As cartas falsas

Imagem: Ylanite Koppens.
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Por ALEXANDRE JULIETE ROSA*

As correspondências responsáveis por lançar as forças armadas, em definitivo, na luta desabrida e revolucionária pela derrubada do regime republicano

“A carta insultuosa aos brios dos militares foi a chama chegada ao estopim… é a nova Questão Militar, que desenrolará seu processo recidivamente até a crise final em outubro de 1930” (Hélio Silva, 1922: Sangue na Areia de Copacabana)

A narrativa que se segue foi elaborada a partir do que ficou conhecido na historiografia brasileira como o episódio das “cartas falsas”. Se há alguma estória na história, é coisa mínima e de somenos para as consequências nacionais que se seguiram ao dia 09 de outubro de 1921. Esta foi a data em que foram publicadas, no Correio da Manhã, as missivas responsáveis por lançar as forças armadas, em definitivo, na luta desabrida e revolucionária pela derrubada do regime republicano instaurado em 15 de novembro de 1889.[i]

Era pra ser um lindo carnaval…

Os irmãos Jacinto e Cândido Guimarães viajaram, de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, no dia 08 de fevereirode1919, encarregados de comprar artigos de carnaval para embelezar o desfile do Club dos “Planetas”. Seguiram de trem, carregando vultosa quantia em dinheiro, fruto de contribuições as mais diversas, dos comerciantes e bons cidadãos da cidade juiz-forana.

Todos empolgados com o retorno do Club, há alguns anos afastado das festividades ao rei Momo. A diretoria e os sócios dos “Planetas” já estavam em atividade desde o início daquele ano para levantar o dinheiro necessário à saída do préstito em março. Da soma de 1:000$000 (um conto de réis – algo em torno de R$120.000,00), cerca de 700$000 (setecentos mil réis) foram entregues aos dois irmãos. O problema era que, já estavam a 20 de fevereiro e nenhuma notícia. Alguns membros da diretoria dos “Planetas” vão até a residência dos rapazes, sendo informados da viajem – sem data para retornarem. Uma das irmãs Guimarães acrescentou: “viajaram com malas suficientes para meses de estadia no Rio” e que até aquele momento, “não tinham dado notícias”.

Grande calafrio percorreu a espinha do presidente dos “Planetas”. Tinham-no alertado da imprudência: “entregar dinheiro aos Guimarães? –sempre enroscados na lei!”. Fizeram contatos com as lojas nas quais os artigos iriam ser comprados. Nenhum alfinete vendido aos mineiros. Foram ter com a polícia, não teve jeito. A queixa deveria ser encaminhada à polícia de Belo Horizonte, responsável por investigações interestaduais.

Foram ter com o primeiro delegado auxiliar, dr. Vieira Braga, que já conhecia bem os acusados. Tinham sido presos em 1915, por estelionato e falsificação de documentos. Havia, também, recente queixa envolvendo a compra de um terreno em Barbacena, na qual apareciam protestados os irmãos Guimarães e mais um tal Borzetti. Relatou a vítima desse golpe que os compradores utilizaram notas falsas na aquisição da terra. O dr. Vieira Braga consultou os arquivos e chegou até a denúncia perpetrada pelo procurador dr. Senna Valle, da comarca de Juiz de Fora, em agosto de 1917, contra uma quadrilha de falsificadores de cédulas, composta, entre outros, pelo já citado Fellippe Borzetti, sua irmã Maria Borzetti e o senhor Jacinto Guimarães. Esse inquérito ainda corria em aberto.

Diante da queixa realizada pelos dirigentes dos “Planetas” e das informações dos inquéritos precedentes, o dr. Braga organizou uma diligência que foi bater à porta de Fellippe Borzetti. Este, estupefato com a presença da polícia, acabou metendo os pés pelas mãos e entregou todo o plano forjado pelos meliantes. Os irmãos Guimarães viajaram ao Rio de Janeiro com algumas malas cheias de dinheiro falsificado, mais um bom volume em dinheiro “de verdade”, que ele, Borzetti, declarou não saber a procedência. O plano era misturar dinheiro verdadeiro ao falso “pra limpar” em apostas no Derby Clube do Rio de Janeiro.

No dia 10 de março de 1919, os agentes mineiros desembarcaram no Rio de Janeiro, dando início às investigações. Com toda a letra fornecida pelo Borzetti, não foi difícil deter os irmãos. A 19 de março embarcaram com os meliantes presos de volta para Minas Gerais. Foram dias de agrura para os irmãos Guimarães. Durante dois meses, na cidade mineira de Palmira, Jacinto Guimarães ficou trancado em uma prisão infecta, de onde sofreu toda sorte de ameaças e torturas, inclusive fome e sede. Foi ali injuriado, insultado e, em certa noite, segundo disse, se não tivesse oposto séria resistência e energia, iriam conduzi-lo para o mato e torturá-lo até confessar o crime que, segundo ele, não praticara.

