A sociedade autofágica

Imagem: Lucio Fontana
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Por OLGARIA MATOS*

Considerações sobre o livro recém-editado de Anselm Jappe

A sociedade autofágica é um livro especial, não apenas pela rigorosa erudição nas questões do sujeito moderno, mas por que o faz reunindo fetichismo e narcisismo, Marx a Freud, autores marxistas clássicos aos hererodoxos, os frankfurtianos Adorno e Horkheimer aos neofreudianos, como Marcuse e Eric Fromm, com o que nos auxilia na inteligibilidade da mutação civilizacional do presente.

Trata-se de um livro “ para além”. Para além de Para o além do princípio de prazer e para além da teoria marxiana do valor. “Para além” no sentido de uma intepretação própria da tradição dos Manifestos, o Manifesto à Preguiça, o Manifesto Oulipo, o Manifesto Surrealista, analisados por Anselm Jappe, como também o Manifesto Comunista de Marx e Engels. Não por acaso essa filiação se completa ao final do livro em suas “teses”, novas “Teses sobre Feuerbach”. Manifesto em sentido etimológico e político: etimológico – tomar firmemente à mão, em que nada é pressuposto ou implícito, pois é elaborada a genealogia do mal-estar contemporâneo, do capitalismo e da natureza anárquica do mercado mundial. Político: com suas análises Anselm Jappe reinventa uma forma de contestação e intervenção intelectual e prática.

O autor desenvolve seu pensamento tendo por eixo as ideias de valor no âmbito do trabalho abstrato e do sujeito narcisista, encerrado em seu próprio “Eu”, sem contato com a exterioridade e a alteridade e, assim, esvaziado de seu estatuto racionalista e seu ideário emancipatório. Associados fetichismo e narcisismo, instaura-se a cultura do excesso e do deslimite – na violência, terrorismos, uso de drogas, esportes radicais –, com o fim da cultura letrada, a Weltliteratur de um Goethe e do goetheano Marx, que ainda mantinha sua natureza de barreira contra a barbárie.

O empobrecimento cultural e os avanços da automação no trabalho, a proletarização do operário e a destituído de seus saberes, as novas mídias e tecnologias são, por sua independentização crescente do controle humano, o novo espectro que ronda não apenas a Europa, mas o planeta, unificado por elas. Ampliando também as análises de Max Weber e Georg Simmel, o autor indica os processos de intelectualização, formalização e racionalização da vida individual e coletiva, abrangendo a esfera pública, privada e a da intimidade.

Eis por que o momento fundacional do sujeito cartesiano, o “ penso, logo existo” já revela, mostra Anselm Jappe, um ideal de emancipação comprometido com a alienação, pois uma coisa é pensar, outra é existir. Não se trata, porém, de revolucionar o sujeito no sentido teórico ou das revoluções históricas – da transformação do sujeito e do mundo, mas de mudar a vida. O capitalismo do crescimento pelo crescimento, da inovação pela inovação vai para o futuro como o anjo da história de Klee nas reflexões de Walter Benjamin: é empurrado para o futuro de costas, para o qual vai às cegas.

Este livro constitui uma nova “dialética do esclarecimento”. Não por acaso, Capitalismo autofágico começa pela referência ao mito de Erisícton, figuração da violência, do desejo ilimitado, pelo que é punido pela deusa Deméter que lhe impõe uma fome insaciável, e quanto mais alimentado, mais faminto. Essa bulemia, mostra Anselm Jappe, é constitutiva do capitalismo que desconhece medida e interditos, o que é proibido e o consentido, o totem e o tabu. O mito de Erisícton desempenha o papel de uma máxima, contendo uma sabedoria exemplar, trazendo consigo um conselho, um “ensinamento” fundado em conceitos.

Se os filósofos como Platão e Aristóteles criticam a mitologia, não é pelo fato do mito ser fantasioso e, assim desvalorizado e sem importância para o conhecimento e para a existência; ao contrário, consideravam que a mitologia continuava sendo a grande fonte de compreensão do sentido das coisas, devendo ser lidos alegoricamente e não em sua literalidade. Assim Chronos devorador de seus filhos, destruidor do que ele mesmo gera, que dá vida e depois destrói, é o tempo. Razão pela qual Erisícton é o herói da excedência, da pleonexia da contemporaneidade, da sexualidade alienada, do niilismo.

Com o mito, Anselm Jappe redimensiona o pensamento de Aristóteles – que julgava a poesia mais verdadeira e superior à história – pois esta trata do que aconteceu, e a poesia do que é possível acontecer, como também o de Heródoto que, historiador, faz a crônica só do que passou, o historiador oferece uma série de dados, mas não se preocupa com o central da experiência humana.

Por isso, o mito de Erisícton revistado por Anselm Jappe vai desdobrando seus sentidos, expondo as disfunções que o capitalismo narcísico e autofágico cria e das quais necessita, como o fim da autoridade, da família, dos valores comuns compartilhados, das diferenciações substituídas pelo relativismo das diferenças particulares. Como no Manifesto comunista, neste livro os conceitos são “palavras de combate”.

*Olgaria Matos é professora titular de filosofia na Unifesp. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp).

 

Referência


Anselm Jappe. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo, Elefante, 2021, 336 págs.

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