As cidades desertas – VII

Imagem: Ricardo Kobayaski
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Por GILBERTO LOPES*

Comentário sobre acontecimentos recentes na política internacional

A Bolívia volta às urnas no próximo domingo 18 de outubro, quase um ano depois do golpe de Estado contra Evo Morales nas últimas eleições. Mais do que um golpe contra Evo, foi um golpe contra o povo, segundo Adriana Guzmán, aimará que se define como “feminista comunitária”. Um golpe racista e oligárquico, afirma.

Em seguida, Guzmán se estende na análise, em entrevista publicada pelo portal Jacobin. Temos que repensar o que é um golpe, para além da lógica do Estado, sugere. “Creio que a maioria dos golpes (cita o caso do Chile, em 1973; ou o de Honduras, em 2010) foram golpes contra o povo que resultaram depois num golpe de Estado”. “E o que ocorreu em 10 de novembro aqui na Bolívia foi um golpe contra o povo, um golpe racista”. Quando as forças armadas intervêm e pedem a renúncia de Morales, o golpe já tinha ocorrido: casas de autoridades incendiadas, sequestro de homens, mulheres, irmãos das autoridades, humilhados em praça pública, transmitidos pelo Facebook, humilhados inclusive sexualmente, como ocorreu com o irmão do deputado Víctor Borda, explica Guzmán. “A única forma de parar isso era com a renúncia de Evo. Porque houve muita violência, incendiariam as casas de todos os dirigentes, violentariam suas filhas, suas esposas”, acrescentou.

Foi golpe? Não foi golpe? A questão infiltra-se em todos os debates. Guzmán não tem dúvidas: temos que repensar o que entendemos por golpe. Houve muita ingenuidade em pensar que a OEA – um órgão que nunca beneficiou os povos – poderia resolver democraticamente a crise com uma auditoria do processo eleitoral. “Houve muita confiança, tanto por parte do governo quanto das organizações sociais. Não dimensionamos que realmente ocorria um golpe e que esse golpe teria êxito. Pensamos que poderíamos disputar as ruas, como sempre fizemos”. Para Guzmán, o golpe também veio de dentro, com o governo desarticulado e com as universidades como atores fundamentais. O governo reagiu tarde. Nosso papel – acrescentou – “não é construir leis: nosso papel é construir a vida cotidiana deste bem-viver que defendemos”. Acreditávamos que esse processo era irreversível. Não foi assim. Paramilitares saíram às ruas, o exército e a polícia saíram, armou-se a manobra inescrupulosa da OEA, liderada no terreno por um ex-chanceler costa-riquenho que a OEA premiou, nomeando-o novamente para as mesmas funções nas eleições de domingo.

Guzmán vê o país submerso em protestos. “Ao menos em La Paz, que é onde vivo, há protestos todos os dias”, assegura. Contra a finalização do ano escolar, pela recuperação do almoço escolar, protestos de professores. “A raiva da sociedade é generalizada”. Fala da Covid-19: “são mais de cinco mil mortos até agora. Não foram mortos pelo vírus, mas porque os respiradores nunca chegaram, porque não há testes, não há remédios”.

Um dos maiores escândalos do governo golpista de Jeanine Áñez revelou-se em maio com a compra de respiradores pelo triplo do preço de mercado. Em agosto, denunciou-se um sobrepreço de seis milhões de dólares por outra compra, de 324 respiradores que, como os anteriores, nunca foram postos à disposição de quem deles necessitava. Agora aproxima-se a eleição de domingo. Uma das possibilidades é de que haja fraude, afirma Guzmán, que ganhe o setor golpista. “Creio que isso é uma grande possibilidade, reproduzindo algo do que se fez em Honduras. Há ali um terceiro governo que engana o povo, que comete fraude eleitoral e segue com o manual golpista. O que ocorre em Honduras é uma ditadura e creio que tentam aplicar a mesma receita aqui”, indicou.

No último final de semana, o jornal boliviano La Razón publicou os resultados de uma segunda pesquisa “Tu voto cuenta”. Fizeram 15.537 entrevistas. Levando em consideração apenas os votos válidos – sem os votos em branco ou nulos –, o candidato do MAS, Luis Arce, obteve 42,9% das preferências. Carlos Mesa, da Comunidade Cidadã, o mais bem colocado entre os diversos candidatos dos setores golpistas, 34,2%. Com a renúncia de Áñez a sua candidatura, o terceiro lugar é ocupado pelo líder dos grupos radicais de direita do departamento de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, com 17,8%. Outros quatro candidatos dividem entre si pouco mais de 5% dos votos. Para ganhar no primeiro turno, há duas opções: obter mais de 50% dos votos; ou 40% com uma diferença maior do que 10% sobre o segundo colocado, o que ocorreu com Evo Morales nas eleições do ano passado.