Por intermédio de um habeas corpus, Jacinto Guimarães foi posto em liberdade, ficando à disposição da justiça até o fim das investigações, que lhe foram favoráveis após o julgamento ocorrido em setembro daquele ano. O irmão, no entanto, não teve o mesmo destino e amargurou quase um ano de xadrez. Jacinto sustentou que sua prisão fora produto de intriga do referido criminoso Borzetti e da cumplicidade e perversidade da polícia mineira.

Devolveu uma pequena parte do dinheiro ao Club dos “Planetas”, nem vinte por cento do total a ele entregue. Disse ter sofrido muito naquele período de tranca. A família chegou a passar fome, segundo disse, além de humilhações, ameaças e prejuízos, quer de ordem moral, quer material. Quando foi posto em liberdade só tinha uma única ideia na cabeça: a vingança contra as autoridades policiais de Belo Horizonte, em especial o dr. Braga, o delegado militar Mello Franco e, principalmente do próprio chefe o governo de Minas Gerais, o Exmo. Sr. Dr. Artur Bernardes.

No Derby Clube

Em suas incursões ao Derby Clube, Jacinto Guimarães travou relações com o distinto senhor Oldemar Lacerda, cujo irmão, João Maria Lacerda, era funcionário do Ministério da Agricultura. Oldemar frequentava a alta sociedade carioca e privava com pessoas importantes do meio político. Arquitetava planos para a consecução de um projeto empresarial de grande monta – uma empresa de pescas com barcos a vapor. Isso por quê, desde o final de 1919,o governo havia iniciado o projeto de “nacionalização da pesca”, que teve como grande artífice o capitão de fragata Frederico Villar, comandante do cruzador José Bonifácio. A Missão do cruzador José Bonifácio, sob custódia da Marinha de Guerra, percorreu toda a costa litorânea do Brasil entre 1919 e 1923, organizou as “colônias de pescadores” e abriu espaço para novos empreendimentos comerciais no setor da “indústria da pesca”.[ii]

Oldemar já havia recebido informações privilegiadas acerca da “nacionalização”, compartilhando-as, inclusive, com os irmãos Guimarães. Os mineiros foram convidados a entrar como sócios da parada, muito em virtude daquela dinheirama toda que ostentavam no Derby. A prisão dos Guimarães arrefeceu um pouco os planos para a concretização da empresa. Oldemar tentou por outras vias, contraiu alguns empréstimos, fez uma viajem à Inglaterra para sondar alguns navios que compraria para a frota. Em setembro de 1920 conseguiu, com muito empenho do irmão, uma audiência com o então ministro da Marinha, o sr. Raul Soares.

Pretendia, com o aval do ministro, uma entrada triunfal na “indústria da pesca”, e nada melhor do que uma ajudinha de um prócer da República. Sabia que um dos objetivos da Missão do cruzador José Bonifácio era a construção de uma marinha mercante, principalmente a da pesca, entrelaçada com a Marinha de Guerra, no sentido de ajudar no patrulhamento das costas brasileiras. Deu essa cartada ao ministro, talvez um tanto abusada, e Raul Soares respondeu com uma tremenda negativa aos propósitos do pobre Oldemar. Coitado, não conseguiu segurar o pranto ao contar para o irmão a debacle de sua audiência com o ministro. João Maria ainda tentou alguma coisa junto ao Ministro da Agricultura, o sr. Idelfonso Simões Lopes, mas a coisa não foi para frente. Endividado, frustrado, cheio de rancor no coração, Oldemar Lacerda só pensava em uma coisa: se vingar daquele canalha do Raul Soares.

Mais um carnaval…

Jacinto Guimarães e Oldemar Lacerda passaram juntos, no Rio de Janeiro, o carnaval de 1921.Embora programadas somente para o início de março, as comemorações ao rei Momo se iniciaram logo no início do ano. Isso por quê a gripe espanhola havia finalmente desaparecido e os festejos foram de tal monta que, até hoje, aquele foi considerado o maior carnaval de nossa história, conforme demonstrou o escritor Ruy Castro.[iii] Os dois companheiros se esbaldaram pelas ruas da metrópole, vararam madrugadas no Clube dos Democráticos e foram dos primeiros foliões a participar do desfile do Cordão do Bola Preta, fundado justamente naquele ano.

