Por ZENIR CAMPOS REIS*
Apresentação do artigo por Cláudia de Arruda Campos.
“No poema O cacto, Manuel Bandeira nos fala de um cacto que, ao tombar, priva de confortos o entorno urbano que o constrange. E qualifica assim o personagem: ‘era belo, áspero, intratável’. Assim Zenir Campos Reis – com a beleza áspera e espinhenta de sua ironia – sacode acomodações do leitor. No texto ora republicado (como lembrança da data do seu falecimento) os espinhos se voltam para a incoerência conceitual e ideológica que acompanha a queda do muro de Berlim.”
Depois da queda
Depois da queda do muro de Berlim, todos os gatos são pardos.
Depois da queda muro de Berlim, a qualidade se converte em quantidade.
Depois da queda muro de Berlim, cachorro morto volta a rosnar.
Depois da queda muro de Berlim, cachorro que ladra também morde.
Depois da queda muro de Berlim, “sim” e “não” serão equivalentes e intercambiáveis, dependendo da correlação de forças.
Depois da queda muro de Berlim, a meteorologia passa à categoria de ciência social e as chamadas “ciências sociais” ao ramo das belas-artes.
Depois da queda muro de Berlim, fica abolida a rosa-dos-ventos.
Depois da queda muro de Berlim, o final harmônico da fábula “o lobo e o cordeiro”, será posto em destaque.
Depois da queda muro de Berlim, urge desregulamentar e flexibilizar a lei da gravidade.
Depois da queda muro de Berlim, as línguas e as gramáticas se servirão apenas dos pronomes indispensáveis às novas relações: eu e ele (o coiso) ou ela (a coisa).
Depois da queda do muro de Berlim, as crianças serão patrimônio da culinária de todos os povos e países.
Depois da queda muro de Berlim, “cesse tudo o que a antiga musa canta”.
Depois da queda muro de Berlim, comercializemos a Muralha da China.
Em tempo: a notícia da queda do muro de Berlim chegou a muitos lugares antes da notícia da queda da Bastilha.
*Zenir Campos Reis (1944-2019) foi crítico literário e professor de Literatura Brasileira na FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Augusto dos Anjos: poesia e prosa (Ática).
Publicado originalmente na revista Praga no. 8.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA