Por JOSÉ TAVARES CORREIA DE LIRA*
A concessão de diploma honorífico póstumo ao ex-aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
1.
Foi com muita honra que recebi da comissão de graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo, pedido de análise e instrução do processo de atribuição de diploma honorífico em homenagem póstuma ao ex-aluno da FAU, Antonio Benetazzo, em consonância com o projeto de “Diplomação da Resistência”. Iniciativas de reparação às violações de direitos humanos, ainda que de natureza simbólica, vêm se mostrando historicamente e em toda parte fundamentais às lutas por memória, verdade e justiça.
Inaugurada em 2023, a iniciativa da Universidade de São Paulo é absolutamente louvável. Como se sabe, o papel central da Universidade brasileira – e da comunidade USP em particular – na resistência ao regime de arbítrio instalado no país em 1964 fez dela um alvo preferencial de ações repressivas de toda sorte.
A intimidação e violação de direitos de professores e estudantes, a vigilância político-ideológica nas salas de aula e departamentos, as aposentadorias compulsórias e demissões infundadas, o impedimento arbitrário de contratações, recontratações e matrículas, as prisões ilegais, a tortura, o exílio forçado, a execução sumária e a ocultação de cadáveres atingiu pesadamente a comunidade uspiana, por vezes lamentavelmente contando com a cumplicidade de antigos dirigentes.
Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade mais de 10% dos mortos e desaparecidos no país durante a ditadura estavam de alguma forma ligados à USP. Antônio Benetazzo é um deles. Cultivar a sua memória, estudar e fazer conhecer a sua curta trajetória de vida, seu trabalho, sua obra artística, suas ideias e lutas não é apenas uma forma de homenagear o indivíduo, mas também um modo de amplificar na sociedade o conhecimento de um dos momentos mais sombrios da vida nacional e da importância daqueles que deram a vida na luta contra a tirania.
Aliás, na esteira dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a própria Comissão da Verdade da USP, instituída em 2013, incluiu entre as 14 recomendações conclusivas de seu relatório final a “diplomação dos estudantes que morreram ou desapareceram em razão da violação de seus direitos humanos pela ditadura civil-militar”.[i]
Da mesma forma, a Congregação da FAU-USP, em sua 651a. Sessão Ordinária, em 31 de agosto de 2022, aprovou o relatório final do Grupo de Trabalho “Políticas de Reparação”, composto por diversos professores e estudantes de graduação e pós da FAU, instalado em 30 de setembro de 2021 em resposta a uma Carta Aberta à Congregação encaminhada no dia seguinte ao fatídico 7 de setembro de 21 pelo Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design e o Coletivo Caetés da faculdade, reivindicando “um pronunciamento formal em desagravo às arbitrariedades cometidas durante a ditadura civil-militar e em honra às suas vítimas e aos que se puseram em defesa da democracia no país”.[ii] Entre as várias sugestões do GT aprovadas pela Congregação incluiu-se, expressamente, “a titulação simbólica como arquiteto e urbanista do ex-aluno Antonio Benetazzo, morto no dia 30 de outubro de 1972.”[iii]
2.
Antonio Benetazzo nasceu em Verona, na Itália, em 1o. de novembro de 1941. Sua família era de classe média baixa e emigrou para o Brasil em 1950 em meio à crise econômica italiana do pós-guerra. A inserção profissional não foi fácil e os pequenos negócios comerciais do pai forçaram a família a constantes deslocamentos pelo interior do estado de São Paulo. Residiram em Guarulhos, São Vicente, Caraguatatuba e Mogi das Cruzes e Benê estudou a vida toda em colégios públicos, intercalando os estudos com o trabalho, inclusive como operário, e desde a adolescência envolvendo-se também com as artes plásticas e o teatro.
Eram anos de grande mobilização social no país e os estudantes e artistas costumavam se aproximar dos movimentos operários e camponeses. Ainda secundarista, ele se engajou no movimento estudantil e nos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Em 1962, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, o PCB. Pouco depois, em 1964, ingressou no curso de Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, quando se transferiu de Mogi das Cruzes para São Paulo.
Em 1966, matriculou-se também – como era permitido à época – no curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da rua Maria Antônia. No mesmo ano, tornou-se presidente do Grêmio da FFCL-USP e se envolveu com a organização da Setembrada, uma grande manifestação de estudantes em todo o país durante alguns dias de setembro daquele ano. Participando intensamente da luta contra a ditadura, sua atuação política cada vez mais impregnava-se em sua produção artística, como se vê em obras como Abaixo a ditadura, de 1966, e Y muerto se quedó, em homenagem a Che Guevara, de outubro de 1967.