Entre uma ressaca e outra, pensavam num jeito de reavivar o projeto da empresa pesqueira. Raul Soares não estava mais no ministério da Marinha, que passou a ser ocupado por outro civil, o sr. Veiga Miranda. Podiam tentar uma reaproximação. O irmão de Oldemar, porém, advertia que as coisas não estavam muito boas no governo, principalmente nos ministérios militares. Havia enorme insatisfação com o Epitácio. Seria melhor esperar mais um pouco, “quem sabe o Hermes não emplaca outra presidência”, disse João Maria Lacerda. Os olhos de Oldemar faiscaram com essa premonição do irmão. Numa conversa com Jacinto, disse que a coisa estaria certa se o Hermes e os militares voltassem, “pra darem um jeito naquele demônio do Epitácio, e de quebra escorraçar o Rolinha, que anda colocando as asinhas de fora”.

As coisas não estavam fáceis para presidente Epitácio Pessoa, o primeiro, naquela República, a nomear civis para os ministérios militares. A nomeação de Pandiá Calógeras para o Ministério da Guerra e de Raul Soares, para a Marinha, causou enorme rebuliço na caserna. Além das nomeações, uma série de conflitos marcou as relações entre governo e militares naquele momento de grande agitação popular. Enquanto a folia se irradiava pelas ruas do Rio de Janeiro, as agitações nos quartéis se tornavam cada vez mais intensas. O governo agia com mão de ferro ante os conspiradores. Foi o “período das transferências”, em que muitos oficiais eram mandados para postos os mais distantes do país, na tentativa conter um pouco as maquinações insurgentes dos militares.

Do banquete do marechal ao Correio da Manhã…

Em novembro de 1920 havia desembarcado no Rio de Janeiro o marechal Hermes da Fonseca, após um período de cinco anos na Europa. Sua chegada foi saudada como a volta do messias. As agitações militares foram, em grande parte, canalizadas para ele, que tinha presidido o país entre 1910 e 1914. As homenagens prestadas ao ex-presidente dão a medida de como aquela figura era aguardada. Depois do tradicional banquete de recepção, outra grande manifestação para Hermes da Fonseca, com forte presença popular, ocorreu no dia 12 de maio de 1921, em ocasião de seu aniversário, comemorado no Teatro São Pedro.

No dia 2 de junho, o marechal Hermes organizou um banquete em retribuição às manifestações recebidas. Esse encontro acirrou ainda mais as tensões entre os militares e o presidente da República, pois contou diretamente com as classes armadas da nação. Aproximadamente 600 convidados — cerca de 300 militares de alta patente — estiveram presentes ao evento, organizado pelo comitê pró-Hermes (formado por generais, marechais, almirantes e políticos de oposição, sobretudo o deputado Mauricio de Lacerda).

O bródio aconteceu no imponente Palace Hotel e serviu também para o anúncio da candidatura do marechal para as próximas eleições presidenciais. Muitos discursos inflamados foram dirigidos contra a classe política. O mais exaltado deles, proferido pelo capitão-de-fragata Alencastro Graça, resultou na prisão do militar, por ordem direta do presidente da República. A candidatura Hermes da Fonseca ganhava cada vez mais solidez nos meios militares e no seio das populações urbanas, inclusive em certa parcela da classe operária, muito próxima a Mauricio de Lacerda, um entusiasta da candidatura militar.

Estiveram presentes ao banquete ninguém menos do que Oldemar Lacerda e Jacinto Guimarães. Oldemar havia entrado de cabeça na campanha Hermes da Fonseca. Frequentava as reuniões do Comitê da candidatura e tentava a todo custo se aproximar dos cabeças da organização. Logo depois que Jacinto retornou ao Rio, livre das garras da justiça mineira, narrou ao colega as agruras que havia enfrentado na cidade de Palmira, os pormenores daquela prisão infecta, as necessidades e humilhações que passou, a penúria da família e, principalmente, sua sede de vingança.

Oldemar, por sua vez, também contou as poucas e boas que sofreu no fatídico encontro com o ministro da Marinha, o sr. Raul Soares, o sentimento de humilhação que o tomou de assalto, a frustração em ver o grandioso projeto da empresa pesqueira ruindo e, também, a vontade infrene de se vingar daquele politiqueiro de Minas Gerais. No dia seguinte ao grande banquete do Palace Hotel, os dois caminhavam pelo Passeio Público, quando, de súbito, Oldemar teve uma ideia que o congelou por alguns segundo. E, ali mesmo, parado, olhou para o companheiro e disse – Jacinto, você é um exímio calígrafo, não? Ao confirmar tal habilidade, o mineiro recebeu outra interrogativa–Você percebeu que nós temos inimigos em comum? Jacinto não entendia onde o amigo queria chegar: –inimigo sem comum?

– Sim. O cretino do Artur Bernardes e o miserável Raul Soares.

