A verve poética de Pasolini

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Pasolini foi escritor mais do que cineasta

Na sequência inicial do filme Pasolini (2014), de Abel Ferrara, durante a entrevista concedida à Antenne 2, em 31 de outubro de 1975, para o lançamento de Salò o le 120 giornate di Sodoma (Saló ou os 120 dias de Sodoma) na França, ao ser indagado sobre a qualificação profissional que preferia, o personagem de Pier Paolo Pasolini respondeu que em seu passaporte constava “escritor”.

Escritor mais do que cineasta, sem dúvida, porque Pier Paolo Pasolini escreveu poesias, contos, romances, peças, roteiros, ensaios, críticas, textos jornalísticos etc.; mas, talvez, seria mais acertado dizer, como sugeriu Alfonso Beradinelli que, acima de tudo, ele se considerava poeta: “escrever poesia para Pasolini era a mais natural das artes, uma atividade cotidiana da qual não podia prescindir, uma paixão originária e quase maníaca que lhe permitia o imediato reconhecimento de si mesmo: uma espécie de prática propiciatória, devocional, higiênica, da qual não podia abrir mão se quisesse manter ou reencontrar a fé em si mesmo. Se tivesse certeza de ser poeta, poderia tornar-se qualquer outra coisa”.

Pier Paolo Pasolini estreou na literatura com o pequeno volume Poesie a Casarsa (14 de julho de 1942), uma coletânea de catorze composições escritas entre meados de 1941 e os primeiros meses de 1942, bancando ele mesmo a publicação. A obra dividia-se em duas seções: “I – Poesie a Casarsa”, tendo como epígrafe três versos da canção “Ab l’alen tir vas me l’aire” do trovador occitano Peire Vidal (segunda metade do século XII – início do século XIII), que abarcava treze composições; “II – La domenica uliva”, cujo tema era introduzido por quatro versos de “La madre”, de Giuseppe Ungaretti, era um diálogo entre uma mãe e o filho (nomeados em italiano), que vinha contrabalançar a dedicatória ao pai. Apesar do título geral, dos subtítulos e da maioria dos títulos das composições em italiano, as poesias haviam sido escritas em friulano, língua falada em Casarsa della Delizia, terra natal de sua mãe, onde a família costumava passar as férias.

Ao compor em friulano e ao dedicar o volume a seu pai – um oficial do Exército, ardoroso fascista, confinado num campo de prisioneiros no Quênia (1941-1945) –, o poeta novato desafiava tanto as autoridades fascistas, que proibiam o emprego de falas regionais, quanto a autoridade paterna, que condenava esse tipo de transgressão. Na resenha à obra, Al limite della poesia dialettale (Corriere del Ticino, 24 de abril de 1943), Gianfranco Contini destacava a “variedade fortemente diferenciada” do friulano do autor, ressaltando como um dialeto podia “momentaneamente tornar-se ‘quase uma língua’”.

Ao colocar no mesmo nível linguístico dialeto e língua, Pasolini, embora insistisse na “intraduzibilidade” daquele, nada mais fazia do que “sublinhar a interna traduzibilidade” desta. Nesse sentido, o leitor estava diante do “primeiro acesso da literatura ‘dialetal’ à aura da poesia hodierna”. E assim o jovem Pier Paolo consagrava-se como poeta já a partir de sua primeira publicação.

Como salientou Nico Naldini, primo de Pier Paolo Pasolini: “O friulano falado em Casarsa sempre ecoou ao seu redor desde os anos da infância; e, embora na casa materna se fale vêneto como em todas as famílias pequeno-burguesas, o friulano sempre foi obrigatório na relação com os amigos camponeses”.

