A volta da normalidade?

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Por BERNARDO RICUPERO*

A antipolítica é muito diversificada. Trata-se de um conjunto de fenômenos que se alimentam de um incômodo generalizado

A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, foi entendida como um verdadeiro terremoto político. O candidato de extrema direita, que poucos tinham levado a sério, por pouco não venceu já no primeiro turno, quando obteve 46% dos votos.

O espaço do centro político foi então corroído, o postulante do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), Geraldo Alckmin, não tendo chegado a 5% dos votos na disputa. O partido, que governara por oito anos e chegara ao segundo turno nas cinco últimas eleições presidenciais, passara de uma bancada de 54 deputados eleitos em 2014 para 29 parlamentares quatro anos depois.

Do lado da esquerda, o Partido dos Trabalhadores (PT) – agrupação que hegemonizara seu campo político desde 1989, data da primeira eleição presidencial direta em 29 anos– não chegou a ser destruído, mas se enfraqueceu consideravelmente. O nome petista na disputa, Fernando Haddad, recebeu, no primeiro turno de 2018, pouco mais de 29% dos votos, resultado que o colocara no mesmo patamar das eleições dos anos 1990, quando, por duas vezes, Luís Inácio Lula da Silva fora derrotado pelo pessedebista Fernando Henrique Cardoso. Na Câmara o PT continuava a ser o maior partido com 56 deputados, número, contudo, que equivalia a 13 parlamentares a menos do que elegera em 2014.

Em termos mais sérios, o voto antipetista foi um componente importante numa eleição realizada depois de 14 anos de governos do partido. Contribuiu para o resultado eleitoral um mal-estar difuso que se alastrara pelo menos desde os protestos de junho 2013; uma grave crise econômica atribuída, em grande parte, às administrações do partido; e as denúncias quase diárias de corrupção veiculada pela chamada Operação Lava Jato.

Não menos importante, o favorito, segundo as pesquisas, Lula, teve sua candidatura impugnada pela justiça eleitoral quando liderava com 39% das intenções de voto e, pouco depois, foi preso devido a denúncias de corrupção. Se Bolsonaro não tinha tempo no horário gratuito – 8 segundos contra os 5 minutos e 32 segundos de Alckmin em cada um de seus dois blocos – compensou o que fora o fator decisivo nas disputas eleitorais desde a redemocratização criando num veículo relativamente novo, a internet, uma eficiente rede de comunicação, na qual as chamadas fake news proliferavam.

O discurso do candidato do minúsculo Partido Social Liberal (PSL) vociferava contra a “velha política”. Tal orientação poderia ser relacionada a uma espécie de onda antipolítica mundial que parecia se manifestar em acontecimentos, como a vitória do Brexit no Reino Unido, a eleição de Donald Trump nos EUA e a boa votação de partidos tanto de direita como de esquerda chamados, de maneira imprecisa, de populistas. Uma explicação usual desse fenômeno atribuiu grande peso ao desgaste da globalização, sugerindo que os “perdedores” da liberalização financeira, implementada desde a década de 1990, estariam, finalmente, reagindo.

Na verdade, a antipolítica é muito diversificada, devendo talvez ser entendida como um conjunto de fenômenos variados que se alimentam de um incômodo generalizado. No caso de Jair Bolsonaro, seu programa, apesar da inspiração explícita em Donald Trump, se assemelhava mais a uma encarnação anterior do Partido Republicano dos EUA, que se identificara especialmente com a presidência Ronald Reagan, ironicamente, uma das impulsionadoras da globalização.

O ator canastrão se elegera, em 1980, combinando a defesa de valores conservadores com o liberalismo econômico. Fórmula improvável que o capitão reformado repetiu nas eleições brasileiras de 2018. Mas enquanto nos EUA a coalizão originalmente capitaneada pela candidatura Goldwater, em 1964, precisara esperar 16 anos para ser vitoriosa, no Brasil, Jair Bolsonaro se beneficiou do que dava a impressão de ser um colapso repentino do regime que se formara com a redemocratização.

De qualquer maneira, parecia improvável que assumir posições de direita no país, como fazia Jair Bolsonaro, traria sucesso político. Uma ditadura civil-militar que durou 21 anos estigmatizara tal orientação política ao ponto que um político ligado ao regime como Paulo Maluf chegara a se definir como de centro-esquerda. Em compensação, a mais de uma década de governo do PT fizera com que a esquerda passasse a ser identificada com o status quo. O desgaste resultante combinado com uma ofensiva cultural, com dimensão internacional, contra o “politicamente correto” fez com que a direita fosse se tornando com o tempo até trendy.