– O que há de comum entre os dois?

Jacinto era um rapaz obstinado para fazer dinheiro, mas simplório em conjecturas mais amplas, pouco atento ao entorno, principalmente ao mundo político. Estavam atravessando a maior crise institucional daquela República. As grandes oligarquias – São Paulo e Minas – queriam emplacar o sr. Artur Bernardes na presidência, no que sofriam grande resistência das oligarquias intermediárias – Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia.

No meio desse impasse todo, os militares já haviam deixado os quartéis e formado postos avançados na lida política, principalmente com o entusiasmo declarado ao marechal Hermes. Estavam revivendo quase que uma segunda “Questão Militar”. O melhor dos mundos, diziam os “da oposição”, seria uma chapa Nilo Peçanha–Hermes da Fonseca, pra fazer frente a fórmula Artur Bernardes–Urbano dos Santos, chapa das oligarquias, da continuidade do café-com-leite…

Oldemar parecia em êxtase. Esfregava as mãos, mirava o mar infinito. – É isso, meu caro Jacinto!

– Isso, o quê?

– Vamos deitar mãos à obra…

Oldemar conhecia muita gente influente no Rio. Devotado à ‘campanha pró-Hermes’ voltou a se relacionar com o sr. Eduardo da Fonseca Hermes, filho de João Severiano da Fonseca Hermes, que era irmão de Hermes da Fonseca. Eduardo e Oldemar já se conheciam de outros carnavais. Combinaram, certo dia, um encontro na famosa sorveteria Alvear, para tratar de assuntos pertinentes à sucessão presidencial. Oldemar foi direto ao assunto:

–Então, o nosso marechal tem que ir mesmo ao Catete de qualquer maneira. Nós precisamos agir conjuntamente e você pode prestar o maior dos auxílios.

– Em se tratando de ajudar ao meu tio Hermes, presto qualquer auxílio. O que devo fazer?

– Eu sei que o seu pai tem uma carta escrita por Artur Bernardes e endereçada ao João Luiz Alves, tratando de coisas da política de Minas. Preciso que você pegue essa carta e me empreste por algumas horas.

– E por que você não pede direto a meu pai?

– Seu pai não acha viável a candidatura Hermes e é muito bernardista; ele não me dará a carta. Você é quem deve arranjar. Que diabo! Isto não te compromete. Eu restituirei a carta que você me trouxer. O caboclo velho vai para o governo e você não seja trouxa!

Depois de multo relutar, Eduardo surrupiou a carta do escritório e levou-a para Oldemar:

– Aqui está.

– Muito bem! Está salva a República! O seu tio vai ser o ditador!

Foi daí direto para a casa do Jacinto Guimarães, encarregando-o de “iniciar os treinamentos”. Dois dias depois devolveu a carta para Eduardo Fonseca Hermes, que, por sua vez, restituiu o documento a seu ligar de origem. Nas semanas seguintes, Oldemar procurou o advogado Pedro Burlamaqui, com quem mantinha relações as mais diversas. Programaram uma viajem rápida a Belo Horizonte, com o objetivo de adquirir um papel timbrado do governo de Minas Gerais. Numa visita às oficinas da Imprensa Oficial, Burlamaqui conseguiu algumas folhas timbradas e entregou-as a Oldemar, quando regressaram, em trens separados, ao Rio de Janeiro.

No início de outubro de 1921, Oldemar Lacerda procurou o sr. João Severiano Fonseca Hermes dizendo ser portador de “algumas cartas” comprometedoras ao sr. Artur Bernardes, documentos gravíssimos, ao ponto de inviabilizar a candidatura do governador de Minas à presidência. O sr. Fonseca Hermes, que já havia sido deputado federal por dois mandatos, achou a história muito estranha e quis saber das origens de tais cartas. Oldemar não conseguiu convencê-lo, se mostrou contraditório, incerto, a história não fechava bem. Fonseca Hermes se irritou com o fato de Oldemar não ter as cartas em mãos, pois que dali poderiam consultar um cartório para cotejar as assinaturas.

Fracassada essa primeira investida, Oldemar dirigiu-se, numa tarde de sábado, ao Derby Clube. Lá encontrou o senador Irineu Machado, um dos mais aguerridos defensores da candidatura Hermes da Fonseca. Confabularam um bom tempo no saguão do Derby. Não sabemos a história que Oldemar contou; o certo é que o senador lhe garantiu que tinha endereço certo par enviar os documentos –o Correio da Manhã.

Antes de entregar as cartas à publicação, Irineu Machado procurou o sr. Serpa Pinto, antigo funcionário da Caixa Econômica Federal, de quem esperou o veredito sobre a autenticidade dos papéis: sim… eram verdadeiras, disse o sr. Serpa, a letra é sim do ‘presidente’ de Minas, e a assinatura também.

