Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
A razão dual da dependência – a universidade pública entre modernização subordinada e exclusão racionalizada
1.
A universidade pública brasileira, ao longo das últimas décadas, deixou de representar um espaço autônomo de formação crítica e passou a se configurar como engrenagem funcional do capitalismo dependente. Longe de se situar à margem da reprodução das desigualdades sociais, ela opera como instância de gestão simbólica da precariedade, da exceção e da docilidade institucional.
O conceito de razão dual da dependência, formulado na intersecção entre a Teoria marxista da dependência e a crítica da razão dualista elaborada por Francisco de Oliveira, permite apreender com precisão a lógica contraditória que estrutura essa maquinaria universitária.
A primeira geração da Teoria marxista da dependência, com Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos, demonstrou que o subdesenvolvimento não é uma etapa a ser superada rumo ao desenvolvimento, mas parte constitutiva da acumulação capitalista em escala global.
Francisco de Oliveira introduz uma inflexão decisiva nesse diagnóstico ao afirmar que a coexistência entre formas modernas e arcaicas, longe de representar anomalia, é a própria racionalidade do capitalismo periférico. No caso brasileiro, essa duplicidade — ora como promessa de modernização, ora como permanência da exclusão — se cristaliza na universidade como forma institucional que mimetiza padrões do centro sem romper com a lógica da desigualdade que a constitui.
A razão dual da dependência, nesse sentido, nomeia a forma histórica da universidade subordinada, em que a excelência é edificada sobre os escombros da precariedade. A modernização ocorre por meio da subordinação e a inclusão, quando ocorre, é acompanhada da manutenção estrutural da carência.
Em tempos de financeirização da vida e do conhecimento, esse diagnóstico ganha atualizações relevantes. Leda Paulani e Eleutério Prado vêm demonstrando que a lógica da dependência reaparece hoje sob a forma da conversão do saber em ativo simbólico, regulado pelas exigências do capital fictício. A universidade, nesse novo ciclo, já não forma apenas pessoas: ela precifica reputações, submete saberes ao mercado e se organiza como plataforma de valorização abstrata.
2.
Essa racionalidade atua em três planos imbricados. No plano institucional, a universidade é atravessada por uma clivagem profunda. De um lado, concentram-se os departamentos com acesso privilegiado a financiamento, redes internacionais e visibilidade pública.
De outro, multiplicam-se cursos desassistidos, campi interiorizados e estudantes imersos na escassez, sustentados pela lógica da sobrevivência e por políticas compensatórias insuficientes. A excelência, nesse arranjo, não apenas convive com a carência — ela a exige para se afirmar. E a carência, ao se tornar norma, perde visibilidade, sendo recoberta pela retórica da meritocracia e da superação individual.
No plano epistêmico, a razão dual institui uma hierarquia do saber pautada por métricas, indexações e critérios que valorizam o que pode ser convertido em prestígio internacional. A densidade teórica ou o enraizamento social da pesquisa cedem lugar à sua capacidade de gerar visibilidade em plataformas e bases de dados.
Saberes locais, insurgentes ou dissonantes são silenciados ou moldados para atender aos protocolos normativos de avaliação. A universidade converte-se, assim, em dispositivo de tradução subordinada das agendas epistêmicas globais, enfraquecendo sua potência crítica e sua responsabilidade territorial.
No plano da subjetividade, a razão dual penetra nos corpos e nas rotinas de docentes e estudantes. A exigência de produtividade permanente transforma o professor em gestor de si mesmo, responsável por submeter projetos, captar recursos, medir impactos, cumprir prazos e alimentar plataformas.
O sofrimento, nesse contexto, deixa de ser interpretado como expressão de uma estrutura exaustiva e passa a ser lido como falência individual. O fracasso é privatizado. O tempo da reflexão cede lugar à urgência da entrega. Publicar torna-se rito de legitimação, não mais de diálogo intelectual. A linguagem da avaliação substitui a linguagem do pensamento.
A eficácia da razão dual reside justamente nesse duplo movimento: estetiza a precariedade ao apresentá-la como falta de gestão ou vocação pessoal, e simula modernidade ao revestir a exclusão com os símbolos da excelência. O que se anuncia como política de inovação revela-se, com frequência, tecnologia de controle.
A prometida autonomia institucional é, em realidade, gestão da escassez. O suposto compromisso público traduz-se em obediência a métricas externas. A universidade repete formas institucionais do capitalismo central, mas sem as condições materiais que lhes dariam substância. Opera, portanto, como ficção operacional de si mesma.
3.
A razão dual da dependência ultrapassa o campo do diagnóstico. Ela é instrumento crítico e, ao mesmo tempo, apelo à desobediência. Reconhecer sua presença não basta. É necessário enfrentá-la, recusando os alicerces simbólicos que sustentam o discurso da inovação e a gramática da produtividade.
Não há saída pela via da reforma incremental ou do aperfeiçoamento técnico. A alternativa passa por desmontar os dispositivos que silenciam a crítica e impõem a equivalência entre saber e impacto mensurável. É preciso abrir espaço para outras formas de escrita, de escuta, de pensamento — formas que escapem à lógica da reputação e restituam à universidade sua condição pública.
A universidade pública brasileira, tal como se apresenta, atravessa um esgotamento de forma e de conteúdo. Não se trata de anunciar seu fim, mas de reconhecer que sua configuração atual já não responde às promessas de formação crítica, de produção autônoma do saber e de emancipação cidadã.
No entanto, resistem nela outras formas. Aulas que escutam mais do que dizem. Pesquisas que recusam a sedução do impacto. Professores e estudantes que ainda se autorizam a errar, hesitar, pensar. É nesses gestos minoritários que germina outra universidade — aquela que se insurge contra a razão dual da dependência.
Nomear essa razão é, por si só, um ato de desobediência. Recusá-la é um gesto político. Mas o mais difícil talvez seja inventar uma outra lógica: uma que se funde na partilha do saber, não na gestão da escassez; que se organize por relevância social, não por rankings; que forme para a dignidade intelectual, não para o simulacro da excelência.
Esse outro possível é ainda incerto. Mas a recusa da duplicidade já é, ela mesma, um princípio de criação. E talvez esse princípio tenha começado onde ninguém ousava olhar: nos rastros do que ainda insiste em existir.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]
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