Em um texto de 1963, que faz parte de Empirismo eretico (1972), numa lembrança que resvalava para o mítico, o escritor registrava sua descoberta do friulano como língua de poesia. Numa ensolarada manhã do verão de 1941, de repente ele ouviu ecoar a palavra rosada (rugiada, em italiano; orvalho, em português), pronunciada exatamente por um jovem camponês: “Decerto, aquela palavra, durante todos os séculos de seu emprego no Friul que se estende do lado de cá do rio Tagliamento, nunca havia sido escrita. Tinha sido sempre tão-somente um som. […] E escrevi imediatamente versos naquela fala friulana da margem direita do Tagliamento, que até aquele momento havia sido apenas um conjunto de sons: em primeiro lugar, comecei a tornar gráfica a palavra “rosada”. Aquela primeira poesia experimental desapareceu: ficou a segunda, que escrevi no dia seguinte: Sera imbarlumida, tal fossàl / a cres l’aga…”. Trata-se de “Il nìni muàrt”, segunda composição de Poesie a Casarsa:

“Il nìni muàrt”
Sère imbarlumide, tal fossàl
a’ crès l’àghe, ’na fèmine plène
a’ ciamine tal ciamp.
Jo ti ricuàrdi, Narcìs, tu vèvis el colôr
da la sère, quànt lis ciampànis
a’ sunin di muàrt.[1]


A criança morta
Luminoso entardecer, no fosso
a água sobe, uma mulher prenhe
caminha na campina.
Lembro de você, Narciso, com sua cor
do entardecer, quando os sinos
tocam a finados.

A partir de 1923, Pasolini tinha vivido em várias cidades, em virtude das transferências de seu pai: Parma e Scandiano, na Emília-Romanha; Belluno (em que nasceu seu irmão Guido) e Conegliano, no Vêneto; Casarsa, Sacile (onde, aos sete anos de idade, estimulado pela mãe, escreveu sua primeira poesia) e Idria, no Friul; Cremona, na Lombardia; regressando finalmente a Bolonha, sua terra natal, em 1936. Em fins de 1942, o recrudescimento da guerra levou a pequena família, desfalcada do pai, de volta para Casarsa. Lá, entre outras coisas, Pier Paolo dedicou-se a rememorar quase todas as localidades de sua infância, na coletânea de poesias Via degli amori (1946), escrita, como a pioneira Poesie (1945), em italiano. O leitor interessado poderá ler a tradução em português de algumas dessas composições no artigo “Pier Paolo Pasolini: primeiros tempos”.

Durante o período friulano, “o autor reconhecido como mestre, o referente explicitamente declarado, a paternidade eleita como ideal – e contraposta, em Poesie a Casarsa, à real – era a de Ungaretti, e o Ungaretti de Sentimento del tempo”, coletânea de 1933, na qual o jovem poeta “reencontrava o mito da língua poética italiana enquanto canto”, como assinalou Francesca Cadel, reportando também palavras do próprio Pasolini no fim dos anos 1960, para quem o nome de Ungaretti “ecoava como símbolo de uma poesia nova e de um tempo novo na vida”.

Algumas poesias dialetais extraídas de La meglio gioventù (que incorporou Poesie a Casarsa), coletânea publicada em 1954, darão uma ideia de seu labor poético. Em “Fevràr” (1943), o tema é o aludido retorno invernal à cidade materna por causa da guerra:

Fevràr
Sensa fuèjs a era l’aria,
sgivìns, ledris, moràrs…
Si jodèvin lontàns
i borcs sot i mons clars.
Strac di zujà ta l’erba,
in tai dis de Fevràr,
i mi sintava cà, bagnàt
dal zèil da l’aria verda.
I soj tornàt di estàt.
E, in miès da la ciampagna,
se misteri di fuèjs!
e àins ch’a son passàs!
Adès, eco Fevràr,
sgivìns, ledris, moràrs…
Mi sinti cà ta l’erba,
i àins son passàs par nuja.[2]


Fevereiro
Sem folhas o ar estava,
amoreiras, vinhas, valados…
Ao longe se avistavam
vilas aos pés de montes claros
Farto de brincar no gramado,
nesses dias de fevereiro,
eu me sentava aqui, inteiro
pelo ar verde orvalhado.
De regresso no verão.
E, no meio da campina,
o mistério das folhagens!
quantos anos desde então!
E, agora, é fevereiro,
valados, vinhas, amoreiras…
Eu me sento no gramado,
anos em vão têm passado.