De 1968 é a xilogravura O povo é contra a ditadura militar. Por um Brasil livre, feita em parceria com o também artista e aluno da FAU Cláudio Tozzi, como um cartazete para o 30o. Congresso da UNE em Ibiúna, de cuja organização o estudante tomou parte.
Aproximando-se dos movimentos mais radicais de resistência à ditadura, desde 1966 Antonio Benetazzo se filiara à Dissidência Universitária de São Paulo. Foi nesse momento talvez que começou a duvidar de uma oposição mais institucional, pacífica aos militares, como aquela praticada por seu partido, o PCB, ou pelo Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, o único partido de oposição na legalidade, fundado no início daquele ano.
Cada vez mais o estudante, como tantos outros do período, parecia apostar na insurgência política como caminho para uma transformação revolucionária do país, tendo como exemplo a Revolução Cubana alguns anos antes. Em 1967, junto com toda uma ala de militantes do PCB, entre os quais uma dúzia de arquitetos e estudantes de arquitetura da FAU, ele rompeu com o partido para vincular-se à Ação Libertadora Nacional, a ALN, de Carlos Marighella.
Ao se envolver com o enfrentamento direto à ditadura, passou a viver sob a mira dos serviços de informação da ditadura e em 1969 assumiu definitivamente a clandestinidade, abdicando do convívio com sua família, amigos, de sua residência, de seus estudos na USP, de seu trabalho como professor, de sua carreira artística, de sua própria identidade.
Em meados de 1969, o militante embarcou numa longa viagem pelo exterior. Oficialmente foi para a Itália, seu país de origem, com o intuito de aprofundar-se no estudo da arte europeia. “Ao que tudo indica, após transitar por vários meses, deslocando-se entre diferentes países para despistar os órgãos de informação da ditadura, ele finalmente alcançou Cuba no segundo semestre de 1970, lá permanecendo por mais de um ano até regressar ao Brasil com o objetivo de prosseguir com as atividades de resistência política contra o Estado autoritário”.[iv]
Foi em meio ao treinamento de guerrilha em Cuba que, divergindo da avaliação de seus companheiros de ALN de que o agravamento da carnificina contra os núcleos de insurgência política no Brasil não era favorável à continuidade da luta armada, Antonio Benetazzo passou a integrar a ala dissidente do Movimento de Libertação Popular, o MOLIPO. Nessas condições retornou ao Brasil no segundo semestre de 1971, e se instalou clandestinamente em São Paulo com o objetivo de retornar à resistência armada no campo, convicto da possibilidade de derrubar a ditadura instaurada no período.
Foi com esse intuito que o MOLIPO investiu em uma estratégia de comunicação com o povo e Antonio Benetazzo passou a trabalhar como editor do jornal Imprensa Popular, onde publicou anonimamente vários artigos e também desenhos de análise da conjuntura e conclamação à insurreição. A documentação recolhida pela Comissão Nacional da Verdade demonstra que a ação da MOLIPO era monitorada de perto pelas forças de segurança. E de fato, um ano depois de seu regresso, em outubro – ou setembro – de 1972, Antonio Benetazzo foi preso, torturado e executado por agentes do DOI-Codi em São Paulo.
3.
Na lembrança de todos, Antonio Benetazzo, além do militante aguerrido e generoso, era também um leitor atento de poesia e filosofia. São célebres as suas aulas no Grêmio da FFCL e no Cursinho Universitário, onde trabalhava ao lado do colega de turma e também pintor Luiz Paulo Baravelli na preparação de estudantes que pretendiam concorrer ao vestibular da FAU. Muitos dos ingressantes na escola a partir de 1964 têm dele lembranças apaixonadas.
Por um breve período também lecionou História da Arte e Sociologia da Arte no antigo Instituto de Arte e Decoração, o Iadê, ao lado de Ítalo Bianchi, Odiléia Toscano, Sérgio Ferro, Ruy e Ricardo Ohtake, Carlos Fajardo, Jean-Claude Bernadet, Haron Cohen, Carlos Heck e outros. Ferro, a propósito, anotou: “Lembro de um seminário em que apresentou um texto então inovador e recente, o primeiro capítulo de As palavras e as coisas, de Michel Foucault, livro que reúne seus dois campos de estudo, filosofia e arte.
