A urgência é a fome!

Imagem: Ryutaro Tsukata
image_pdf

Por ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ECONOMISTAS PELA DEMOCRACIA*

Se há fome, não há democracia!

São tantas as mazelas enfrentadas atualmente pelo povo brasileiro que fica difícil estabelecer prioridade entre elas. Junto com a insuficiência de vacina contra a Covid-19, o elevado desemprego, a falta de moradia, o nível de violência contra os jovens negros, mulheres e LGBT, e outros tantos infortúnios, entre os quais não podemos esquecer o acelerado processo de desmonte do Estado que está sendo realizado pelo governo central do país e a crescente ameaça à democracia, destaca-se a situação de pobreza e a fome que assola milhões de pessoas em todo o país.

E por mais importante e urgente que seja a resolução do conjunto dessas demandas que hoje estão postas na sociedade brasileira, sem a qual não superaremos a situação quase distópica em que estamos imersos, o combate à pobreza e a resposta à fome assumem total prioridade. Sem alimento não há vida, pois de luz natural, de fé e de esperança não se pode viver.

Não é de hoje que a pobreza e a fome ameaçam o povo brasileiro dos extratos de renda mais baixos, pois constituem traço estrutural de nossa sociedade extremamente desigual. Contudo, como sabido, a pobreza foi significativamente reduzida com a implementação do Programa Bolsa Família, durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, e a fome praticamente extinta. O impacto desse programa sobre a pobreza foi imediato, já se manifestando nos primeiros anos de sua vigência.

Se em 2003, um ano antes do início do Bolsa Família, o Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimava que a população abaixo da linha de pobreza, atingia 12% da população, em 2008, esse percentual já havia caído para 4,8%. Em 2012, esse indicador tinha caído ainda mais, estando em 3,5%. Entre 2003 e 2008, a pobreza havia se reduzido de 26,1% para 14,1%. Esses dados podem ser acessados nos relatórios de acompanhamento dos objetivos do milênio, publicados pela IPEA em 2010 e 2014.

A partir de 2015, a tendência de melhora desses indicadores começou a se reverter. Isso foi fruto da semiestagnação da economia brasileira que se seguiu à queda acumulada do PIB de 6,8% nos anos 2015 e 2016 e da não intervenção ativa do governo federal, após o impeachment de Dilma Rousseff, no sentido de apoiar adequadamente a população mais carente do país. Em 2019, isto é, na pré-pandemia, a 11% das famílias estavam em situação de pobreza e a extrema pobreza havia aumentado significativamente, atingindo 6,7% da população segundo o IBGE. Chegada a pandemia e iniciados os aportes do Auxílio Emergencial, o percentual de famílias em situação de pobreza chegou a cair para a 5,5%, mas a redução do valor do benefício que se seguiu e sua descontinuidade elevaram novamente esse indicador para níveis há muito não vistos, de 15%, segundo a Fundação Getúlio Vargas.

Ao mesmo tempo em que esse auxílio foi descontinuado, a taxa de desemprego se manteve extremamente alta, atingindo 14.7% no primeiro trimestre de 2021, o que envolve 14,8 milhões de brasileiros, sem levar em conta outros 6 milhões de pessoas que desistiram de procurar emprego e por isso não são contabilizados como desempregados. Essa taxa é a maior já observada desde o início da série iniciada, em 2012, pelo IBGE. Para agravar a situação, a renda domiciliar média registrou queda de 10% no mesmo período e foi ainda muito mais acentuada junto aos domicílios de mais baixa renda, que inclusive são os que mais sofrem com a alta dos preços observada durante a pandemia. Situação que se torna ainda mais dramática com a inflação crescente que onera especialmente o preço dos alimentos, do gás e da energia elétrica, itens essenciais da condição de vida da população pobre.

Desemprego, queda nos rendimentos, carestia e ausência de um auxílio adequado à população de mais baixa renda constituem a sustentação do aumento da pobreza e da fome no Brasil desse período de pandemia. Para além das estatísticas, a elevação da pobreza é visível nas cidades brasileiras, destacando-se a quantidade de famílias que hoje se encontram em situação de rua. A fome, que não está restrita à população sem teto, é o que está por trás das filas que se formam nos locais de oferta de refeições e de distribuição de alimentos e de cestas básicas. São incontáveis as iniciativas de todos os tipos que tentam dar alguma resposta à fome que hoje se alastra no país: de movimentos sociais, empresas, grupos comunitários religiosos ou não, de prefeituras e estados, entre outras.

Essas iniciativas, por mais importantes que sejam, não resolvem a situação de insegurança em que parte da população brasileira se encontra. É preciso apoiar e incentivar todas as mobilizações de grupos sociais com esse objetivo, mas enquanto os condicionantes da fome estiverem presentes, garantir a manutenção de um fluxo de renda adequado para que a população que está vivendo essa tragédia possa superá-la. Isso implica o retorno do Auxílio emergencial de R$ 600,00, única possibilidade de, ao reduzir drasticamente a pobreza, mesmo que somente no período de sua concessão, dar segurança de que o alimento não faltará no dia de amanhã. É preciso, portanto, colocar o retorno do Auxílio Emergencial no centro das prioridades defendidas por aqueles que hoje se mobilizam contra o quadro de tragédia existente no país.

Se há fome, não há democracia!

*Associação Brasileira de Economistas pela Democracia é uma organização que congrega economistas, profissionais afins e estudantes de Economia comprometidos com a defesa da Democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do Brasil.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
7
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
8
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
9
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
12
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
13
Terras raras e soberania: o elo invisível entre ciência, indústria e poder
05 Dec 2025 Por CELSO PINTO DE MELO: A entrada em operação da Serra Verde é um marco: faz do Brasil o único produtor ativo de terras raras fora da Ásia, mas também expõe limites estruturais. A falta de domínio tecnológico e o processamento final realizado na China mostram que o Brasil ainda exporta minério, não inteligência mineral
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES