O submundo do crime no Rio de Janeiro

Marcelo Guimarães Lima, Cidade bombardeada, pintura digital, 2023
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Por LISZT VIEIRA*

Os que adotaram a tese de crime político no caso do assassinato dos médicos desconhecem o que acontece no submundo do crime no Rio de Janeiro

A maioria das pessoas ignora a relação estreita entre milicianos e policiais no Rio de Janeiro. Aliás, não só com policiais, com militares também. É bom não esquecer que o capitão ex-presidente apoiou ostensivamente as milícias no Rio. E também o general Braga Netto: quando foi interventor na Segurança Pública no Rio de Janeiro em 2018, ele só atacou os traficantes e poupou os milicianos, que continuaram se expandindo.

Quem esclareceu o assassinato dos médicos no Rio não foi a polícia, foi o Comando Vermelho que, sentindo-se prejudicado, executou os assassinos pela “cagada” que fizeram, e avisou a polícia. Quem nunca ouviu falar da relação promíscua entre traficantes e milicianos com policiais, civis e militares, se assusta e se sente mais confortável abrigando-se numa teoria da conspiração.

Os agentes diretos das milícias e dos traficantes são em geral jovens com o nível de ensino primário, provavelmente incompleto. São ignorantes, estúpidos, boçais, preconceituosos. Imaginar que eles tenham atitudes pautadas pela reflexão é um equívoco. Alguns receberam a informação de que o miliciano jurado de morte estava no tal quiosque da Barra da Tijuca. Não checaram, agiram automaticamente, estão acostumados a atirar primeiro, e perguntar depois.

Os milicianos obrigam os moradores a comprar com eles bens indispensáveis, como gás, transporte, comida, TV etc. E controlam a nomeação para cargos nos hospitais, escolas e prefeituras. O território dos milicianos vem aumentando, hoje já ultrapassa 50% da cidade do Rio de Janeiro. Funcionam como um verdadeiro Estado paralelo: impõem tributos e têm o monopólio da violência em seu território. Na conhecida definição de Max Weber, o Estado se caracteriza pelo “monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”. Os milicianos detêm o monopólio da força física dentro de um território. Apenas, a violência é ilegítima.

Os que adotaram a tese de crime político no caso do assassinato dos médicos, pelo fato de um deles ser irmão de uma deputada, e outro, primo de um deputado, desconhecem o que acontece no submundo do crime no Rio de Janeiro. É importante lembrar que o governador do estado do Rio de Janeiro foi eleito com o apoio dos milicianos, que praticamente obrigam os moradores a votar em seus candidatos, sob pena de represálias.

Aliás, a bem da verdade, o presidente Lula nomeou – e depois demitiu – para o Ministério do Turismo a esposa do prefeito de Belfort Roxo, na baixada fluminense, um político ligados aos milicianos. Assim, o poder dos milicianos não se resume ao governo estadual ou municipal, já teve representante no governo federal. Ou melhor, voltou a ter, no governo passado havia vários.

Após essas considerações iniciais, o que o assassinato dos médicos no Rio está a indicar? Miliciano mata um traficante, fica jurado de morte. Traficantes matam médicos achando que um deles era o miliciano. Acabam sendo mortos pelos chefes. A “cagada” que fizeram prejudica os negócios, o tribunal do crime é rápido e não perdoa.

Esse é o submundo real dos milicianos e traficantes. Não agem segundo uma lógica cartesiana. Quem desconhece essa realidade devia ler o livro do Bruno Paes Manso, A república das milícias. Vai “cair na real”. A comparação com o assassinato de Marielle Franco é absurda. Esse foi um crime nitidamente político, o mandante certamente é ligado a alguma esfera do poder público.

Nada a ver com o assassinato dos médicos em decorrência da guerra de milicianos e traficantes. O “Estado paralelo” condenou os autores à morte rapidamente. Segundo consta, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que uma Comissão do Comando Vermelho, que fica dentro do Presídio de Segurança Máxima, ordenou a execução. Algumas pessoas estranharam a rapidez da polícia em desvendar esse crime. Mas quem esclareceu o assassinato dos médicos não foi a polícia, foi o Comando Vermelho.