A composição seguinte – “Alba” (meado dos anos 1940) – inspirava-se em “auba”, gênero da lírica provençal, em que se cantavam cenas ocorridas ao romper da aurora, em geral a despedida de dois amantes. Essa espécie de composição poética trovadoresca foi escrita em Versuta, pequeno distrito de Casarsa, no qual Pier Paolo e a mãe se refugiaram em outubro de 1944 para fugir das razias nazifascistas na região. Na tradução, para respeitar a polissemia do termo (“alvorecer” e “alba” ou “aubade”), optou-se por “alba”, embora menos usual em português:

Alba
O sen svejàt
dal nòuf soreli!
O me cialt jet
bagnàt di àgrimis!
Cu n’altra lus
mi svej a planzi
i dìs ch’a svualin
via coma ombrenis.[3]


Alba
Oh peito desperto
ao novo sol!
Oh calor da cama
molhada de lágrimas!
Com outra luz
acordo e choro
os dias a passar
voando feito sombras.

O esquema da alba estará presente também em “Conzèit” (1951), escrita nos moldes de “Quan lo rossinhols”, composição poética trovadoresca de autor anônimo. É interessante notar que a poesia não alude ao alvorecer, mas exprime “a sensação de um definitivo, desolado ocaso”, nas palavras de Furio Brugnolo, reportadas em “Note e notizie sui testi”. De fato, um tom de pesar e de saudade marca essa separação:

Conzèit
Romài essi lontàns a val,
Friul, essi scunussùs. A par
il timp dal nustri amoùr un mar
lustri e muàrt.
Inta la lus la to part
a è finida, no ài scur tal sen
par tignì la to ombrena.[4]

Despedida
Agora estar longe vale dizer,
Friul, ser desconhecido. Parece
o tempo de nosso amor um mar
luzente e morto.
Na luz sua parte acabou,
não há escuridão em meu peito
para abrigar sua sombra.

Nas poesias em friulano, encontravam-se vestígios do vêneto, como o próprio Pasolini já havia explicado na “Nota” que fecha Poesie a Casarsa: “O idioma friulano dessas poesias não é aquele genuíno, mas o docemente impregnado do vêneto que se fala na margem direita do Tagliamento; ademais, não foi pouca a violência que usei contra ele para fazê-lo caber num metro e numa dicção poética”. Com o tempo, o autor deixará de lado esse dialeto elaborado linguística e estilisticamente para ter uma função poética, nos dizeres de Guido Santato, e adotará o friulano comum.

Em contrapartida, em “Vegnerà el vero Cristo”, redigido entre fins da década de 1940 e início dos anos 1950, Pasolini trocou a fala da localidade materna pelo vêneto de Pordenone (na época na província de Údine, como Casarsa), um vêneto com vestígios de friulano, o que não apenas dá uma ideia das variedades linguísticas que ele empregava ao versejar, como vem lembrar o êxodo dos jovens camponeses para o centro industrial mais próximo de seu torrão natal:

Vegnerà el vero Cristo
No gò corajo de ver sogni:
il blù e l’onto de la tuta,
no altro tal me cuòr de operajo.
Mort par quatro franchi, operajo,
il cuòr, ti te gà odià la tuta
e pers i to più veri sogni.
El era un fiol ch’el veva sogni,
un fiol blù coma la tuta.
Vegnerà el vero Cristo, operajo,
a insegnarte a ver veri sogni.[5]

Virá o Cristo verdadeiro
Não tenho coragem pros sonhos:
o azul e a graxa do macacão,
só isso no coração operário.
Morto por três vinténs, operário,
o coração, você odiou o macacão,
perdeu os mais verazes sonhos.
Era um rapaz que tinha sonhos,
azul como o macacão.
Virá o Cristo verdadeiro, operário,
pra ensinar a ter à vera sonhos.