Na época, não havia ainda a massa enorme de comentários que hoje quase impede a leitura equilibrada deste texto. Antonio Benetazzo fez uma apresentação luminosa sem adesão beata, o que já era raro então.”[v] Para Alípio Freire, ele foi “a figura mais brilhante de nossa geração”.[vi]
Além do amplo acervo de memórias a seu respeito, Antonio Benetazzo deixou mais de 200 obras de arte, a maior parte das quais produzidas durante esses anos iniciais da ditadura, quando as atividades de estudo, docência e militância se intensificaram. Autodidata voraz no campo da arte, seus trabalhos deixaram-se impregnar de seus estudos sobre Michelangelo, Düher, Rubens, Goya, Kitagawa Utamaro, Utagawa Hiroshige, Toulouse-Lautrec, Kandinsky, Paul Klee, Modigliani, Saul Steinberg, Julius Bissier.
Trabalhou com inúmeras técnicas, materiais e suportes, com desenho, pintura, gravura, fotografia, colagem, cartaz, caricatura, silkscreen, giz pastel, grafite, guache, nanquim, ecoline, a certa altura aproximando-se do pop latino-americano, como diria Frederico Morais, mais agressivo e político que o estadounidense: que “contesta, mas que constata”.[vii]
Espalhada por cerca de vinte residências, de amigos e familiares de Antonio Benetazzo, a quem o estudante doou sua produção artística antes de entrar na clandestinidade, sua obra é ainda de acesso público limitado. Algumas exposições póstumas começaram a trilhar esse esforço de reunião de seu trabalho como artista e a reconhecer o artista-militante.
A primeira exposição póstuma ocorreu em 1981, na entrega do III Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, instituído poucos anos depois do assassinato Herzog no interior do DOI-CODI. Em 1990, o jornalista Alípio Freire organizou a segunda mostra, Pontos, linhas e planos – Antonio Benetazzo e seus camaradas, reunindo 30 trabalhos de sua autoria ao lado de um conjunto de obras produzidas por outros sete artistas-militantes em presídios paulistas durante a ditadura.
Em 2016, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e a Secretaria de Cultura de São Paulo reuniram-se em torno da mostra Antonio Benetazzo, permanências do sensível, realizada no Centro Cultural São Paulo, com curadoria de Reinaldo Cardenuto.[viii]
Em vida ele expôs o seu trabalho em apenas uma ocasião, em 1968, na segunda edição da mostra do Museu de Arte Contemporânea da USP, idealizada e conduzida por seu diretor o Prof. Walter Zanini. Hoje, no MAC USP, estamos trabalhando para nos associar à presente reparação e incorporar algumas de suas obras ao acervo do Museu.
Não apenas como uma forma de preservação de sua memória e sensibilidade toda especial para o momento político do país, mas pela qualidade de sua produção que, oscilando entre o histórico e o atemporal na arte, o poético e a guerrilha artística manifesta ainda hoje, com toda exuberância, o melhor do ponto de vista, da inquietação política e dos sentimentos revolucionários de sua geração.
Catálogo da segunda exposição Jovem Arte Contemporânea no MAC USP, São Paulo, 1968 – Um dos três trabalhos de Benetazzo expostos na 2a. JAC sob o título “E quando não tem inspiração?”
4.
Assassinado ainda muito jovem, quando apenas despontava nas artes, na docência e na política, foi graças a esforços de amigos que sua vida não foi completamente apagada. Impossível dizer em que seara ele viria a se destacar, tantas as suas qualidades e vocações, e a distinguir esta Universidade em sua trajetória. Seria ele hoje um grande artista, filósofo ou arquiteto? Um professor de história e teoria da arte e da arquitetura?
Teria se afirmado como um poeta ou se engajado na luta pela Anistia, pelas Diretas Já, pelos direitos humanos, pelos direitos sociais, pelo socialismo? Ou teria se afirmado como um político à altura das demandas mais justas do povo, algo cada vez mais raro dos dias de hoje? Ou tudo isso junto, humanista radical que sem dúvida foi, entregando a vida inteiramente à arte, à educação, à utopia e à luta corajosa contra a tirania?