A nacionalização foi fundamental

José Luis Parada, ministro da economia do governo golpista, fez três anúncios: o retorno do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao país, a concessão a empresas estrangeiras transnacionais dos recursos estratégicos de lítio do Salar de Uyuni e a expansão do latifúndio agroindustrial para a exportação. Eram, na opinião do sociólogo boliviano Eduardo Paz Rada, as orientações estratégicas de um governo que se anunciava como transitório, mas suas decisões teriam efeitos duradouros. Em particular, o do lítio, mineral do qual a Bolívia tem uma das maiores reservas mundiais, junto com Argentina e Chile, no chamado “Triângulo do lítio”. Com a China e a Austrália, formam o grupo dos grandes produtores mundiais.

A planta piloto de Llipi deve começar a produção industrial no final deste ano, com uma capacidade de produção de 15 mil toneladas de carbonato de lítio. Com isso, a Bolívia se converterá no quarto produtor mundial e segundo da América Latina. Em 2008, o governo de Morales criou a empresa estatal Yacimientos de Lítio Boliviano (YLB). É a mesma estratégia que o levou a nacionalizar empresas produtoras de petróleo, gás e outros recursos naturais e a renegociar os contratos com empresas transnacionais, obrigadas a pagar 32% a mais de impostos. Essa foi a base do crescimento econômico que permitiu tirar da pobreza milhões de bolivianos, reduzindo o número de 60% em 2005 para 35% em 2018.

Nos últimos três anos do governo de Morales, a Bolívia atingiu taxas de crescimento superiores a 4%, com um dos melhores desempenhos na América Latina. As nacionalizações foram fundamentais porque deu solvência à carteira do Estado. Sem essas nacionalizações, o Tesouro estaria com seus cofres vazios, sem capacidade alguma de desenvolver políticas que dependem dos recursos econômicos, disse, em entrevista à imprensa brasileira, o diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Maior de San Andrés (UMSA), Marcelo Montenegro. Luis Arce, o candidato do MAS à presidência da Bolívia, foi ministro da economia entre 2006 e 2017 e entre janeiro e novembro do ano passado, e teve papel chave nessa política de nacionalização dos recursos naturais bolivianos.

Duas Bolívias em suas contas bancárias

Em 2018, chegamos a um acordo com a empresa alemã Acisa (ACI Systems Alemania), principal fornecedora de baterias para veículos elétricos, para a exploração do lítio, explicou a ex-presidente do senado Adriana Salvatierra (também obrigada a renunciar depois do golpe). Mas, ao final, o acordo não garantia à Bolívia transferência de tecnologia nem controle na industrialização do lítio, de modo que a Bolívia negociou com a China.

“Assinaríamos um acordo com a China que implicava uma inversão de 2,3 bilhões de dólares para industrializar o lítio. No começo de 2019, quando se assinou o acordo, o embaixador chinês disse: – Este é um dia histórico porque, a partir de agora, a China se converterá no maior produtor de veículos elétricos do mundo e a Bolívia terá garantido um mercado para os próximos 50 anos”. Afetamos interesses geopolíticos, disse Salvatierra. Sobretudo os da Tesla, a empresa de Elon Musk, o mesmo que afirmou, em julho passado, que derrubariam quem quisessem, para garantir seus interesses. Musk possui 76  bilhões de dólares em ativos. O PIB da Bolívia é de 42,5 bilhões de dólares. “Estamos dizendo que o proprietário da Tesla tem em suas contas bancárias aproximadamente 34 bilhões de dólares a mais que todos os recursos econômicos que utilizamos em nosso país. Isso quer dizer, de um modo bem simples, que este homem tem quase duas Bolívias em suas contas bancárias”, lembrou Salvatierra. Áñez deteve as negociações com a Alemanha e com a China e o MAS avalia que o objetivo é privatizar o lítio e entregar sua exploração a empresas norte-americanas.

O porta-voz da fraude

Tudo isso está em jogo nas eleições do próximo domingo. Novamente, o ex-chanceler costa-riquenho Manuel González, o mesmo autor do relatório que endossou a fraude eleitoral no ano passado, lidera a missão de observadores da OEA. Durante nove meses, o governo de Áñez “consolidou uma brutal ditadura de direita que assassinou dezenas de manifestantes civis. Torturou, feriu e prendeu muitos mais. Censurou a imprensa. Reprimiu sistematicamente seus adversários políticos”, disse Gabriel Hetland, professor de estudos latino-americanos na Universidade de Albany, num artigo publicado no Washington Post em 27 de agosto último.

O golpe poderia ser revertido ou confirmado nas urnas. O resultado terá um impacto além das fronteiras da Bolívia. Poderá reforçar o giro à direita na América do Sul, com a eleição de governantes “a serviço das oligarquias locais e dos interesses dos Estados Unidos”, escreveram os professores Igor Fuser e Fábio Castro, da Universidade Federal do ABC, no Brasil. De todas as mudanças de direção política ocorridas na região, a da Bolívia “foi a mais claramente golpista e também a mais violenta, acompanhada pelas assustadoras sobras do fascismo e do racismo”, afirmam. Em seus dez meses, o governo de Áñez “revelou-se um completo desastre”, incapaz de organizar um Estado que se propôs a desarticular, sem condição de lidar com os efeitos devastadores da Covid-19 nem da queda da economia, que poderia ser de 8% este ano.

