Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios
1.
Desde os anos 1980 Marilena Chauí[i] oferece-nos diagnósticos precisos sobre o contágio da universidade pelos pressupostos neoliberais, dentre eles o deslocamento da pesquisa e da docência extracurricular, que passaram de atividades-fim para meios de se obter financiamento – quase sempre segundo as regras do capital privado, pautado pela ideologia da “competência” e “performance”.
Em sua tese de livre-docência, defendida em 2002 na área de Literatura Brasileira, João Adolfo Hansen sugeria que, desde o início da década de 1980, a universidade passara a se estruturar e funcionar como uma grande empresa, com o advento dos pressupostos que orbitam os modelos de gestão e estimulam a concorrência entre colegas, segundo a (anti)ética do lucro.
Como sabemos, a discussão é antiga também em outros países. Entre as décadas de 1950 e 1960, Edgar Morin[ii] foi um dos primeiros a observar que o intelectual ocupava lugar ambivalente na sociedade dita “pós-moderna”, pois corria o risco de irradiar juízos críticos sobre a instituição que o sustentava.
Decorridas seis décadas, o que dizer da relação entre pesquisadores e docentes, quando seus projetos são submetidos aos desígnios das grandes empresas, bancos e corporações?
2.
Em que estágio está a universidade, hoje? Ela está a “superar” a si mesma, na campanha de estrita obediência aos ditames do neoliberalismo. Quero dizer, a instituição de ensino superior aprimorou o perfil “operacional” (como mostrava Chauí), refinando a concepção “gerencial” (como aventara Hansen), reforçando os questionáveis critérios da avaliação quantitativa.
Obviamente, as métricas que orientam as agências de fomento se combinaram aos rigores crescentes da instituição de ensino.
Uma das razões do mal-estar docente reside no fato de nos sentirmos julgados sem cessar por um tribunal onipresente (instalado desde os departamentos até a reitoria), correndo o sério risco de lidarmos com sentenças recriminatórias sobre a pequena “produção” ou nossa inapetência em “captar recursos”.
Ora, e como se captam recursos? Apresentando-se projetos de pesquisa rentáveis (aos olhos do “mercado”), de preferência pragmáticos e exequíveis, que carreiem o nome da universidade para além do território nacional, com a logomarca da empresa em primeiro plano.
Mas deixemos a estratosfera do grande capital. Em escala mais modesta, digamos, entre os corredores e as salas de aula, crescem episódios protagonizados por alunos que, antes mesmo de amadurecer seus projetos de pesquisa (sejam de Iniciação científica, sejam de Pós-graduação), correm atrás dos docentes em busca de recompensas pecuniárias por trabalhos que sequer iniciaram.
Repare-se. Não se está a negar a importância das bolsas e auxílios: o pesquisador tem direito a eles, considerando a sua ocupação na universidade e fora dela. Por sinal, uma das nossas lutas se dá justamente pela ampliação dos recursos que promovam e estimulem as pesquisas. O que se está a questionar é a aparente inversão das prioridades (e das etapas) relacionadas ao trabalho acadêmico: a pesquisa é um fim; não um pretexto para recompensa antecipada.
Salvo engano, a universidade funcionalista está a naturalizar a relação de barganha entre alunos e docentes, segundo uma racionalidade utilitária, mediada pela relação interpessoal pragmática e o espírito da livre-concorrência. Ainda a esse respeito, supomos que, para além dos conteúdos didáticos, possa-se rediscutir os pressupostos, réguas e pretensões do mercado.
Contudo, quando as aulas e as atividades de pesquisa cedem o lugar (da curiosidade, do conhecimento, da reflexão) à transação financeira, cumpre recordar que o contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios.
*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.
Notas
[i] Refiro-me a Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
[ii] Cultura de Massas no Século XX – O Espírito do Tempo – Neurose e Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.
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