Um comentário da prosa não literária do cineasta italiano
Por Afrânio Catani*
Muitos o chamam de “o poeta do tédio”; outros classificam suas obras como ininteligíveis; se vivo, Nélson Rodrigues talvez fizesse acerca de seus filmes o mesmo juízo que atribuiu à Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha: “é um texto chinês de cabeça para baixo”. A crítica quase sempre o endeusou, bem como os cinéfilos e parcelas do público cultivado. Apesar de ter recebido dezenas de prêmios, Michelangelo Antonioni (1912-2007) experimentou não poucos fracassos comerciais e vários de seus projetos não conseguiram sair do papel.
E é do que não saiu do papel que será tratado aqui: em 1983, ele que já fora crítico de cinema, fizera roteiros, dirigira 11 curtas e 15 longas, publicou pela Einaudi, Torino, Quel Bowling Sul Tevere (tradução brasileira: O fio perigoso das coisas e outras histórias.1990), reunindo 33 histórias – que ele denomina “núcleos narrativos”.
Com falsa modéstia, se define como “um diretor que escreve, não um escritor”, apresentando perfeito domínio de técnicas narrativas das mais variadas. Até então, nenhuma delas havia sido filmada. Mais tarde, porém, com Wim Wenders, dirigiu Além das Nuvens (1995), colocando na tela quatro delas: a história de amor que nunca existiu, a empregada de uma loja que assassinou o pai com uma dúzia de punhaladas, os jogos tragicômicos de divórcio em Paris e a bela jovem de Aix-en-Provence que decidiu ingressar em uma ordem religiosa, dirigindo-se para um convento.
O livro, que passou praticamente despercebido quando foi editado no Brasil, é permeado de anotações de ideias, cenas e diálogos para filmes a serem realizados. Quem tem familiaridade com a filmografia de Antonioni vai se deliciar, imaginando umas duas dezenas de películas excelentes que não se concretizaram. O crítico e professor Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) falou inúmeras vezes que achava O Sertanejo, de Lima Barreto (1906-1982), diretor de O Cangaceiro (1953), o melhor filme brasileiro. A fita, entretanto, nunca foi filmada, mas Paulo Emílio leu o roteiro e conversou tanto com Barreto que, para ele, O Sertanejo estava na linha de frente de nossa melhor produção.
Não é tarefa fácil destacar as histórias desse cineasta contidas nas 165 páginas do livro, com extensões das mais variadas. A menor delas, “Antártida”, ocupa apenas três linhas: “As geleiras da Antártida caminham três milímetros por ano em nossa direção. Calcular quando chegarão. Prever, num filme, o que acontecerá” (p. 19). A epígrafe extraída de Lucrécio (De rerum natura, V 195-99), é extremamente provocativa: “Mesmo ignorando como o mundo teve origem,/só de observar os movimentos do céu e muitas outras coisas/ posso ter certeza de que o mundo não foi criado para nós/por uma vontade divina: tantos são os males que contém”.
Se não tivesse se dedicado ao cinema, talvez Antonioni pudesse ter sido antropólogo, romancista, cronista. Em “Aquele boliche no Tibre” escreve que certa ocasião encontrava-se em Roma por acaso e estava meio sem rumo e sem atividade: “quando não sei o que fazer começo a olhar” (p. 65). E seu olhar vai percorrendo tudo, começando pelos olhos das pessoas (ou personagens?), vasculhando os ambientes que circundam essas pessoas, observando como se dão seus movimentos, como agem em suas profissões, como se relacionam com quem trabalham, caminhando até os detalhes aparentemente mais insignificantes.
Destaca a existência de várias técnicas para olhar, ressaltando que a sua “consiste em remontar de uma série de imagens a um estado de coisas. A experiência me ensina que quando uma intuição é bonita ela também é certa. Não sei por que. Wittgenstein sabia” (p. 65). Acrescenta, ainda: “grande parte do meu tempo é usado para procurar” [coisas, pessoas, lugares] (p. 65].
Leitor voraz, cita Barthes, Borges, Conrad, Eliot, Faulkner, Fitzgerald, Raimondi, Joyce, MacLeish, Tchekhov, dentre outros, demonstrando o quanto cinema e literatura podem confluir no sentido de mobilizar a vida afetiva.
Não faltam considerações sobre sua cidade natal, Ferrara, onde “no inverno desce uma neblina tão densa que é impossível enxergar um metro à frente” (p. 68). Ou ainda, em “Crônica de um amor que nunca existiu”, episódio de Além das Nuvens, em que, resumidamente, se trata “de uma história estranha entre um homem e uma mulher em Ferrara. Estranha para quem não nasceu nessa cidade. Somente um nativo de Ferrara pode entender uma relação que durou onze anos sem jamais ter existido” (p. 41).
Esclarece que, quando jovem, procurando quebrar as regras do decoro burguês, preferia ter amigos filhos de proletários, “e não burgueses como eu. Talvez inconscientemente eu traísse a origem popular dos meus pais, que eram burgueses autodidatas, digamos assim” (p. 83).