As previsões eleitorais são de uma vitória do candidato do MAS no primeiro turno, como revelou a pesquisa do diário La Razón. Novamente, trata-se de uma eleição disputada. Arce dificilmente poderá ganhar no segundo turno. Mas, para ganhar no primeiro, deve superar 40% dos votos, com uma diferença de mais de 10% à frente do segundo colocado. Não parece impossível, tampouco fácil. A campanha passada caracterizou-se pelo abuso das notícias falsas, incluindo um suposto filho que Morales não reconheceu. Foi o “caso Zapata”, um filho que Morales teria tido com Gabriela Zapata, algo que, na verdade, nunca existiu. O caso morreu, passadas as eleições.

Mas as notícias falsas não. Áñez contratou a empresa CLS Strategies para realizar a campanha, acusada pelo Facebook de promover campanhas falsas e desvirtuar o debate político. Para Adriana Guzmán, depois do golpe e do resultado do governo de Áñez, “é impossível que a direita ganhe as próximas eleições sem fraude”. Mas, ao mesmo tempo, é difícil pensar que os interesses internacionais e nacionais que estão por trás do golpe estejam dispostos a permitir um triunfo eleitoral do MAS. Impedi-lo não é uma das tarefas menores encomendadas à OEA e a González.

O elogio da tortura

Os Estados Unidos com mais de oito milhões de casos, Índia com cerca de 7,2 milhões e o Brasil aproximando-se dos 5,2 milhões. Com mais de 150 mil mortos, o Brasil já superou a Espanha no número de mortos por milhão de habitantes, com 706, atrás apenas do Peru na América Latina, que tem 1.002 nesse registro e da Bolívia, com 708, segundo dados do final de semana.

Entretanto, na opinião do vice-presidente, general Hamilton Mourão, o Brasil enfrentou muito bem esta crise pandêmica. “Lamentamos ter perdido as vidas de quase 150 mil brasileiros, mas já curamos mais de quatro milhões de pessoas”, afirmou. Entrevistado pela rede alemã DW, Mourão referiu-se ao papel dos militares durante a ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1981. O general somou-se aos elogios feitos pelo presidente Bolsonaro a quem dirigiu o DOI-CODI de São Paulo, um dos órgãos repressivos mais cruéis desse período, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado nos tribunais pelas terríveis torturas às quais submetia seus prisioneiros. “Ustra foi meu comandante no final dos anos 70 do século passado, e era um homem de honra que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”, afirmou Mourão, perguntado pelo jornalista. Não disse nada sobre os direitos humanos dos demais cidadãos.

As cidades desertas

A pandemia segue devastando as cidades. No mês passado, os executivos de 160 das maiores empresas de Nova York – de bancos a escritórios de advocacia ou imobiliárias – escreveram ao prefeito Bill de Blasio. Temem os efeitos de longo prazo da pandemia para a cidade. Há muita ansiedade, afirmam, aumentam os crimes, a cidade está suja, a má condução da crise contribuiu para deteriorar as condições de vida nos cinco condados que a formam”.

Na reta final para as eleições do próximo dia 3 de novembro, milhões de votos já foram enviados pelo correio, enquanto a Covid-19 se fortalece novamente nos Estados Unidos, com as maiores taxas de infecção desde agosto. Trump, atrás nas pesquisas, reapareceu diante de seus partidários falando de um balcão da Casa Branca, garantindo estar recuperado depois de sua internação num hospital militar, acometido pela Covid-19. Prometeu uma vacina para breve, garantiu que a doença está desaparecendo, investiu novamente contra o “vírus chinês” e advertiu contra uma “eleição manipulada”.

Generais rasteiros

Antes dos Estados Unidos, o Chile também vai às urnas, no domingo 25 de outubro, para decidir se haverá uma assembleia que reforme sua constituição, herança da ditadura do general Pinochet. Há um ano, irromperam os protestos que surpreenderam o mundo, enquanto o governo do conservador Sebastián Piñera tratava de mostrar como um modelo de país para a América Latina. Desde então, não pararam, apesar da pandemia, reprimidos com permanente brutalidade, como na ocasião em que jogaram, no leito calçado de pedras do rio Mapocho, um jovem de 16 anos que participava dos protestos. O ato renovou as denúncias contra o corpo de Carabineros e a exigência de renúncia de seu comandante, o general Mario Rozas. No momento do golpe de 1973, o presidente Salvador Allende chamou de “general rasteiro” ao então comandante dos Carabineros, que, no dia anterior, tinha reiterado sua lealdade. Treze deputados apresentaram uma acusação constitucional contra o ministro do interior, Víctor Pérez, a quem acusam de cumplicidade diante da violência policial.

Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

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