Como dissemos anteriormente, por baixo milícia e polícia se misturam, muitas vezes são uma coisa só. E, por cima, costumam ter apoio político do poder que ajudaram a eleger. Essa é a trágica realidade hoje do Rio de Janeiro. Em termos operacionais, trata-se de um xadrez muito complicado. A pedido de uma facção da milícia ou do tráfico, a PM ataca uma comunidade – em geral numa favela – e combate os bandidos.

Se morre um policial, horas depois ou no dia seguinte a PM retorna e sai atirando a esmo, matando moradores, inclusive crianças e idosos. Os bandidos já foram embora, eles têm rotas de fuga, mas a PM quer se vingar e mata moradores inocentes, em geral pretos e pobres. É um assassinato em nome da lei. Isso é rotina da PM no Rio.

Sobre esse assunto, vejamos o que diz Luiz Eduardo Soares, um dos maiores estudiosos da Segurança Pública no Brasil: “A transição parcialmente tutelada pelos militares impôs restrições ao processo constituinte e nos legou dois artigos (142 e 144), que são sarcófagos de nossa história: mumificaram as forças armadas e as polícias, tais como existiam no regime ditatorial, bloqueando os ventos das mudanças que a democracia emergente soprava. Resultado: criaram-se dois enclaves institucionais, refratários à autoridade política, civil, republicana. Por isso, o genocídio de jovens negros e de jovens pobres, nos territórios vulneráveis, ante a inércia cúmplice do Ministério Público, o imobilismo da Justiça, o endosso de políticos -não só de direita-, o aplauso de setores da mídia e da opinião pública, e a anuência das demais instituições, das quais se diz, ironicamente, que ‘funcionam’” (“Independência e Morte, bradam as polícias do Rio de Janeiro”, A Terra É Redonda, 14/4/2023).

Em outro artigo, de 30/10/2020, ele nos dá uma definição lapidar de milícia: “Milícias são organizações criminosas formadas por policiais militares e civis, ex-policiais, bombeiros e agregados, que dominam pela força das armas comunidades e controlam territórios, visando extrair benefícios ilegais do trabalho alheio e do patrimônio público, logrando obter, por coerção e constrangimento, obediência, lucro e voto, e consolidando, ao longo do tempo, prestígio, influência e autoridade”

O xadrez da violência no Rio se torna ainda mais complicado porque as alianças entre as facções do tráfico e das milícias não são permanentes: o inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje e voltar a ser inimigo amanhã. A violência é a dura realidade na base da sociedade. A visão romântica de uma cidade cheia de malandros e a polícia recebendo propina do jogo do bicho é coisa do passado. Essa fase “dourada”, cantada em prosa e verso nas canções dos grandes sambistas, como Noel Rosa e outros, não existe mais. O malandro carioca foi engolido pelo miliciano.

Segundo o ex-deputado Marcelo Freixo, que presidiu em 2008 a memorável CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, “a polícia se beneficia do crime, faz parte do crime. As facções do tráfico nasceram todas no cárcere. Milícia não nasce no cárcere, milícia nasce no Palácio. Milícia nasce na relação da política com o território, com a corrupção e com o controle do território para a eleição. Milícia nasce como máfia, como projeto para enfraquecer a democracia”.

Na mesma linha, outro estudioso dos grupos armados no Rio, o sociólogo José Claudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do RJ, declarou à Folha de S. Paulo, em 7/10/2023, que “o Rio de Janeiro tem uma tradição de convivência de grupos armados conectados à estrutura de segurança pública. O assassinato na Barra da Tijuca é fruto disso. Tráfico e milícia têm suas disputas entre si, e em cada grupo armado há presença, conivência, ganho e interesses de agentes públicos. Não só do Executivo, sobretudo da segurança pública, mas do Judiciário e do Legislativo. Esses grupos continuarão funcionando”.

Infelizmente, o que prevalece é o interesse dos políticos em ganhar os votos controlados pelos milicianos. E os policiais, civis ou militares, participam da partilha dos ganhos obtidos pela violência imposta pelos milicianos e traficantes. Essa relação promíscua e espúria está na base da Segurança Pública no Rio de Janeiro.

Se o Brasil não é para principiantes, o Rio de Janeiro desafia até os especialistas.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


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