O rentismo, aqui e agora

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Por PEDRO DE ALCANTARA FIGUEIRA*

Confrontar a economia política com a chamada teoria econômica, ou seja, o economês

Para as épocas novas, sobretudo as que, como agora, se encontram diante da necessidade de definições novas, o que se lhe defronta não passa de uma velha terminologia que se arrasta tão pesadamente incapaz de motivar quem quer que seja à luta para abreviar as dores do parto.

Vivendo intensamente um momento em que as exigências de definição do surgimento de uma nova época que se anunciava no horizonte de novas atividades tanto no plano material quanto intelectual, e que punha em movimento tanto a terra, quanto o sangue, mas que vivia sufocada pelo domínio da escolástica, René Descartes irrompeu com seu “penso, logo existo”, um grito de liberdade contra o domínio das ideias servas dos senhores feudais, expressas preferencialmente em sua forma religiosa.

Como o próprio René Descartes, insistentemente solicitado a explicar o que ele queria dizer com essa formulação, simplesmente sugeria que trocassem penso por duvido, portanto duvido, logo existo, também nós temos o direito, diante de uma realidade em franca transformação, de perguntar a que nos leva repetir a escolástica própria do economês?

Para tanto, temos à mão uma resposta poderosa que consiste em confrontar a economia política com a chamada teoria econômica, ou seja, o economês. Enquanto a primeira é uma ciência que nasceu da luta entre a formação de uma nova sociedade, a segunda é simplesmente um amontoado de disparates ideológicos.

No momento atual, essa escolástica se expressa numa conversa fiada interminável sobre inflação, capital financeiro, que, no caso, não é nem financeiro, muito menos capital, custo do dinheiro, demanda, ajuste fiscal, e por aí afora. Toda essa parafernália não diz mais respeito a uma realidade que clama por transformações, as quais já podem dispor plenamente de uma potência tecnológica e cientifica infinita.

A nossa esquerda não perde a oportunidade para mostrar que sabe mais sobre essa velharia de conceitos do que seus oponentes. Enquanto isso o povo, que é sábio, não sabe nada disso. Sabe, apenas, que seu dinheiro, quando ele o tem, fica cada vez mais curto diante do feijão, do arroz, da carne, do transporte, do aluguel, da escola do filho. O que tem prevalecido é uma verdadeira gororoba que usa, indefectivelmente, o povo como recurso final de argumentos que não se sustentam historicamente. Não passa, frequentemente, de pura retórica consolatória.

No entanto, temos, na economia política – falo de Adam Smith, Turgot, Quesnay, Ricardo – um ponto de partida fundamental que nos pode valer nessa situação histórica plena de questões em cuja solução a luta social vem em primeiro lugar.

Na exaltação que Adam Smith faz da divisão do trabalho se contém uma proposta de rompimento radical com as mais diversas formas de trabalho dominantes durante a vigência do trabalho servil. Sua proposição nada tem de proposta de mudanças técnicas na atividade produtiva. Muito pelo contrário, o que encerra é a proposta de uma revolução no processo produtivo. O trabalhador que produz os milhares de alfinetes de Adam Smith não é mais o servo. Se sua condição ainda não é de trabalhador plenamente livre, o caminho fica aberto para sua conversão histórica, de caráter revolucionário, a tal personagem.

A divisão do trabalho de Adam Smith é, antes de tudo, a liberação do trabalho de sua forma feudal, luta que Turgot travou na França expressa concretamente na lei de Abolição das Jurandas (1786). O próprio Adam Smith se surpreende com o aumento da produtividade que a nova forma de trabalho proporciona. Owen refere-se aos resultados fantásticos que advieram da Revolução Industrial: simplesmente, como revela ele, 2.500 operários produzem tanto quanto produziam a seis décadas 600 mil trabalhadores!

A nossa época está comprometida historicamente com a liberação do trabalho, dessa vez com a superação da forma capitalista. E aqui, deixamos a economia política no lugar que lhe coube como ciência revolucionária filha da luta burguesa contra a feudalidade. Agora não há como não ter como referência obrigatória senão Karl Marx.

Assim como John Locke fez do trabalho a origem da propriedade (1690), e Ricardo consagrou o capital como trabalho acumulado (1817), Karl Marx fez da grande indústria a força motriz de um processo histórico revolucionário. Está na base das ideias de todos eles uma nova forma de o homem se produzir e se reproduzir, o que, de resto, remete para a necessidade de se entender as diferenças históricas da atividade produtiva, ou seja, a natureza dos modos de produção que se sucederão no tempo.