Aqui e ali, cutuca o way of life norte-americano: “em Las Vegas as palavras contam pouco” (“O deserto do dinheiro”, p. 109); em “A roda” aborda, de passagem, situação dramática vivida nas filmagens de Zabriskie Point (1970): o Cessna 177 em que estava com o piloto e o diretor de fotografia se chocou contra o teto de um carro e perdeu uma roda do trem de pouso, obrigando-os a jogar tudo que era indispensável para reduzir o peso di avião, a voar durante uma hora em volta da pista de areia para gastar combustível e contar com a sorte. Segundo o piloto, tinham 50% de chance de sair ilesos – o que felizmente aconteceu (p. 142-143); lembra, em “Não me procure”, que “os barulhos foram embora, os silêncios chegaram” (p. 161); que Luchino Visconti (1907-1976) o trancou, com dois outros roteiristas, num quarto de hotel durante quatro meses, na elaboração de Il processo di Maria Tarnowska, e em “A caminho da fronteira”, na Segunda Grande Guerra, com amigos, ficou escondido num sótão durante um mês, na região do Abruzzo, para fugir da deportação (p. 103).
Antonioni confessa que todas as vezes que está prestes a iniciar um filme, lhe vem a ideia de outro (“O horizonte dos eventos”, p. 9) e que sempre precisa fazer um grande esforço “quando termina um filme para começar a pensar em outro. Mas é a única coisa que me resta fazer e que sei fazer. às vezes para num verso que li, a poesia me estimula muito” (Quem é o terceiro ?…”, p. 131).
Entretanto, é em “O fio perigoso das coisas” (p. 125-130) que o velho mestre procura detalhar o nascimento de um filme, o parto, o insight, os angustiantes (para o diretor) três primeiros minutos. Uma manhã, diz ele exemplificando, acorda com algumas imagens na cabeça, ignorando sua origem e a razão de mentalizá-las. “Nos dias e nos meses seguintes elas voltam e eu (…) não faço nada para mandá-las embora. Fico olhando para elas e mentalmente faço anotações que depois passo para um bloco” (p. 125).
Em seguida transcreve as várias imagens recebidas, com local, data e hora em que se dão os acontecimentos – são 9 ou 10 -, detalhando-as. Até que se dá conta, de repente, de que “essa maneira inconsciente de gerar um filme não chegará a lugar algum se eu não segurar as rédeas. Em outras palavras, chegou o momento de organizar as ideias e somente elas. Transformar tudo que é instintivo em reflexivo. Pensar na história em termos de articulação de cenas, de início, desenvolvimento e fim, de estrutura. É necessário que a imaginação se torne inteligível (quase comestível), é preciso ajudá-la a encontrar um sentido. Roland Barthes diz que o sentido de uma obra não pode fazer-se sozinho, tudo o que o autor pode produzir são suposições de sentido, formas, se quisermos, e é o mundo que as preenche” (p. 128-129). Desconfiado, indaga: “Mas como pode Barthes contar com uma entidade tão incerta quanto o mundo? “ (p. 129).
O diretor comenta que um argumento que nasceu tempos atrás pode puxar outro, e trechos os projetos abandonados têm a capacidade de, efetivamente, se juntarem a argumentos futuros, acabando por se transformarem em um filme, meio que por casualidade. Se isso ocorre, então “é preciso atribuir às aventuras mentais as mesmas motivações e mecanismos que coordenam (ou desencadeiam) as aventuras reais de nossas vidas” (p. 130).
Fiquei em dúvida se terminava o presente comentário no parágrafo anterior. Isso porque acho que já havia dado o meu recado. Mas não resisti e me decidi por um bonus track, por uma observação de Seymour Chatman e Paul Duncan em livro dedicado ao cineasta e que condensa bem a sua forma de fazer cinema. Logo no início do volume há uma foto de Il deserto rosso (O deserto vermelho, 1964), em que Giuliana e Corrado detêm uma folha de jornal trazida pelo vento e a examinam. Escrevem os autores: “o significado desta sequência é que o espectador pode criar seu próprio significado, da mesma maneira que os personagens vão criar o seu. Nisso consiste a contribuição de Antonioni ao cinema (…) em encontrar imagens em que cada espectador pode encontrar seu próprio significado” (p. 4) -= as 33 histórias desse fio perigoso das coisas nos mostram isso.
*Afrânio Catani, professor aposentado da USP, é professor visitante na UFF
Referências
Michelangelo Antonioni. O fio perigoso das coisas e outras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
Inácio Araújo. O gênio retorna em “Além das Nuvens”. Folha de S.Paulo, 13. Setembro. 1996.
Seymour Chatman & Paul Duncan (org.). Michelangelo Antonioni – La investigación. Madrid, Taschen, 2004.
Benoît Conquet. “Par-delà les nuages”. In: Ciné/Libre, Paris, janvier, n. 24, p. 11, 1996.