Eram por volta de duas horas da tarde do dia 08 de outubro de 1921 quando a o telefone da redação do Correio da Manhã vibrou com insistência. O diretor do jornal, Edmundo Bittencourt, passava alguns dias de folga numa estação de águas em Lindóia, no interior de São Paulo. Em seu lugar, respondia o jornalista Mário Rodrigues. Do outro lado da linha, o senador Irineu Machado informava “Mário, escute. Uma pessoa que se encontra aqui ao meu lado, possui importantes documentos, que interessam muito à política. Essa pessoa, que vai embarcar amanhã para a Europa, pretendia dá-los ao Edmundo. Mas à vista da ausência do Edmundo, confiá-los-á a um redator do Correio. Venha aqui, em casa, buscá-los, com toda a urgência”.[iv]

Mario Rodrigues tomou um taxi e em pouco tempo chegava à casa do senador. Lá encontrou também um sujeito meio baixote, atarracado, que atendia pelo nome Oldemar Lacerda. Esse, sacou de uma pasta os ‘documentos’ e entregou ao repórter. Como saber se essas cartas são verdadeiras? Irineu Machado tinha em sua posse uma carta de Artur Bernardes endereçada ao deputado Ribeiro Junqueira, entregou-a a Mario Rodrigues para que ele próprio fizesse a conferência: São idênticas as letras…Além desta, o senador narrou os detalhes do encontro com o perito Serpa Pinto, a garantia dada pelo velho funcionário da Caixa Econômica, mais do que acostumado a exames dessa natureza. Na manhã do dia 09 de outubro estourou a bomba, enquanto Oldemar Lacerda singrava o oceano, a bordo do Massília, rumo à Europa.

Babilônia em chamas

A candidatura Hermes da Fonseca não tinha decolado. Em seu lugar, surgiu o nome de Nilo Peçanha que, junto ao senador baiano J.J. Seabra, formaram a chapa da Reação Republicana, nome que congregou as dissidências estaduais que se opuseram à candidatura Artur Bernardes – Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. Em agosto de 1921 o nome do marechal Hermes da Fonseca quase não aparecia nos jornais e a campanha da Reação Republicana começou a ganhar as ruas. Com o apoio dos militares, de parte do operariado e dos setores oligárquicos descontentes com o domínio das oligarquias mineira e paulista, os dissidentes estavam prontos para a realização de uma grande campanha presidencial, “com uma presença popular jamais vista naquela República”.[v]

Foi uma campanha à americana, como diziam alguns observadores da época. Em praticamente todos os estados foram criados comitês; a adesão da população urbana das grandes cidades crescia vertiginosamente; os militares tomaram parte na organização dos comitês e atividades políticas e eleitorais. Comícios, eventos e publicações na imprensa tomaram cada vez mais um sentido cívico-militar. O périplo da Reação Republicana se estendeu por todo o país. A caravana e os comícios de Nilo Peçanha pelas capitais do Norte e Nordeste eram repercutidos na imprensa como grandes feitos épicos.

Foi nesse clima que surgiu, nas folhas do Correio da Manhã, uma notícia que abalaria aquele processo de sucessão presidencial. Sob o título “Ultraje ao Exército” e um artigo de fundo dos mais diabólicos, as coisas mudaram de patamar naquela disputa eleitoral. Dizia o artigo que: “Um acaso pôs-nos ao corrente dos fatos, que é, nem mais nem menos, a perda de cartas comprometedoras, escritas pelo sr. Artur Bernardes ao senador Raul Soares. Publicamos hoje uma delas, que nos veio ter às mãos, para a evidenciação do que é esse politiqueiro inferior, que a má sorte de Minas elevou à mais alta expressão do seu governo. Mais do que isso: esta carta, enviada por ele ao sr. Raul, é uma indignidade e uma afronta atirada ao Exército, representado nos seus oficiais, até os mais graduados, chamados de venais e capazes de serem comprados”.[vi]

Eis o conteúdo da carta:

Belo Horizonte, 3–6–1921
Amigo Raul Soares
Saudações afetuosas.

Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados, e de tudo que nessa orgia se passou. Espero que use com toda energia, de acordo com as minhas últimas instruções, pois, sessa canalha precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina. Veja se o Epitácio mostra agora a sua apregoada energia, punindo severamente esses ousados, prendendo os que saíram da disciplina e removendo para bem longe esses generais anarquizadores. Se o Epitácio com medo não atender, use de diplomacia que depois do meu reconhecimento ajustaremos contas. A situação não admite contemporizações, os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões.

Abraços do Artur Bernardes.

