato substituto do presidente decrépito, como terminou acontecendo. Sua candidatura fortalece as chances democratas, por ser mulher, ser negra e ser jovem, em relação a Donald Trump. O que a coloca, ao menos por agora, nos centro dos holofotes da grande mídia.
Com uma vitória de Kamala Harris, seguiria, com modificações formais, a política do governo democrata. Entretanto, prevê-se o afastamento de Antony Blinken, secretário de Estado, e Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional, tidos como responsáveis por mantê-la no banco dos reservas. [FSP, 29/07/2024.] Não seria de descartar o retorno de Hillary Clinton, representante do complexo militar bélico, a uma posição de destaque, já que apoiou imediatamente a nova candidata.
O autoritarismo na designação de Kamala Harris desagradou importantes setores do aparato do Partido Democrata, com destaque para Barack Obama, que pretendia emplacar sua cara-metade. O ex-presidente tem forte influência no Partido Democrata e no governo Biden, nos seus estertores finais. Ele e a esposa foram obrigados a embarcar no bonde da nova candidatura, na última parada, sendo, por isso, eventualmente, marginalizados no próximo governo democrata, caso ele emplaque.
Mina vagante
Possivelmente tudo ficará suspenso, quanto à Ucrânia, até as eleições de novembro. A única mina vagante, é Benjamin Netanyahu, que tem sua sobrevivência política e a imunidade aos processos de todo tipo que o ameaçam dependentes da continuidade e radicalização da guerra na Palestina. O que significa, nesse momento, um confronto direto com o Hezbollah e, sobretudo, com o Irã. Conflito que, para o desgosto do Partido Democrata e de sua candidata, pode eclodir a qualquer momento, depois dos recentes assassinatos seletivos ordenados por Netanyahu.
Em caso de vitória democrata, teremos retomada, em força, já nos próximos meses, da disposição bélica, talvez na própria Ucrânia, ou em outra região do mundo, como a Bielo-Rússia, a Síria, Taiwan. [MAESTRI, 18 de setembro de 2022.] A vitória de Donald Trump, ao contrário, significará um alívio momentâneo no conflito geral, mantendo o apoio incondicional dos democratas a Israel, com eventuais provocações ao Irã, o que é, igualmente, uma Caixa de Pandora.
Um governo de Donald Trump retomará a guerra comercial com a República Popular da China, tentando ampliar o espaço do comércio e da diplomacia estadunidenses. Sinalizando possível linha de ação quanto às relações com a China, Trump declarou não se opor aos automóveis orientais, desde que produzidos nos Estados Unidos. Sonha com uma reversão da emigração industrial estadunidense. Pronunciou-se, em forma peremptória, contra o comércio internacional à margem do dólar, proposta que pode acirrar o confronto com a China, a Rússia, e o BRICS+.
Nas duas soluções, sob governo democrata ou republicano, se manterá a necessidade imperiosa dos Estados Unidos e de seus aliados de enfrentar o avanço inexorável da China como primeira nação imperialista mundial. Uma derrota que o imperialismo estadunidense não pode aceitar, sem antes tentar resistir com todos os seus recursos disponíveis.
Uma eventual administração Trump, sem confrontos militares, será eventualmente apenas um interregno no choque inevitável entre o imperialismo ascendente e o descendente. Solução de impasse de dimensão histórica, que compromete o próprio destino da humanidade, em forma crescentemente ameaçadora, ao qual apenas o mundo do trabalho pode apresentar uma solução, necessariamente internacional.[i]
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês (1949-2021) (FCM Editora).
Referências
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ARCARY, Valério. Donald Trump é um protofascista? Esquerda On-Line, 25/07/2024, https://esquerdaonline.com.br/2024/07/25/donald-trump-e-um-protofascista/
BAUD, Jacques. L´art de la guerre russe: comment l´Occident a conduit l´Ukraine à l´échec. Paris: Max Milo, 2024.
CARDEN, James W. Bush padre aveva ragione: giù le mani dall´Ucraina. LIMES. Rivista Italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, apr. 2020.
Casa Branca. Departamento de Estado. Abordagem estratégica dos Estados Unidos para a República Popular da China. 20 maio 2020. Disponível em: https://2017-2021-translations.state.gov/2020/05/05/abordagem-estrategica-dos-estados-unidos-para-a-republica-popular-da-china/
CASELLI, G. P. La Russia Nuova. Economia e storia da Gorbacëv a Putin. Milano: Mimesis, 2013.
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FLORENCIO, Rafaela. Crítica à Representatividade Neoliberal: O Caso Kamala Harris, Esquerda On-Line, 22/07/202. https://esquerdaonline.com.br/2024/07/22/critica-a-representatividade-neoliberal-o-caso-kamala-harris/
ISHCHENKO, Volodymyr. Ukrainian voices! New Left Review, 138, Nov/dec., 2022. https://newleftreview.org/issues/ii138/articles/volodymyr-ishchenko-ukrainian-voices
KARAGANOV, Sergej. Se perdessimo, la Russia rischierebbe di spaccarsi. LIMES. Rivista italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, mag. 2020.
KISHORE, Mahbubani. A China venceu? o desafio chinês à supremacia americana. Tradução: Bruno Casotti. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2021, 368 págs.
KORTUNOV, Andrej. In Ucraina ha falido la diplomazia. LIMES. Rivista italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, apr. 2020.
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MAESTRI, Mário. O direito à defesa. A Terra é Redonda. 13/04/2022. https://aterraeredonda.com.br/russia-o-direito-a-defesa/
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Notas
[i] Agradecemos a leitura da linguista italiana Florence Carboni e do arquiteto Gregório Carboni Maestri.
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