A transição

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Por MAURO LUIS IASI*

O erro mais comum na transição é o medo, mais precisamente o receio de se lançar ao ataque e tomar uma bola nas costas

Futebol é muito simples: quem tem a bola ataca; quem não tem defende” (Neném Prancha, ex-roupeiro do Botafogo, ex-técnico de futebol de praia e filósofo da bola).

No futebol, a transição começa exatamente no momento em que se ganha a bola do adversário e parte-se para uma ação ofensiva. Dizem os especialistas que a primeira tarefa da transição é tirar a bola da zona de pressão. O tempo que tal procedimento se dá depende muito do estilo de jogo da equipe, uma vez que alguns preferem partir rapidamente para um contra-ataque, como o Atlético de Madri, enquanto outros optam por uma construção mais lenta, como o Barcelona, reorganizando a equipe para só depois atacar, o que pode levar o time adversário a se recompor.

Aqui é bom esclarecer que somente passar a bola para o outro lado do campo não caracteriza uma transição ofensiva, pode ser simplesmente se livrar da bola, por exemplo, através de um chutão, como costuma acontecer com times menores muito pressionados.

A virtude do contra-ataque é pegar o adversário ainda desorganizado defensivamente e alguns de seus jogadores de defesa fora de posição. Pode facilitar bastante a eficiência do contra-ataque às inversões de jogada, como aconteceu didaticamente em dois gols da Holanda, nos quais foram os alas que serviram seu companheiro no lado oposto.

Maquiavel, técnico de Florença, aconselhava que a melhor maneira de garantir o campo conquistado é destruir qualquer capacidade de reação de seu oponente, por isso, nunca parava ao conquistar um gol para administrar uma vantagem. A Sérvia acreditava ter matado o jogo contra Camarões quando ganhava de três a um, mas sofreu uma reação surpreendente dos africanos, que acabaram por empatar o jogo em duas jogadas de contra-ataque muito rápidas.

Uma transição eficiente depende não apenas de um bom sistema defensivo, mas fundamentalmente de um bom meio de campo, com articuladores capazes de acionar rapidamente seus atacantes. No Brasil, por exemplo, a jogada mais mortal é aquela que descobre seu ponta-esquerda bem colocado e o aciona.

O erro mais comum na transição é o medo, mais precisamente o receio de se lançar ao ataque e tomar uma bola nas costas, abrindo o espaço para reação do adversário que parecia derrotado. Movida pelo medo, a equipe costuma ser muito conservadora, se retrai e, assim, abre espaço para a reação.

A catástrofe se dá, no entanto, dizem os especialistas, quando um time que consegue uma vantagem, inadvertidamente acredita que pode contar em seu time com jogadores de seu adversário. Todos sabemos que um bom time começa com uma boa defesa. Então, imaginem se você escala aquele defensor que até agora há pouco estava na defesa do outro time, esperando que ele te dê confiança ou ganhe o apoio da torcida adversária. Não parece uma boa proposta.

Falando em torcida, devemos ressaltar que ela tem sua importância. Não é somente para ficar sentada assistindo o jogo de forma passiva. Uma equipe que confia somente na imparcialidade do juiz e na ética esportiva de seus adversários, e não convoca sua torcida para jogar junto, mais preocupado em responder à torcida adversária do que empolgar a sua própria, normalmente, quando precisar dela, os torcedores vão lhe virar as costas, quando não, trocar de time.

O mesmo técnico de Florença aqui citado dizia que se você ganha o jogo com apoio da torcida e por seus próprios méritos deve lutar para manter este apoio, agora se você ganha pela boa vontade dos juízes, do VAR ou do regulamento – existem times no Brasil que são muito bons nisso – segundo o florentino deveriam buscar retomar o apoio da torcida para jogar junto.

Não é esportivo fazer acordos de conveniência, como a Alemanha e a Áustria na Copa de 1982, conhecido como jogo da vergonha, no qual a vitória de um a zero para os germânicos classificava também a Áustria, tirando da disputa a Argélia e o Chile. Não é nada bonito.

Na transição, é sempre bom frisar que você joga contra outro time e não com ele. O adversário está lá para impedir que você atinja seu objetivo e fará de tudo para você perder o jogo. Como já falamos várias vezes, quando você não tem um plano tático e uma clareza estratégica, você acaba fazendo parte da estratégia do inimigo.

Você pode ter uma tática excelente, como o toque de bola genial da Espanha que resulta numa enorme posse de bola, mas o objetivo continua ser fazer o gol. Aquele que fica o jogo inteiro fazendo passes, na hora do pênalti pode ficar tentado a dar um passe para o goleiro adversário. Viva Marrocos.

Finalmente, a transição é só um momento. Você tem que decidir se vai para a ofensiva ou vai segurar o resultado, se vai jogar bonito e com a torcida ou vai executar um futebol burocrático jogando com o regulamento embaixo do braço e esperando a próxima partida. Mas, temos certeza de uma coisa: é impossível agradar as duas torcidas.

Bom, espero ter ajudado. Só para lembrar: todo mundo sabe que a melhor chance do Brasil é jogar pela esquerda.

*Mauro Luis Iasi é professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e membro do Comitê Central do PCB. Autor, entre outros livros, de As metamorfoses da consciência de classe (Expressão Popular).

Publicado originalmente no blog da Boitempo.

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