Um detalhe importante — a data. A suposta carta havia sido escrita exatamente um dia após o banquete oferecido por Hermes da Fonseca às classes armadas, evento que resultou na prisão do capitão-de-fragata Alencastro Graça. Nos dias seguintes, os jornais do país repercutiam as “cartas ultrajantes” escritas por Artur Bernardes. Da imprensa, o burburinho passou para a agitação política, nas ruas e no Congresso, e principalmente entre as forças armadas. No dia 10, o Correio da Manhã voltava à carga, em editorial de meia página, clamando contra o perigo, caso “esse homem amoral, e agora provavelmente cretino, vier a obter a presidência da República”.[vii]

O marechal Hermes, que se encontrava em Petrópolis, assim que ficou sabendo da notícia, emitiu um telegrama convocando quantos oficiais fosse possível, para uma reunião extraordinária no Clube Militar, onde tratariam do assunto. Os dias foram de amplos debates em torno da veracidade ou não das cartas. No Congresso, deputados bernardistas, nilistas e alguns que se diziam representar a honra dos militares faziam seus comícios empunhado um exemplar jornal.

A primeira manifestação oficial do Clube Militar foi a de se declarar pela falsidade das cartas, posicionamento endossado inclusive pelo marechal Hermes da Fonseca. Isso por quê andavam circulando os nomes de dois possíveis falsários – Jacinto Guimarães e Oldemar Lacerda – que, junto com as veementes contestações de Artur Bernardes, fez o caso entrar em litígio; havia começado “a luta que iria abalar o país.”[viii]

No meio desse alvoroço desembarcou no Rio de Janeiro o sr. Artur Bernardes, no dia 15 de outubro, para participar do tradicional banquete de apresentação da plataforma de governo. Por mais que os ânimos estivessem exaltados, ninguém poderia imaginar as proporções que o evento iria tomar. Uma multidão já estava plantada na avenida Rio Branco à espera da comitiva que, ao passar, recebeu uma estrondosa vaia. Por toda a extensão da avenida, o povo – civis e militares – entoava a marchinha “Ai, seu Mé”, que satirizava o político mineiro utilizando seus apelidos, ‘Rolinha’ e ‘seu’ Mé, transformando aquela tarde de sábado num misto de guerra civil e carnaval.[ix]

Houve um quebra-quebra geral, vários coretos destroçados e incendiados, retratos de Artur Bernardes arrancados das vitrines das lojas e queimados. Estava coroada a obra do Correio da Manhã. No dia seguinte, o jornal dava uma capa inteira aos acontecimentos, com clichês do tipo “O Rio de Janeiro recebeu ontem, como ele merecia, o candidato da famigerada convenção do ‘mé’….”. Ou então: “Rolinha viu que a população carioca, representando a opinião pública nacional, não se submete à vontade dos politiqueiros”.

Era a consagração das “cartas”. O ponto máximo onde nenhum outro jornal havia chegado naquela República. A campanha difamatória contra o candidato de Minas ganhou um novo contorno depois das campanhas do Correio. Logo após a trágica passagem de Artur Bernardes pelo Rio, que só conseguiu ler sua plataforma de governo amparado por um forte esquema de segurança, desembarcaram na capital do país os políticos da Reação Republicana, consagrados pelas campanhas no Norte e Nordeste.

A sucessão de Epitácio Pessoa, a essa altura, já havia se transformado na mais grave crise política da República. Cada vez mais, nas manifestações de apoio a Nilo Peçanha, vai ficando caracterizada uma junção entre militares e civis. As tensões se voltam todas para a questão da autenticidade daqueles documentos estampados no Correio da Manhã. Das divisões internas do Clube Militar venceu a frente que apostava no tensionamento da questão. Formou-se uma comissão para um novo exame pericial nas cartas.

Na Câmara, o deputado Bueno Brandão, líder da bancada mineira, fazia a defesa de Artur Bernardes e atacava o Correio da Manhã; no Senado, fazia o mesmo o sr. Paulo de Frontin. O deputado Otávio Rocha tomara as dores do Exército e insistia na questão da “ofensa à honra e aos brios militares”. O clima era de tensão e expectativa pela conclusão dos trabalhos da comissão; “O Exército e o povo se dividiam em duas facções irredutíveis, que admitiam ou negavam a falsidade.”[x]

Contrariando todas as evidências que apontavam pela falsidade das cartas, no dia 28 de dezembro, o Clube Militar se reunia em assembleia extraordinária, presidida pelo marechal Hermes da Fonseca, para decretar a veracidade dos documentos e entregar o caso para o julgamento da Nação! Mais do que isso não podia fazer. No entanto, foi o bastante para incendiar a campanha da Reação Republicana. Nos meses subsequentes, até a data das eleições, que ocorreriam a 01 de março de 1922, o clima na capital da República e em boa parte das capitais do país era de uma guerra civil em estado latente.