São muitas as versões sobre a brutalidade de seu assassinato. Segundo versão oficial, Antonio havia se suicidado ao jogar-se sob um caminhão, depois de indicar a agentes local de encontro com companheiros. O Relatório Periódico de Informações no. 10/1972 do II Exército, de 6 de novembro de 1972, confirma a prisão em 27 do mês anterior. O nome de Benetazzo integra também a lista da Informação no. 4.057/16/ 1975 /ASP/SNI, de 11 de setembro de 1975. Consta desse documento que ele morreu no estado de São Paulo, em 30 de outubro de 1972. Antonio foi enterrado como indigente na vala de Perus.”[ix]
Segundo o relatório final da CNV, Antonio Benetazzo “foi preso no final de outubro de 1972 e levado ao DOI-CODI/SP, onde foi torturado até a morte.” Em Bananas ao vento, Jefferson Del Rios, afirma que ele foi assassinado sob tortura no DOI-Codi.[x] Marcio Colaferro, antigo professor do Iadê, conta que ele foi um professor excepcional e que “vi ele ser assassinado na frente do IADê pela ditadura. A polícia passou com o carro em cima, deu tiro… e todos viram!”).[xi]
Em artigo para a Folha de S. Paulo, posterior à divulgação do relatório da CNV, a jornalista Monica Bergamo, conhecida pela credibilidade de suas fontes, detalha o episódio brutal de seu assassinato: “Os militares levaram Antonio Benetazzo para um sítio em Parelheiros e deram um golpe na cabeça dele. Depois, passaram com a roda de um Fusca sobre seu crânio. No caminho para o Brás, onde pretendiam deixar seu corpo, ele acordou. Resolveram voltar. Dessa vez decidiram exterminá-lo a pedradas. Com a certeza da morte, fizeram de novo o caminho do Brás, onde o cadáver foi jogado na frente de um caminhão em movimento, para simular suicídio. Era 30 de outubro de 1972”.[xii]
Morreu a pedradas no sítio 31 de março em Parelheiros e foi enterrado como indigente na vala clandestina do Cemitério de Perus. Seu corpo só foi encontrado em 1990, com a abertura da mesma, ao lado do corpo de Alexandre Vanucchi Leme e de outros 12 militantes mortos pela repressão.[xiii]
A concessão de diploma honorífico póstumo ao ex-aluno desta Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Antonio Benetazzo, que dedicou a sua vida à arte, à poesia, à filosofia, à docência, à justiça social, à luta intransigente pela liberdade e contra a ditadura, é uma homenagem absolutamente coerente com a defesa da democracia, dos direitos humanos e dos valores universitários fundamentais como a pluralidade de ideias, o exercício da liberdade de pensamento, expressão e associação, a atividade crítica e a diversidade social.
Reafirmando os compromissos assumidos pelo GT Reparação criado pela Congregação desta casa, não poderia deixar de saudar essa iniciativa como gesto de valorização da memória social entendida como lócus importante para o conhecimento das lutas e conquistas coletivas contra as inúmeras formas de opressão e silenciamento. A concessão desse título pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e pela Universidade de São Paulo é um sopro de esperança em uma sociedade verdadeiramente democrática. Viva Benetazzo! Benetazzo Vive!
*José Tavares Correia de Lira é professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e diretor do MAC-USP.
Notas
[i] https://sites.usp.br/comissaodaverdade/relatorio-final/
[ii] https://forms.gle/o72hAq6DQ9TWxjTX9
[iii] Ata da 651a SESSÃO ORDINÁRIA da Congregação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo, realizada em 31.08.2022, pp. 69-77.
[iv] Reinaldo Cardenuto. Antonio Benetazzo, permanencies do sensível. In Cardenuto, R. (org.) Antonio Benetazzo: permanencies do sensível. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2016, p. 24
[v] Sergio Ferro. Arte libertária e os silêncios da história. In Cardenuto, R. (org.) op. cit., p. 31.
[vi] https://youtu.be/6L-VKnlVSUQ
[vii] Frederico Morais. Arte Americana: o meio, a estrada, na estrada. Revista GAM, n. 15, 1968, p. 19, apud REIS, P. Histórias, marcas e vestígios. In Cardenuto, R. (org.) op. cit., p. 37
[viii] Cardenuto, R. (org.) Op. cit.
[ix] Idem, p. 530.
[x] Jefferson Del Rios. Bananas ao vento. São Paulo: Senac, 2006.
[xi] Marcio Colaferro, In Sephan, A. P. A criação do Iadê – Instituto de Arte e Decoração 1959. DATJournal, v.5, n.2, 2020.
[xii] Monica Bergamo, O artista indigente, Folha de S. Paulo, 19 jul. 2015.
[xiii] Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/ Comissão Nacional da Verdade. Vol. 1. Brasília: CNV, 2014, p. 515.
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