Em termos sociais, Jair Bolsonaro soube reunir apoio tanto no “mercado” como entre pentecostais. O primeiro grupo se deixou seduzir pela promessa de aprofundamento da liberalização econômica que, desde a década de 1990, avança, aos trancos e barrancos, no país. Mais recentemente, Michel Temer garantira apoio da burguesia, fortemente hegemonizada pelo capital financeiro, ao golpe parlamentar que o alçara ao poder por meio de compromissos semelhantes. No entanto, a “agenda de reformas” sempre esbarrou na falta de apoio popular.

A simpatia de evangélicos, cerca de 30% do eleitorado, pela candidatura de Jair Bolsonaro poderia compensar, em parte, tal dificuldade. Não por acaso, já como deputado dera grande atenção a temas morais, como o combate ao “kit gay” e ao aborto. Para cultivar boas relações com esse segmento passara a defender mesmo questões aparentemente sem grande apelo popular, como a home schooling.

A presença de Paulo Guedes no Ministério da Economia e de Damares Alves no Ministério significativamente (re)batizado da Mulher, Família e Direitos Humanos condensava, de certa maneira, esses dois pés do novo governo. De maneira complementar, se nomeou a deputada Tereza Cristina como ministra da Agricultura, forma de consolidar o apoio do agrobusiness num momento de reprimarização da economia brasileira.

A principal medida do programa econômico da presidência de Jair Bolsonaro foi a Reforma da Previdência. No entanto, ela foi aprovada principalmente devido ao empenho do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Manteve-se, todavia, o Teto de Gastos, adotado ainda durante o governo Temer, bloqueando de fato a possibilidade de que o governo fizesse investimentos.

A “agenda de costumes” avançou menos ainda. Poucos, por exemplo, continuam a falar hoje em iniciativas como a “escola sem partido”. Por outro lado, agitou-se incessantemente temas de uma espécie de guerra cultural capaz de manter os apoiadores de Bolsonaro mobilizados. Mesmo que iniciativas legislativas que visavam incentivar o armamento tivessem sido barradas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), conseguiu-se que o porte de armas triplicasse durante o atual governo.

As poucas realizações da presidência de Jair Bolsonaro não devem, porém, enganar, já que o propósito escancarado do presidente, explicitado desde antes da sua eleição, foi de destruição. Áreas inteiras, como a ciência e a tecnologia, cultura, direitos humanos, educação, meio ambiente, política externa etc. foram arrasadas, ou então, como explicitou Ricardo Salles na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, deixou-se “passar a boiada”.

No que se refere às políticas sociais, em contraste com o aumento de 59,2% do salário-mínimo durante as gestões petistas, não houve aumento real nos últimos três anos. Em termos mais amplos, como mostrou Amélia Cohn, em artigo na Lua Nova, promoveu-se uma verdadeira política de “abate social”, em que, por exemplo, se voltou à operação “pente fino” na previdência e assistência social e no Programa Bolsa Família, rebatizado de Auxílio Brasil, fazendo com que a fila dos que esperam pelo benefício chegue atualmente a mais de 750 mil famílias. Ainda mais sério, o Brasil voltou ao Mapa da Fome.

Jair Bolsonaro prometeu não governar com a “velha política”. No entanto, dois anos e meio depois da sua eleição depende do Congresso como nenhum outro presidente desde a redemocratização. O gasto com emendas parlamentares praticamente triplicou no governo do capitão reformado, passando de R$ 11,3 bilhões, em 2018, último ano da gestão Temer, a uma previsão de R$ 35,6 bilhões em 2022.

O momento decisivo da presidência de Jair Bolsonaro foi a eclosão, em março de 2020, do coronavírus no Brasil. Acuado, devido à má gestão da pandemia – que já matou mais de 670 mil pessoas no país – o presidente passou a se apoiar no chamado Centrão. Esta foi a forma que encontrou para garantir sua sobrevivência política e, mais imediatamente, evitar o impeachment. O casamento do capitão reformado com a “velha política” foi sacramentado definitivamente com sua filiação ao Partido Liberal (PL), de Waldemar Costa Neto, ex-preso do escândalo do Mensalão.

