A sanha privatista da Folha de S. Paulo

Dora Longo Bahia. Escalpo Paulista, 2005
 Acrílica sobre parede 210 x 240 cm (aprox.)
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Por CÉSAR LOCATELLI*

Em artigos e livro, Aloysio Biondi rebateu os argumentos que o jornal voltaria a usar 23 anos depois

“Embrutecemos. A sociedade brasileira embruteceu. Os meios de comunicação embruteceram. Nós, jornalistas, embrutecemos. (…) Os governantes atuais não se importam mais com o povo, o ser humano. Mas todos também somos culpados. Por silenciar. Por ficar de braços cruzados. Embrutecemos, sim” (Aloysio Biondi, no Diário Popular, em julho de 2000).

Estivesse vivo, Aloysio Biondi certamente se contraporia duramente ao editorial da Folha de S. Paulo, “Privatizar é bom: cumpre desfazer falsas noções em torno do bem-sucedido programa de desestatização do país”. Faria o mesmo com a manchete principal do jornal de domingo (28/8) “Em 30 anos, privatizações alavancam economia do país”.

Como a Folha pretende publicar uma série em seis capítulos ressaltando que “venda e concessão de ativos estatais avançam e revolucionam a economia”, faremos o mesmo recorrendo, contudo, às críticas às privatizações, respaldadas por dados como era sua característica, feitas pelo ex-repórter, ex-editor e ex-colunista da própria Folha.

 

“O assalto das privatizações continua”

Em artigo, “O assalto das privatizações continua”, no caderno de Mercado da Folha, em 12 de junho de 1999, Biondi revela o padrão utilizado pelo governo FHC: “O governo FHC continua a arrasar as empresas estatais e os governos estaduais. Se as tarifas da Cesp fossem revistas, seus lucros aumentariam e o dinheiro iria para o governo de São Paulo, o povo de São Paulo, que é seu ‘dono’. A equipe FHC prejudica São Paulo, o governador Mário Covas nada faz, a não ser confirmar, com sua omissão, que já há quatro anos se curvou totalmente aos interesses da equipe FHC. Pobre população paulista, lesada em seus direitos”.

Atrasar as tarifas, entretanto, não era a conduta para as privatizadas: “Anunciado violento aumento das tarifas de energia das empresas privatizadas. Não foi só por causa da desvalorização do real. O governo assinou contratos com os compradores comprometendo-se a dar reajustes anuais para a energia e os serviços telefônicos, o que foi largamente escondido da opinião pública. Detalhe: não foram anunciados reajustes para as empresas estatais que produzem energia, como a Cesp, de São Paulo. Elas estão há dois anos sem reajustes, com um ‘achatamento’ de 16% em seus preços”.

Refutando a tese de Everardo Maciel, o então secretário da Receita Federal, de que grandes empresas e bancos pagavam muito pouco imposto de renda, pois haveria brechas na lei, Biondi disparou: “O governo FHC deu mais um presente, uma vantagem, aos ‘compradores’ das empresas telefônicas, reduzindo o seu Imposto de Renda, desde o final do ano passado. Como? Permitiu, por meio de um mecanismo que os técnicos chamam de ‘depreciação acelerada’, que elas lancem como despesas (reduzindo o lucro e o imposto) o dobro (20%) do que as demais empresas podem abater (10%). Não há ‘brecha’, repita-se: há portarias, resoluções, decretos, medidas provisórias privilegiando os grandes grupos”.

 

Por que é tão fácil as privatizadas lucrarem

Trecho do livro O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado, explica por que foi tão fácil obter grandes lucros nas empresas recém privatizadas: “– Ah, mas as estatais sempre dão prejuízos, tiram dinheiro da saúde e da educação… É incrível como essas empresas estão dando lucros, logo no primeiro ano depois da privatização…”

Esse argumento também foi largamente repetido para a população. Ele também é falso. Ponto por ponto, pode-se explicar as razões dos ‘lucros’ rápidos das empresas privatizadas: “Tarifas e preços – os reajustes de 100%, 300%, 500% antes da privatização garantem lucros aos novos donos. E há aumentos até de última hora, como o reajuste de 58% para as contas de energia no Rio, poucos dias antes do leilão da Light”.

“Demissões – também antes de privatizar, o governo tem feito demissões maciças de trabalhadores das estatais, isto é, gastou bilhões com o pagamento de indenizações e direitos trabalhistas, que na verdade seriam de responsabilidade dos ‘compradores’”.

“Dívidas ‘engolidas’ – esse é um ponto que nunca ficou claro para o povo brasileiro: ao longo de 30 anos, desde o final dos anos 1960, o governo frequentemente usou as estatais para ‘segurar’ a inflação ou beneficiar certos setores da economia, geralmente por serem considerados ‘estratégicos’ para o país”. “Como assim? Houve períodos em que o governo evitou reajustes de preços e tarifas de produtos (como o aço) e serviços fornecidos pelas estatais, na tentativa de reduzir as pressões e controlar as taxas de inflação. Esses ‘achatamentos’ e ‘congelamentos’ de preços foram os principais responsáveis por prejuízos ou baixos lucros apresentados por algumas estatais, que passavam a acumular dívidas ao longo dos anos – sofrendo então nova ‘sangria’ de recursos, representada pelos juros que tinham de pagar sobre essas dívidas”.

“Certo ou errado, as estatais foram usadas como arma contra a inflação por governos que achavam que o combate à carestia era a principal prioridade do país. O mal é que nunca foi suficientemente explicado à população que essa decisão arruinava as empresas estatais, dando motivo a falsas acusações de ‘incompetência’ e ‘sacos sem fundo’ contra elas. Quando veio a onda das privatizações, o governo fez exatamente o contrário”.

“Dívidas transferidas – aqui, cabe um parêntese importante. O governo, quando divulga os resultados do processo de privatização, sempre gosta de dizer que, além do preço da ‘venda’, deve-se levar em conta, ainda, as dívidas que aquelas estatais apresentavam, e que foram transferidas para o comprador. Nesse argumento, há uma dupla mentira. Primeiro, como foi demonstrado acima, há dívidas que o governo ‘engole’, e sobre as quais ele e os meios de comunicação nunca falam…”.

“Em segundo lugar, no caso das dívidas que permanecem sob responsabilidade dos ‘compradores’, é preciso lembrar que eles vão contar com o faturamento da própria empresa para pagá-las. Ao contrário do governo, que fica com as dívidas ‘engolidas’ e tem de pagá-las com dinheiro do Tesouro, dos impostos, ou seja, de toda a população brasileira. Dinheiro nosso”.

“Fundos de pensão – exatamente como as grandes empresas privadas, também as empresas estatais mantêm planos especiais de aposentadoria ou planos de pensão para seus funcionários. Em vários casos, os ‘compradores’ ficaram livres também desses compromissos. Como assim? O governo – estados ou União – “transferiu” os aposentados para sua folha de pagamentos ou se responsabilizou, no caso dos fundos de pensão, pelo pagamento dos benefícios aos funcionários existentes. (…)”. (p. 12 a 15).

*César Locatelli é mestre em economia pela PUC-SP.

 

Referência


O arquivo em pdf do livro O Brasil privatizado: Um balanço do desmonte do Estado pode ser baixado gratuitamente no link da Fundação Perseu Abramo.

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