Mesmo assim, como não podia deixar de ser, a chapa da situação saiu vencedora nas eleições: Artur Bernardes obtém 1.575.735 votos e Nilo Peçanha 708.247. Mas os resultados oficiais não contentaram a oposição, proclamando Nilo Peçanha o vício dos resultados e pedindo a verificação dos votos por um Tribunal de Honra. O não reconhecimento dos resultados por parte de Nilo Peçanha ganhou apoio do Clube Militar e do governo do Rio Grande do Sul, além de praticamente a totalidade dos que se empolgaram com a Reação Republicana. Essa manobra ateou mais gasolina na fogueira. A baixa oficialidade, que a história viria a consagrar sob o nome de “tenentes”, assumiu de vez a vanguarda conspiratória. Com a mobilização de uma tríplice bandeira – moralização dos costumes políticos, voto secreto e fim das fraudes eleitorais – os “tenentes” cada vez mais se preparavam para uma ação de força contra a ‘camarilha politiqueira’.

O país estava à beira de uma ruptura institucional quando, em maio de 1922, o doutor César de Magalhães, médico-cirurgião, eminente e bem relacionado com os próceres do Partido Republicano Mineiro, decidiu agir por conta própria. Com afinco, dedicação e esforço, iria descobrir a trama miserável das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes. Conseguiu entrar em contato com Jacinto Guimarães, prometendo-lhe a quantia de cinquenta mil réis a fim de facilitar ao rapaz o embarque para fora do Brasil, caso ele quisesse reduzir a escrito sua confissão e produzir perante testemunhos a prova material de sua autoria na falsificação das aludidas cartas.

Jacinto aceitou a oferta do médico. O intuído de Cesar de Guimarães, segundo ele mesmo conta, não era o de publicar os documentos obtidos naquele dia. A ideia era produzir um documento que seria exclusivamente utilizado nas altas cúpulas políticas e militares, com vistas a evitar uma grande tragédia nacional. De posse da confissão, o doutor Cesar de Magalhães não cumpriu parte do acordo e enviou notas à imprensa, noticiando os trâmites daquele encontro e oferecendo as declarações de Jacinto Guimarães Uma vez conseguida a confissão de Jacinto Guimarães, era hora de fazer o mesmo em relação a Oldemar Lacerda. O doutor Cesar de Magalhães realizou as mesmas diligências que já haviam sido exitosas. E no dia 31 de maio de 1922 era lavrada a confissão do arquiteto intelectual das “cartas falsas”, da qual podemos ler um trecho:

Diante dessa situação aflitiva para a Pátria e a República criada pelo caso das cartas, foi que deliberei falar toda a verdade sobre ele, como faço nesse momento, comprovando também que quando resolvi a confecção das aludidas cartas, só tive o intuito político, que era elevar à presidência da República o meu eminente amigo Marechal Hermes, destruindo a candidatura Arthur Bernardes com essas cartas, dando origem com a divulgação das mesmas há um forte movimento das classes armadas que seria orientado em favor da candidatura desse meu ilustre amigo.

Início do fim

No dia 07 de junho de 1922, o sr. Artur Bernardes foi reconhecido pelo Congresso Nacional como presidente eleito da República. O Tribunal de Honra conclamado pelos dissidentes, para resolver o impasse das eleições através de uma nova apuração das atas eleitorais, foi negado pelo Supremo Tribunal Federal. Tudo indicava não haver saídas “dentro da legalidade” para impedir a posse de Artur Bernardes.

Acompanhando atentamente o desenrolas das coisas é fácil de perceber que mesmo antes do período das “confissões”, a questão da autenticidade ou falsidade das cartas injuriosas ao Exército havia perdido a centralidade no debate. O que dava o tom nas ruas eram as agitações nos quartéis, a apreensão pública e o sentimento de que algo muito grave iria em breve acontecer.

Em 15 de novembro de 1922 Artur Bernardes tomava posse na presidência de República, com o país conflagrado e em estado de sítio, decretado por Epitácio Pessoa, em decorrência dos acontecimentos de julho, sobretudo o levante o Forte de Copacabana, que tinha como justificativa a defesa da “honra” e dos “brios” militares, duramente ofendidos pelos politiqueiros de sempre. O sítio foi estendido até o final daquele ano, para que nenhuma outra surpresa viesse atrapalhar a o início da nova presidência.