Mas mesmo no pior momento de avaliação Jair Bolsonaro não chegou a ter menos de 20% de eleitores, segundo o Datafolha, que considerassem sua administração como ótima ou boa. Conseguiu, portanto, criar uma base fiel que parece ser quase que indiferente às eventuais mazelas do governo e do país. Até a aproximação com o Centrão, que evidentemente contradiz o discurso de campanha, parece ter sido absorvida pelo grupo dos irredutíveis, aparentemente convencido de que o capitão reformado teve que fazer compromissos num mundo hostil que ainda pretende transformar.

É verdade que também durante a pandemia o governo Bolsonaro conseguiu níveis inéditos de aprovação popular tendo, ainda segundo Datafolha, 37% dos entrevistados considerado, em agosto de 2020, sua administração como ótima ou boa. A principal razão dessa avaliação foi o Auxílio Emergencial de R$ 600,00 instituído devido à Covid-19. Não deixa de haver certa ironia que um dos principais efeitos de tal medida tenha sido alavancar a popularidade do presidente, já que, o governo defendeu originalmente um aporte de R$ 200,00, o valor tendo chegado a R$ 600,00 apenas devido à insistência do Congresso.

No entanto, a política de destruição logo cobrou seu preço. Retirado o auxílio e mesmo com sua ressureição com o nome de Auxílio Brasil – com o objetivo declarado de sepultar o Bolsa Família, de inegável marca petista – a popularidade de Bolsonaro não se recuperou significativamente, tendo passado de 22% em novembro de 2021 a 26% em junho de 2022. Não menos importante, um personagem importante que fora retirado da cena política sem maiores explicações também, sem maiores explicações, voltou a ela por obra e graça do STF: Lula, que foi solto da prisão, em novembro de 2019, e teve seus direitos políticos restituídos, em março de 2021.

O novo quadro político passou a ser amplamente desfavorável a Bolsonaro. Assim, desde o começo de 2022, o governo tem se empenhado em promover uma série de “pacote de bondades”, que possibilitem que o presidente recupere o apoio que teve por conta do Auxílio Emergencial. A última e, mais ousada, dessas iniciativas é a chamada PEC Kamikaze, estabelecida em conluio com o Congresso e com a decretação de estado de emergência, interessado em manter o poder inédito que passou a ter na última presidência. Para tanto, o Auxílio Brasil volta ao valor do Auxílio Emergencial, R$ 600,00, procura-se zerar sua fila, cria-se um auxílio gás, um auxílio caminhoneiro e outros benefícios para diversas categorias, calculando-se que seus custos chegariam a mais de R$ 41 bilhões para os cofres públicos.

No entanto, até agora, a disputa eleitoral tem se mantido estável entre Lula e Bolsonaro. O único abalo mais significativo em favor do presidente foi sentido em março, com o abandono da candidatura de Sérgio Moro, quando boa parte do eleitorado “lavajatista” voltou a apoiar o capitão reformado. Nesse sentido, talvez se possa considerar que assim como se cristalizou, nos últimos três anos e meio, um significativo eleitorado bolsonarista também se formou um eleitorado, ainda mais numeroso, anti-bolsonarista.

Não há muita dúvida que Bolsonaro procurará dar um golpe. Até porque a exemplo de seu inspirador, Donald Trump, não esconde suas intenções. A única incerteza é se terá força suficiente para leva à frente seus propósitos.

Mais importante é avaliar qual será o significado de uma eventual vitória de Lula. Há muitos que sugerem que a derrota de Jair Bolsonaro representaria a volta à normalidade, ao menos, a estabelecida desde a redemocratização. Tem claramente esse sentido a escolha de Geraldo Alckmin como companheiro de chapa de Lula, decisão que apesar de não trazer muitos votos tem um forte valor simbólico, ao unir antigos adversários. De maneira reveladora, o candidato a presidente chegou a falar, com saudosismo, das pretensas disputas civilizadas entre PT e PSDB de um passado não tão distante.

Não devemos, porém, nos enganar. Jair Bolsonaro pode ter aparecido como um terremoto deixando em escombros o que fora um dia a Nova República. No entanto, está fortemente ancorado na história de um país que surgiu como colônia e que nunca teve grande consideração para a maioria da sua população, cujos antepassados foram trazidos à força da África.

*Bernardo Ricupero é professor no departamento de ciência política da USP. Autor, entre outros livros, de Romantismo e a ideia de nação no Brasil (WMF Martins Fontes).

Publicado originalmente no Boletim Lua Nova.

 

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