Ao preparar a publicação de Tal còur di un frut (1953), que, no ano seguinte, seria incorporado a La meglio gioventù, Pasolini, numa carta ao editor Luigi Ciceri, mencionava a poesia “Suspir di me mari ta na rosa” (1947), afirmando que ela “está lá para completar o motivo ‘materno’, isto é, o motivo central do livrinho, dando ao livrinho um seu equilíbrio de conteúdo”. Em “Note e notizie sui testi”, essa informação é complementada por uma referência a outra composição marcada pela “relação profunda entre a mãe e a rosa”. Trata-se de “La rabbia” (1960), que integrava La religione del mio tempo (1961), em que o poeta descobre uma humilde rosa em seu jardim:

La rabbia (excertos)
Mi avvicino più ancora, ne sento l’odore…
[…] So soltanto
che in questa rosa resto a respirare,
in un solo misero istante,
l’odore della mia vita: l’odore di mia madre… […]
Niente avrebbe potuto, una volta, vincermi.
Ero chiuso nella mia vita come nel ventre
materno, in quest’ardente
odore di umile rosa bagnata.
Ma lottavo per uscirne […]
[..] La lotta è terminata
con la vittoria. La mia esistenza privata
non è più racchiusa tra i petali d’una rosa,
– una casa, una madre, una passione affannosa.
È pubblica.

A raiva (excertos)
Me achego ainda mais, sinto-lhe o cheiro…
[…] Sei somente
que nesta rosa sigo respirando,
em um único e mísero instante,
o cheiro de minha vida: o cheiro de minha mãe… […]
Nada, antes, poderia me vencer.
Eu me encerrava em minha vida como no ventre
materno, neste ardente
cheiro de rosa humilde e molhada.
Mas lutava por sair […]
[..] A luta acabou
em vitória. Minha existência privada
já não se encerra entre as pétalas de uma rosa
– uma casa, uma mãe, uma paixão tormentosa.
É pública.[6]

Estranhamente a conotação erótica que a flor assume na composição não é evidenciada, assim como, em relação à poesia de 1947, não foi mencionado que a rosinha branca (entendida como mácula), encontrada pela mãe na cama do filho, remete à prática do autoprazer sexual:

Suspir di me mari ta na rosa
Ti ciati tal ninsòul
blanc, rosa blancia,
fànghi il jet a me fì
ti ciati tal ninsòul.
Rosuta di me fì,
dulà ti àia ciolta,
parsè ti àia ciolta,
la man di me fì?
I ti tas tu, salvàdia,
coma lui che a sta ora
cui sa dulà ch’al è
cu la so pas salvàdia!
Coma tal grin dal sèil
ti tas tal so ninsòul
e chel me zòvin còur
al tas sòul sot il sèil.
Dutis dos dismintiadis,
la mari e la rosa!
Zint cui sa dulà
al ni à dismintiadis.[7]

Suspiro de minha mãe sobre uma rosa
Acho você no lençol
branco, rosa branca,
arrumo a cama do filho,
acho você no lençol.
Rosinha de meu filho,
onde colheu você,
por que colheu você,
a mão de meu filho?
E calada, arisca,
como ele, nestas horas
sabe-se lá onde está
com a sua paz arisca!
Como no ventre do céu,
calada sobre o lençol
e meu jovem coração
cala-se a sós sob o céu.
Das duas esquecido,
da mãe e da rosa!
Por onde andará
já de nós esquecido.

Como afirmou Berardinelli: “A primeira fase da poesia de Pasolini, tanto em dialeto como em italiano, gira ao redor de um centro temático erótico e fúnebre: fogo e gelo, paixão e morte que se alternam em sonhos de pureza e em ‘impuras’ pulsões adolescentes. Essa é uma das mais clássicas oscilações líricas e faz parte da mais antiga e persistente das tradições. Mas Pasolini a revive no momento em que a cita. Conhece bem os seus modelos e os predecessores, Leopardi e Pascoli, Rimbaud, Machado, Ramón Jiménez e García Lorca, autores que as vezes parece traduzir ou transcrever.