É tal a força da tendência a profundas transformações no mundo da produção que a atitude que condiz com essa situação é jogar na lata de lixo toda a terminologia gororóbica vigente nos mais diferentes setores intelectuais, inclusive naqueles que juram estar comprometidos com as ideias de Karl Marx. Já podemos, sem qualquer recurso retórico, afirmar que o que sobra do velho mundo capitalista não passa de empecilhos, grilhões, que tentam impedir a eclosão de novas relações sociais. A luta se concentra exclusivamente nesse terreno.

A equação atual pode ser resolvida com a eliminação do lucro, cuja taxa já indica, em termos reais, a necessidade de novas relações de produção. Esta eliminação está se processando ao tornar a taxa de lucro incompatível com a reprodução do capital. Não se trata, portanto, de um ato político passível de ser resolvido por autoridades governamentais.

Neste ponto, nos deparamos com uma gama variada de manifestações que nos revelam a existência de um processo geral de crise estrutural do modo de produção capitalista. Faremos referência especial a uma dessas manifestações, não somente porque ela se apresentou como a motivação principal do conflito entre as forças que se propõem a romper com a paralisia que tomou conta do capitalismo e aquelas forças que representam concretamente esse estado de coisas. Embora o caso brasileiro, nascido da eleição do Lula, possa ser tomado como exemplar, ele está presente, ainda latente, em muitos outros países nos quais ainda prevalece os restos de capitalismo.

Refiro-me a este fenômeno conhecido como rentismo, que, na esteira do processo de declínio das relações de produção capitalistas, botou a cara de fora por volta da década de sessenta do século passado, e que teve sua revelação registrada na obra de Seymour Melmann, Profits without Production, de 1983. Sem pretender contestar o título da obra do referido autor, deixo aqui registrado que sem produção (without production) não há possibilidade de se obter lucro. Aliás, este equívoco ainda continua sendo cultivado em geral por aqueles que se surpreendem com a existência de um tal fenômeno. Em se tratando de capitalismo, é necessário que fique muito claro qual é a relação social que capacita a existência de lucro. A única é a que se estabelece entre capital e trabalho, do qual resulta um excedente, o lucro, que é apropriado pelo capitalista. Sem essa permanente expropriação não se realiza essa lei fundamental desse sistema econômico.

O rentismo nasce exatamente, e historicamente, é preciso que se diga, da negação dessa relação, expressão concreta de que a crise que tomou conta do capitalismo não é, como aconteceu em períodos anteriores, um ajuste nas molas que o sustentaram. De fato, essas molas enferrujaram por falta do seu lubrificante insubstituível, uma rentabilidade condizente com sua reprodução.

Por isso mesmo, a luta contra o rentismo deverá, proximamente, concentrar forças que não poderão negar sua natureza revolucionária. Não é a primeira vez na história que a luta de novas forças produtivas contra o parasitismo assume o papel de rebeldia subversiva. Foi assim que se processou a transição do feudalismo para o mundo burguês.

O momento atual vive intensamente a dissolução das antigas classes sociais, e os vários grupos que se formam em decorrência desse processo entram em novas combinações, alianças que têm como requisito estarem em consonância com a potência das novas forças produtivas liberadas dos trilhões que as prendiam ao passado.

Não se pode ignorar que o rentismo é filho legítimo da decadência capitalista. Sua origem se encontra precisamente na impossibilidade de o capital se reproduzir segundo as leis que lhe são próprias.

Sua eliminação terá necessariamente que se defrontar com esse seu conteúdo histórico, o que revela que sua natureza é refratária a quaisquer soluções provisórias. Não partirá, evidentemente, das raras e frouxas referências que se lhe fazem como se se tratasse de um fenômeno estranho à sociedade e independente do tempo. Ele participa da natureza de todos os parasitas, pois sua florescência exaure a própria fonte que o alimenta. Temos disso um exemplo inconteste revelado recentemente pelos Panamá e Pandora Papers onde centenas de afortunados, entre os quais Paulo Guedes, até ontem todo poderoso senhor dos destinos da riqueza nacional, e seu colega, o presidente do Banco Central, que se diz independente, são apanhados em lesa traição ao capital ao enterrarem suas fortunas neste cemitério batizado de paraíso fiscal.

Resta uma breve menção, que enriquece o quadro das manifestações do declínio capitalista, à necessidade de recorrer à mentira como complemento da ideologia que perdeu totalmente sua vinculação com a realidade, e que passa a ser divulgada, usando os recursos “científicos” de Goebels, como a realidade única e verdadeira. Sua necessidade se impõe aos grupos que assaltam o poder com o propósito de destruir as condições reais do desenvolvimento econômico e social, pois temem não poder controlar o impulso à mudança contido na possibilidade de utilização livre das forças produtivas. Estas estão a todo momento lhes acenando com transformações que renegam não só sua permanência no poder, como sua existência.

*Pedro de Alcantara Figueira é doutor em história pela Unesp. Autor, entre outros livros, de Ensaios de história (UFMS).

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