Apocalipse nos trópicos

Frame de "Apocalipese nos Trópicos", documentário dirigido por Petra Costa/ Divulgação
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Por ANA CAROLINA DE BELLO BUSINARO*

Comentário sobre o filme de Petra Costa, em cartaz nos cinemas

1.

Tanto em Democracia em vertigem quanto em Apocalipse nos trópicos, Petra Costa imprime uma visão de mundo profundamente marcada por sua trajetória pessoal – uma lente que, embora aparenta ser analítica, ainda se enraíza em uma ideia de democracia idealizada, própria das elites que sempre tiveram o conforto de imaginá-la.

Essa idealização aparece desde os primeiros minutos, quando a cineasta associa a construção de Brasília a uma espécie de nascimento simbólico da democracia brasileira – uma narrativa que ignora os rastros de violência colonial, desigualdade e violência que atravessam esse momento histórico.

É importante lembrar que Brasília foi projetada como um símbolo modernista de um Brasil progressista, mas sua construção representou, na prática, a expulsão e migração forçada de milhares de trabalhadores nordestinos, que ergueram a cidade sob condições precárias. Desde o seu nascimento, a democracia brasileira foi um projeto de cima para baixo – oficializado nos salões, nos acordos entre senhores, e não nas ruas, onde a maioria do povo seguia renegada a marginalidade. A ótica que essa história é contada já fornece pistas sobre os problemas futuros do conteúdo.

Essa leitura não se inicia “nos trópicos” – como se o caos fosse um fenômeno difuso e inevitável, fruto da irracionalidade popular em reverenciar um tipo de fé, ou como bem descreveu Tabata Tesser no blog da Boitempo, como se a religião fosse uma “patologia coletiva”.[1] O verdadeiro colapso começou há décadas, nos centros desses trópicos, onde elites econômicas e políticas, reunidas em jantares e conselhos empresariais, articulam o destino do país, em uma articulação não isoladamente do simbólico pelo simbólico, mas na teia das contradições políticas, sociais e econômicas que a religião está imersa.

São justamente esses bastidores – onde a ruína é arquitetada – que Petra Costa escolhe não filmar. Não por acaso: a cineasta é herdeira da Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras bilionárias do país, envolvida em múltiplas denúncias – aqui não vale de contar sua biografia, pois não se trata disso; abro para o leitor que realize uma pesquisa rápida – mostra que seu olhar no cinema é uma escolha de narrativa específica do seu lugar histórico.

2.

No cinema, o que se mostra, contrapõe e ascende perante o omitido. Ao que se propõe em investigar a ascensão do conservadorismo evangélico, mas o faz de maneira breve, a figura de Silas Malafaia, por exemplo, ganha destaque da narrativa como se fosse o epicentro da engrenagem.

Ele é, na verdade, um protagonista em “vertigem”, ou seja, uma dentre as diversas faces, mais ruidosa e midiática, que na realidade, deriva de uma estrutura político-econômica muito mais complexa e profundamente articulada em um grande fluxo do mercado da fé que lucra bilhões ao ano – seja de isenções fiscais, seja retirando dinheiro pela doação, seja capitalizando a exposição midiática em grandes empreendimentos chamados de churchs para o público mais jovem.

Por isso, o crescimento explosivo das igrejas evangélicas, se por um lado geram lucro de grandes empresas da fé, por outro lado, especialmente nas periferias urbanas e cidades menores, os pastores da classe trabalhadora, dedicam-se menos a conversão conservadora e mais à sua capacidade de oferecer rede de apoio, assistência, acolhimento e, em alguns casos, até segurança.

Assim, a religiosidade apresenta contradições reais, trazidas, timidamente (para não dizer insuficientes) no documentário. Essa diferença de lugar histórico na estrutura do capital é fundamental. Fingir que ela não existe só deturpa o que é a religião na história e no seu presente.