Mas, como se diz sobre os verdadeiros poetas, mais que imitar, Pasolini rouba”. De fato, o jovem Pier Paolo apropriou-se de sugestões de vários autores, quando não realizou quase uma tradução de poesias que o inspiraram. Foi o caso de “Brass spittoons”, de Langston Hughes. O autor comunista norte-americano, na década de 1920, havia se afirmado como um dos grandes expoentes da jazz poetry, surgida no seio da Harlem Renaissance, movimento cultural e social que, a partir do fim dos anos 1910 e nas duas décadas seguintes, deu projeção à identidade afro-americana nos mais variados campos:

Brass spittoons
Clean the spittoons, boy.
Detroit,
Chicago,
Atlantic City,
Palm Beach.
Clean the spittoons.
The steam in hotel kitchens,
and the smoke in hotel lobbies,
and the slime in hotel spittoons:
part of my life.
Hey, boy!
A nickel,
a dime,       
a dollar,
two dollars a day.
Hey, boy!
A nickel,
a dime,
a dollar,
two dollars
buy shoes for the baby.
House rent to pay.
Gin on Saturday,
church on Sunday.
My God!
Babies and gin and church
and women and Sunday
all mixed with dimes and
dollars and clean spittoons
and house rent to pay.
Hey, boy!
A bright bowl of brass is beautiful to the Lord.
Bright polished brass like the cymbals
of King David’s dancers,
like the wine cups of Solomon.
Hey, boy!
A clean spittoon on the altar of the Lord.
A clean bright spittoon all newly polished –
at least I can offer that.
Com’mere, boy! [8]

Escrita em 22 de maio de 1941, “Brass spittoons” pôde ser apreciada pelos leitores italianos ainda naquela década, conforme Cristina Lombardi-Diop: “Em 1949, Leone Piccioni editou um número especial da revista literária Quaderni di poesia (Milão) totalmente dedicado a uma grande variedade de poesia negra traduzida, incluindo ‘Our land’, ‘Earth song’, ‘The negro speaks of rivers’, ‘Minstrel man’, ‘Brass spittoons’ e ‘I, too’, de Langston Hughes”. É provável que a tradução de “Brass spittoons” seja anterior, pois, em “Note e notizie sui testi”, está registrado que ela foi publicada no n. 5 da revista Poesia, em 1947; ademais Leone Piccioni, em seu livro sobre os Estados Unidos, lembrava que publicou naquele ano para a mesma revista, numa seção dedicada à América, um texto sobre o jazz e algumas traduções de poetas negros e de cantos anônimos.

De qualquer modo, foi a partir da tradução do crítico literário que Pasolini tomou conhecimento da poesia e escreveu “Spiritual”, em fins dos anos 1940:

Spiritual
Lustri al è el falsèt
tal muscli da la cort
ta li còtulis di me mari da la cort
ta li cuèssis di ciavàl da la cort,
lustri coma na stela.
Hèila, bocia!
Li barghessis,
la maja,
i supièj,
i supièj da l’Anzul.
Hèila, bocia!
Li barghessis,
la maja,
i supièj.
Trenta francs pal cine
i siòrs da olmà,
sgnapa di Sabo
messa di Domènia,
Signòur!
Cine, sgnapa e messa,
e fèminis di Sabo
dut insembràt cu li barghessis,
la maja, il falsèt
e i siòrs da olmà.
Hèila, bocia!
Il me falsèt al è pai siòrs na stela
dismintiada da mijàrs di sècuj.
Cui sàia il colòur dai vuj di un Anzul?
Cui plànzia il colòur da la maja di un famèj?
Hèila, bocia! [9]