Terminava a turbulência de mais uma sucessão presidencial, ao mesmo tempo em que começava uma nova fase política na curta história da Primeira República. O esfacelamento daquele regime oligárquico se deu em razão de suas próprias estruturas. A forma política que havia estabilizado precariamente aquela época de profundas transformações entrou em franca contradição com seu conteúdo social e econômico. As crises sucessórias eram a expressão da própria crise daquele regime como um todo. A turbulenta sucessão de Epitácio Pessoa foi mais um capítulo que denunciava a fraqueza do regime, cuja manifestação mais evidente era o funcionamento do processo eleitoral a da precariedade da escolha dos representantes pelo voto popular. No entanto, não deixa de ser sintomático o fato de uma fake News, como dizemos hoje em dia, ter servido de catalizador para colocar em movimento toda aquela engrenagem autofágica e o parto a fórceps do Brasil moderno. Como bem sintetizou Hélio Silva: “Eram verdadeiras? Eram falsas? durante quarenta anos, o Brasil inteiro fórmula essas perguntas. Todas as provas periciais foram exercitadas. Homens como Rui Barbosa deram o seu parecer. Nem agora, quando a morte poderia ter libertado os derradeiros compromissos, abrindo, paradoxalmente, as bocas que ela costumava cerrar, será possível uma opinião de consenso unânime. Foram estas frágeis folhas de papel, inflamáveis, fáceis de amarrotar e destruir, que desencadearam a tempestade a que não pode resistir a República sonhada por Saldanha Marinho”.[xi]

P.S.: Após as confissões, Jacinto Guimarães mudou-se para a Bahia, passando a viver numa linda fazenda perto da cidade de Valência, que diziam ser de apaniguados do senhor J. J. Seabra. Em março de 1924, chegou aos jornais do Rio de Janeiro a notícia que falecera inesperada e misteriosamente por conta de um mal súbito. Quanto a Oldemar Lacerda… bom, deixemos uma notícia do Diário da Noite, do dia 28 de junho de 1934: “Petrópolis, 28 (do correspondente do Diário da Noite) – Oldemar Lacerda, o conhecido falsário, que aí no Rio fez época, acaba de ser julgado pelo tribunal popular, desta cidade. Sentando-se, mais uma vez, no banco dos réus, o célebre falsário esteve cercado de deferência singular da parte dos soldados que o escoltavam, até que, por protesto do promotor, se estabeleceu o que a praxe determina. Oldemar Lacerda foi submetido a julgamento, acusado de falsificação de uma escritura de arrendamento do edifício Stadt Munchem, na Praça Tiradentes, aí no Rio. O acusado foi absolvido por falta de provas”.[xii]

*Alexandre Juliete Rosa é mestre em literatura pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Notas


[i] Para um versão completa dos fatos, escrita nos parâmetros acadêmicos, a partir de fontes primárias e bibliografia especializada, o leitor ou a leitora podemacessar o link: https://alexandre-j-rosa.medium.com/as-cartas-falsas-do-correio-da-manh%C3%A3-1c5cf935c648

[ii]Uma análise detalhada da Missão do cruzador José Bonifáciopode ser encontrada na pesquisa:Do norte ao sul: a missão do cruzador “José Bonifácio” e a incorporação do pescador a um projeto de nação (1900-1930), de Giovanni Roberto Filho. Disponível no link: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/26305/1/Nortesulmiss%c3%a3o_BentesFilho_2018.pdf

[iii]Ruy Castro. Carnaval da Guerra e da Gripe (Metrópole à Beira Mar – Prólogo). São Paulo. Companhia das Letras: 2019.

[iv]Hélio Silva. 1922: Sangue na areia de Copacabana. Porto Alegre. L&PM: 2004, p. 43.

[v]Anita Leocádia Prestes. Os militares e a Reação Republicana. Petrópolis. Vozes: 1993, p. 57.

[vi]Ultraje ao Exército. Correio da Manhã, 09 de outubro de 1921, p. 2.

[vii]A carta. Correio da Manhã, 10 de outubro de 1921, p. 2.

[viii]Nelson Werneck Sodré.História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro. MAUAD: 1999, p. 358.

[ix]A canção pode ser ouvida a partir do link: https://www.youtube.com/watch?v=4UiP5U1Tr6c&t=2s

[x]Hélio Silva. 1922: Sangue na areia de Copacabana. Porto Alegre. L&PM: 2004, p. 49.

[xi]Hélio Silva. 1922: Sangue na areia de Copacabana. Porto Alegre. L&PM: 2004, p. 36.

[xii]Oldemar Lacerda mais uma vez no banco dos réus. Diário da Noite, 28 de junho de 1934. Disponível no link: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_01&pesq=%22Oldemar%20Lacerda%22&pasta=ano%20193&hf=memoria.bn.br&pagfis=18419

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