A fé é um vetor de mobilização coletiva real das classes marginalizadas. Demonizá-la em seu aspecto simbólico é cair na armadilha da despolitização: precisa-se fazer uma disputa consciente popular da cultura, e sobretudo, da articulação com o mundo político-econômico. Entretanto, a solução que a cineasta nos induz é no personalismo político como barreira de contenção desse suposto e absolutamente falso Frankstein maligno psicologizante, manipulador.

Alguns poderiam argumentar que Petra Costa, de fato, menciona o capitalismo como problema. Mas essa crítica parece diluída e mais transparente ao decorrer do tempo de tela, e muitas vezes resvala na mesma no discurso de que ninguém jamais soube lidar com a religiosidade popular, e de repente, a direita conseguiu – e por oposição retórica, a esquerda falhou. Em um dualismo simplista entre os católicos do bem e os evangélicos do mal, morre a possibilidade de estender o debate – e assim segue decaindo a narrativa, até a fala polêmica de Lula trazida mais abaixo.

A religião não é, por si só, sinônimo de obscurantismo pelo obscurantismo. O obscurantismo torna-se possível – e funcional – quando há um interesse econômico de classe muito bem definido. Esquecer esse fator de classe inerente ao processo do negacionismo na pandemia de Covid-19 e da guerra contra um suposto “marxismo cultural” ou “socialismo imaginário” é uma leitura malcheirosa que desarma a crítica e deixa o campo aberto para o avanço do viés moralista e despolitizante da extrema direita.

3.

Entrando em detalhes nessa guerra cultural contra o marxismo – e também, esquecido como ponto solto no documentário – é parte do enredo carrega uma história mais profunda. A Comuna de Paris (1871) foi esmagada com milhares de mortos; os bolcheviques enfrentaram perseguições internas e internacionais; insurgências em El Salvador, Nicarágua e Guatemala foram combatidas com sangue e apoio dos EUA; movimentos revolucionários africanos, no Congo e em Angola, foram desmobilizados à força; e o cerco econômico-ideológico permanece até hoje em Cuba, Venezuela, Coreia do Norte e na própria China, onde o capitalismo de Estado atua sob vigilância rígida.

No Brasil, durante a ditadura civil-militar, comunistas foram perseguidos, torturados e assassinados. Poderia citar outros diversos exemplos: guerrear contra o comunismo não é só um aspecto de “loucura” dos fanáticos religiosos. A guerra contra uma esquerda potente nos revela o porquê que é deste problema que se trata: uma sociedade capitalista, que visa sua própria reprodução, dissolvendo forças dissidentes.

A guerra cultural promovida é uma pauta histórica da burguesia nacional e internacional, com raízes profundas em projetos políticos de repressão violenta sob aqueles que olham e querem transformar o mundo pela base.

Já o negacionismo sanitário também foi, e continua sendo, uma retórica lucrativa. Em muitos setores religiosos, sobretudo entre os neopentecostais, a pandemia virou um campo simbólico fértil para fortalecer discursos de fé contra o “caos do mundo”, ao mesmo tempo em que se mantinham templos abertos, vendas de produtos religiosos e redes de doações intactas. O capital encontrou, na negação da ciência, um meio de continuar girando – e a fé foi o canal.

Agora, um dos pontos dignos de indignação do espectador é a fala de Lula dizendo que “não faz palanque em igreja”. A declaração, à primeira vista coerente com a laicidade do Estado – que se mantém no âmbito formal, mas que vale relembrar como as religiões afrobrasileiras e práticas de grupos originários continuam sendo colonialmente reprimidas – ganha outra dimensão quando se observa que o governo reiteradamente prioriza o diálogo institucional com a elite evangélica conservadora[2] colocando a disputa contínua dos espaços evangélicos populares no escanteio do debate político.

A estratégia fica mais exposta quando se compara o sindicalismo e seu ímpeto “derrotado” de organização política ao catolicismo como falha simbólica no oferecimento de respostas ao povo. O que piora essa centralidade da eleição de Lula como interrupção ou um momento que baixou a poeira da elite evangélica é extremamente frágil. Lembremos que a eleição foi completamente acirrada, e não foi por essa vitória que a bancada da Bíblia recuou. Muito pelo contrário.

4.