Spiritual
Brilha a foice
no musgo do quintal
nas anáguas da mãe no quintal
nas coxas do cavalo no quintal,
Brilha como uma estrela.
Ei, cara!
As calças,
a blusa,
as sandálias,
as sandálias do Anjo.
Ei, cara!
As calças,
a blusa,
as sandálias.
Uns trocados pro cinema
os bacanas pra espiar,
pinga aos sábados
missa aos domingos,
Senhor!
Cinema, pinga e missa,
e mulheres as sábados
tudo misturados co’as calças,
a blusa, a foice
e os bacanas pra espiar.
Ei, cara!
Minha foice é pros bacanas uma estrela
esquecida há milhares de séculos.
Quem conhece a cor dos olhos de um Anjo?
Quem deplora a cor da blusa de um rapaz?
Ei, cara!

Segundo Piera Rizzolatti, o “Spiritual” pasoliniano não pode ser comparado ao spiritual norte-americano, porque não é um canto espiritual, mas um canto de trabalho, de sofrimento, por focalizar a opressão dos pobres pelos ricos. No entanto, embora termine com a oferenda ao Senhor de seu instrumento de trabalho – “Uma escarradeira limpa no altar do Senhor. // Uma reluzente escarradeira limpa recém polida – / isso eu posso oferecer.”–, o mano da poesia de Hughes, representa todas as pessoas encarregadas das tarefas mais humildes nos hotéis de luxo, não importa em que localidade (Detroit, Chicago, Atlantic City ou Palm Beach): a vida que levam é sempre a mesma e elas são sempre mal remuneradas, mas com o que ganham dá para se virar, para ir levando e para se permitirem pequenas distrações. Trata-se, portanto, de um canto sobre exploração e de um canto espiritual, ao mesmo tempo, em que a crítica social predomina sobre o aspecto religioso, que surge como uma válvula de escape, mas também como um traço identitário.

Ao fazer de “Spiritual” uma espécie de “tradução de “Brass spittoons”, o poeta italiano transpôs para o universo campesino do Friul a temática do “original”, evidenciando, ele também, antes o lado social do que o religioso, o qual, quando se manifesta, o faz imbricado com o primeiro. A composição pasoliniana começa com o reflexo reluzente do instrumento de trabalho de um jovem camponês no ambiente ao seu redor: uma foice que brilha como uma estrela. A junção do falsèt (foice curva com um cabo de madeira curto) e da estrela remete a uma simbologia comunista e vem recordar o engajamento do próprio autor na luta dos camponeses contra os latifundiários, em fins da década de 1940.

E quando o instrumento agrícola e o astro luminosos reaparecem no fim da poesia, a alusão à estrela de Belém, não embaça a simbologia estabelecida, uma vez que ela anunciava a chegada de uma nova era. A referência ao Anjo reforça o advento de um novo Cristo revolucionário. Do ponto de vista formal, nas estrofes centrais, as mais próximas à poesia de Hughes, acentuam-se ainda mais as características da jazz poetry que Pasolini incorporou – o fraseado mais solto, o ritmo sincopado, as repetições –, o que dá à poesia um ar menos grave daquele assinalado por Piera Rizzolatti.

A liberdade formal de “Spiritual”, sem dúvida a composição mais excêntrica em relação à tradição poética ocidental dentro da qual estava inserida a produção do autor, não foi o único ponto de ruptura dessa primeira fase de seu labor literário, pois houve um fator bem mais importante. Ao pé da página das poesias em friulano, Pasolini colocava sua tradução em italiano, o que foi respeitado neste texto, com a reprodução de suas versões nas notas.

Guido Santato, retomando o raciocínio de Contini, o qual, segundo ele, “capta imediatamente a novidade poética e linguística da aparente dialetalidade pasoliniana”, fez uma leitura muito interessante dessas versões. Em sua opinião, elas “representam uma segunda redação, paralela e coexistente à primeira, elaborada com extremo cuidado […], exatamente pela evidente intraduzibilidade musical dos textos friulanos”. Para o autor, o que importa sublinhar nessas traduções “é o fato de as duas línguas já serem coexistentes e reciprocamente alternativas no momento da redação do texto poético, na bifurcação das escritas que emergia de um bilinguismo originário”.