O que vemos hoje é a extrema direita ocupando o território da raiva acumulada na exaustão do trabalhador, enquanto o progressismo teme que sua popularidade pareça “populista” ou “radical” demais. Recuar em pautas essenciais para “acalmar” a bancada evangélica, sendo que boa parte dela segue rejeitando Lula e o PT, fazendo parte, inclusive, da sua massiva oposição dentro do Congresso Nacional. E não somente isso, mas a rejeição de Lula é decisiva entre a população de evangélicos.[3]

A vitória de Lula e a tentativa de golpe bolsonarista aparecem no documentário como um embate entre civilização e barbárie, entre democracia e autoritarismo. Mas há um paradoxo aqui: mesmo frágil, o sistema sobrevive – e é isso que deveríamos estar combatendo – a sobrevivência e o improviso não nos cabem enquanto sociedade brasileira trabalhadora. No chão das cidades, nas periferias, nos campos, nos quilombos e nas florestas, o apocalipse seguiu se agravando antes, durante e depois daquelas ruínas que são trazidas quase como que em forma de romance no fim do documentário.

Reitero: a religião por si só não é o problema da humanidade. O problema é a manipulação da fé por elites que transformam esperança de melhorar a sua situação de vida em uma gestão de instituição de mercadoria, e a espiritualidade em controle. Afinal, o apocalipse não é uma explosão – ele se dá no silêncio das concessões, nas omissões políticas, nas escolhas narrativas que transformam drama em espetáculo e evitam o conflito.

Talvez seja um pós-apocalíptico que é apocalíptico: achar que estamos caindo e se levantando subitamente em um respiro de vitória eleitoral progressista, enquanto a classe trabalhadora segue sendo cada vez mais renegada, jogada ao campo da passividade política, armadilha despolizante master da extrema direita.

A fé faz parte da cultura, e a cultura somos nós – múltiplos, complexos, contraditórios. Mas é preciso delimitar o que é inconciliável: há uma elite evangélica, branca, bilionária e articulada com o capital, que usa essa fé como instrumento de dominação dos marginalizados.

E há uma base evangélica popular, preta, pobre e periférica, que encontra na igreja o só consolo, a segurança, enquanto carrega injustamente essas elites e o Brasil inteiro nas costas, que é ativa e sabe dos problemas que tem. Tratar a religião evangélica como crime no todo é essencialmente despolitizar a questão, e quando não disputamos a base da fé, abandona-se o espaço, impulsionando a dissolução do potencial transformador em perigo reacionário.

*Ana Carolina de Bello Businaro é graduanda em ciências sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Referência


Apocalipse nos trópicos
Brasil, 2025, Documentário, 110 minutos.
Direção: Petra Costa.

Notas


[1] TESSER, Tabata. Entre santos e vilões: “Apocalipse nos Trópicos” e os estereótipos sobre a fé no Brasil. Blog da Boitempo, 17 jul. 2025. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2025/07/17/entre-santos-e-viloes-apocalipse-nos-tropicos-e-os-estereotipos-sobre-a-fe-no-brasil/.

[2] AGÊNCIA ESTADO. Lula tenta investida para se aproximar de evangélicos e entrega de ministério entra no radar. UOL Notícias, São Paulo, 10 nov. 2024. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/11/10/lula-tenta-investida-para-apromixacao-com-evangelicos-e-entrega-de-ministerio-entra-no-radar.htm. Acesso em: 21 jul. 2025.

[3] BRASIL DE FATO. Pesquisa AtlasIntel aponta queda na aprovação de Lula; evangélicos são grupo mais descontente. Brasil de Fato, São Paulo, 10 fev. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/02/10/pesquisa-atlasintel-aponta-queda-na-aprovacao-de-lula-evangelicos-sao-grupo-mais-descontente/.

CARTACAPITAL. A avaliação do governo Lula entre evangélicos e católicos, segundo nova pesquisa. CartaCapital, São Paulo, 3 jun. 2025. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/a-avaliacao-do-governo-lula-entre-evangelicos-e-catolicos-segundo-nova-pesquisa/.


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