Nesse sentido, não seria paradoxal afirmar que, no caso das poesias em friulano de 1942 e das posteriores, o texto vertido “é o ‘original’, o texto poético”, no qual o autor “afirma um uso do dialeto como uma ‘tradução ideal do italiano’”. À luz dessas considerações, poderia ser aventada a hipótese de que, para Pasolini, existia uma única língua poética, a qual, na página, adquiria múltiplas expressões.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de “Um descampado banhado de luar: notas e fragmentos”, que integra o volume Um intelectual na urgência: Pasolini lido no Brasil (Unesp\Unicamp).

Referências


BAPTISTA, Miguel. “Jazz poetry” (2009). In: CEIA, Carlos org.). E-dicionário de termos literários. Disponível em <https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/jazz-poetry>.

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CADEL, Francesca. La lingua dei desideri: il dialetto secondo Pier Paolo Pasolini. Lecce: Manni, 2002.

CONTINI, Gianfranco . “Al limite della poesia dialettale”. Corriere del Ticino, caderno “La pagina letteraria”, Lugano, ano IV, n. 9, 24 abr. 1943., Disponível em <https:// pasolinilepaginecorsare.blogspot.com/2020/04/gianfranco-contini-al-limite-della.html>.

FABRIS, Mariarosaria. “Pier Paolo Pasolini: primeiros tempos”. Revista de Literatura Italiana, Florianópolis, v. 2, n. 6, jun. 2021. Disponível em <https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/224178>.

HUGHES, Langston. “Brass spittoons”. In The collected works of Langston Hughes (2002). Disponível em <https://www.poetryfoundation.org/poems/47879/brass-spittoons>.

LOMBARDI-DIOP, Cristina. “Translating blackness: Langston Hughes in Italy”. In: KUTZINSKI, Vera M.; REED, Anthony (org.). Langston Hughes in context. Cambridge: Cambridge University Press, 2022.

NALDINI, Nico. “Cronologia”. In: PASOLINI, Pier Paolo. Tutte le poesie. Milano: Mondadori, 2003, v. I.

PASOLINI, Pier Paolo. “Dal laboratorio (Appunti en poète per una linguistica marxista)”. In: Empirismo eretico. Milano: Garzanti, 1972.

PASOLINI, Pier Paolo. Poesie a Casarsa. Bologna: Libreria Antiquaria, 1942.

PASOLINI, Pier Paolo. “La rabbia / A raiva”. In: Poemas, cit.

PASOLINI, Pier Paolo. Tutte le poesie, cit., v. I.

PICCIONI, Leone. Troppa morte, troppa vita: viaggi e pensieri intorno agli USA. Firenze: Vallecchi, 1969.

RIZZOLATTI, Piera. “Pasolini: ‘Spiritual’”. Oltreoceano, Udine, n. 10, 2015. Disponível em <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/8259810.pdf>.

SANTATO, Guido. “Paesaggio simbolico e paesaggio poetico nel Friuli di Pier Paolo Pasolini”.In: EL GHAOUI, Elisa (org). Pier Paolo Pasolini: due convegni di studio. Pisa-Roma: Fabrizio Serra, 2009.

SITI, Walter et alii. “Note e notizie sui testi”. In: PASOLINI, Pier Paolo. Tutte le poesie, cit.

Notas


[1] “[Il fanciullo morto]” – “Sera mite all’ultimo barlume, nel fosso / cresce l’acqua, una femmina piena / cammina pel campo. // Io ti ricordo, Narciso, tu avevi il colore / della sera, quando le campane / suonano a morto”.

[2] “Febbraio” – “Senza foglie era l’aria, / canali, pianelli, gelsi… / Si vedevano lontani / i borghi sotto i chiari monti. // Stanco di giocare sull’erba, / nei giorni di febbraio, / mi sedevo qui, bagnato / dal gelo dell’aria verde. // Sono tornato di estate. / E in mezzo alla campagna, / che mistero di foglie! / e quanti anni sono passati! // Adesso, ecco febbraio, / canali, pianelli, gelsi… / Mi siedo qui sull’erba, / gli anni sono passati per nulla.”

[3] “Alba” – “O petto svegliato / dal nuovo sole! / O mio caldo letto / bagnato di lacrime! // Con un’altra luce / mi sveglio a piangere / i giorni che volano / via come ombre”

[4] “Congedo” – “Ormai essere lontani, Friuli, / vale essere sconosciuti. Pare / il tempo del nostro amore un mare / lucido e morto. // Nella luce la tua parte / è finita, non ho buio nel petto / per tenere la tua ombra”.

[5] “Verrà il vero Cristo” – “Non ho coraggio di avere sogni: / il blu e l’unto della tuta, / non altro nel mio cuore di operaio. // Morto per due soldi, operaio, / il cuore, hai odiato la tuta / e perso i tuoi più veri sogni. // Era un ragazzo che aveva sogni, / un ragazzo blu come la tuta. / Verrà il vero Cristo, operaio, // a insegnarti ad avere veri sogni”.

[6] Tradução de Maurício Santana Dias. As demais traduções do italiano e do inglês são da autora.

[7] “Sospiro di mia madre su una rosa” – “Ti trovo sul lenzuolo / bianco, rosa bianca, / facendo il letto a mio figlio, / ti trovo sul lenzuolo. // Rosellina di mio figlio, / dove ti ha raccolta, / perché ti ha raccolta / la mano di mio figlio? // Taci tu, scontrosa, / come lui, che a quest’ora / chissà dov’è, / con la sua pace scontrosa. // Come nel grembo del cielo / taci nel suo lenzuolo / e quel mio giovane cuore / tace solo sotto il cielo. // Tutte due dimenticate, / la madre e la rosa! / Andando chissà dove / ci ha dimenticate”.

[8] “Escarradeiras de metal” – “Limpe as escarradeiras, mano. // Detroit, / Chicago, / Atlantic City, / Palm Beach. // Limpe as escarradeiras. // O vapor nas cozinhas de hotel, / e a fumaça nos saguões de hotel, / e o catarro nas escarradeiras de hotel: / parte da minha vida. // Ei, mano! // Um níquel, / uma moeda, / um dólar, / dois dólares por dia. // Ei, mano! // Um níquel, / uma moeda, / um dólar, / dois dólares / pros sapatos da criança. // Aluguel pra pagar. // Gim aos sábados, / igreja aos domingos. // Deus meu! // Crianças e gim e igreja / e mulheres aos domingos / tudo misturado com moedas e / dólares e escarradeiras limpas / e aluguel pra pagar. // Ei, mano! // Uma reluzente copa de metal é bonita pro Senhor. // Reluz o metal polido como os címbalos / das dançarinas do rei Davi, / como os cálices de Salomão. // Ei, mano! // Uma escarradeira limpa no altar do Senhor. // Uma reluzente escarradeira limpa recém polida – / isso eu posso oferecer. // Vem cá, mano!”.

[9] “Spiritual” – “Lucida è la falce / nel muschio della corte, / nelle sottane di mia madre della corte, / nelle coscie di cavalo della corte, / lucida come una stella. // Ehi, ragazzo! / I calzoni, / la maglia, / i sandali, / i sandali dell’Angelo. // Ehi, ragazzo! / I calzoni, / la maglia, / i sandali. // Trenta lire per il cine, / i ricchi da spiare, / grappa al Sabato, / messa alla Domenica, / Signore! // Cine, grappa e messa, / e donne di Sabato, / tutto mescolato con i calzoni, / la maglia, la falce / e i ricchi da spiare. // Ehi, ragazzo! // La mia falce è per i ricchi una stella / dimenticata da migliaia di secoli. / Chi sa il colore degli occhi di un Angelo? / Chi piange il colore della maglia di un garzone? // Ehi, ragazzo!”.


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