As cidades desertas – XV

Imagem: Ciro Saurius
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Por GILBERTO LOPES*

Comentários sobre acontecimentos recentes na política internacional

Mais de 40 milhões de pessoas morreram na Venezuela desde 2017 como resultado das sanções norte-americanas, diz o relatório dos economistas Jeffrey Sachs e Mark Weisbrot: Economic sanctions as collective punishment: the case of Venezuela (Sanções econômicas como punição coletiva: o caso da Venezuela), publicado em abril de 2019. Não se trata de problemas econômicos, mas de um colapso, uma catástrofe, dizem Sachs e Weisbrot em seu estudo.

Depois, numa entrevista com Amy Goodman, Sachs se aprofundou no assunto. Desde o início do governo Trump, tratava-se de derrubar o governo Maduro. É uma prática habitual, como sabemos. Tentar derrubar governos latino-americanos que se movem com independência dos interesses norte-americanos. O caso da Unidade Popular, no Chile, em 1973, foi provavelmente o mais escandaloso. Mas seguiram fazendo o mesmo, incluindo a nova estratégia de lawfare, ou “guerra jurídica”, com a qual tentam eliminar candidatos indesejáveis por meio do abuso das regras legais.

O caso do ex-presidente Lula no Brasil é o mais escandaloso. Isso não apenas impediu que ele triunfasse numa eleição em que era amplo  favorito, mas também abriu as portas do país aos interesses anti-nacionais, que vêm assumindo empresas e recursos naturais, mas, acima de tudo, alinhando as políticas nacionais com os interesses estrangeiros. Trump foi muito explícito em suas intenções na Venezuela. “Por que não podemos invadir a Venezuela?”, perguntou ele aos presidentes latino-americanos. Disseram-lhe que não, que não era uma boa ideia, que isso perturbaria o continente. O certo é que isso não é mais possível, como foi na República Dominicana, em Granada, no Panamá… Não é difícil imaginar os custos políticos de algo assim hoje em dia.

Se o sofrimento for suficiente…

Mas Trump não via as coisas dessa maneira. De todo modo, fizeram-lhe outra sugestão. No campo político, agruparam-se no chamado Grupo de Lima, reunidos em 8 de agosto de 2017 na capital peruana. Catorze países alinhados com as políticas de Washington para servir de caixa de ressonância para o presidente nomeado da Venezuela, Juan Guaidó. Que não era, naturalmente, o presidente em exercício. Na verdade, sem o reconhecimento dos Estados Unidos, ele não é nada. Em sua declaração, o grupo pediu uma “saída pacífica” para a situação venezuelana.

Por outro lado, contudo, as sanções econômicas, às quais Sachs se refere, foram intensificadas. O objetivo era estrangular a economia venezuelana. “Começou essencialmente com sanções em 2017 que impediram o acesso do país ao mercado internacional de capitais e à empresa petrolífera de renegociar seus empréstimos. Isto levou a Venezuela à hiperinflação. Este foi o colapso total. Os preços do petróleo desabaram. Os recursos, que eram utilizados para comprar alimentos e remédios, colapsaram”. Agora, a Venezuela está numa catástrofe completa, “em grande parte criada pelos Estados Unidos”, com suas sanções ilegais contra o país.

A ideia é bloquear o acesso do governo aos mercados financeiros, levar as empresas à falência, impedir o comércio, confiscar ativos do governo venezuelano (como o ouro depositado em bancos ingleses), com a pretensão de que, “se o sofrimento for suficiente, então haverá uma revolta militar para derrubá-lo”. Sachs lembra que as mesmas normas da Organização dos Estados Americanos (OEA), hoje utilizadas para dar apoio político a todas essas ações – a mais recente contra a Bolívia, onde desempenhou um papel chave no golpe após as eleições de 2019 –, também as proíbem.

A mesma Carta Democrática Interamericana, frequentemente invocada para respaldá-las, afirma em seu início que a Assembléia Geral da organização “reconhece que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região e que um dos objetivos da OEA é promover e consolidar a democracia representativa com respeito ao princípio da não-intervenção”. Mesmo nesse cenário, eles não puderam deixar de incluir o necessário respeito ao princípio da não-intervenção. Ainda que não tenham intenção alguma de respeitá-lo.

Nenhuma política de sanções – também ilegais – tem sido mais duradoura do que a que foi adotada contra Cuba, há 60 anos.  E também está sendo aplicada contra a Nicarágua. Mas não contra Honduras – um governo cujos vínculos com o tráfico de drogas não está mais em dúvida –, nem contra a Colômbia onde, desde março, ocorreram 179 massacres e 342 assassinatos de líderes sociais. “O país enfrenta um massacre em grande escala que exige ser tratado como genocídio. Há uma sistematicidade que garante a existência de um plano desenhado para destruir algumas comunidades, através de massacres sucessivos que minam a capacidade de resistência de povos inteiros”, disse Manuel Humberto Restrepo em artigo publicado no Alainet no dia 8 de dezembro passado. Mas, longe de sanções, a Colômbia é uma base de operações dos Estados Unidos para suas políticas contra a Venezuela.

Pedem democracia

Mas a oposição exige mais sanções. Essa é a cartada deles. Fazem política em Washington. Como veremos, o efeito disto é devastador. Com o país despedaçado, exigem democracia. Vários países da região rejeitam as eleições venezuelanas, disse na semana passada o jornal brasileiro O Estado de São Paulo: além do Brasil; Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lúcia assinaram. Para a União Europeia, somado às políticas de sanções, o processo eleitoral venezuelano não pode ser reconhecido como confiável, inclusivo e transparente. Uma opinião que não é compartilhada pelo ex-chefe do governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero. “Espero que a UE reflita melhor”, disse ele.

“Faço um chamado a toda oposição, que abandone o caminho extremista (…), que peçamos numa só voz o levantamento de todas as sanções ao novo governo dos Estados Unidos de Joe Biden, numa só voz… que restauremos todos os mecanismos de diálogo nacional”, disse o presidente Maduro. Para o presidente nomeado pelos Estados Unidos, “não houve eleição alguma”, o que houve foi uma chantagem. Para Guaidó, “presidente encarregado”, “a ditadura é evidente. Após a chantagem, o sequestro de partidos, censura, fabricação de resultados, incutir terror; eles anunciam o que disseram: uma fraude com 30% de pura falsidade, que nem sequer é suficiente para que eles se mostrem em público (nem comemoram, sabem que estão sozinhos)”, escreveu ele no Twitter. Chantagem? Como chamar então eventuais eleições em meio às sanções devastadoras impostas ao governo? Jornalistas e observadores das eleições venezuelanas indicaram que no dia das eleições havia mais pessoas fazendo fila nos postos de gasolina para abastecerem do que nas sessões de votação. Essa é a realidade imposta ao país.

O líder da Vontade Popular, Leopoldo López, responsável por uma tentativa de revolta contra o governo Maduro que deixou várias dezenas de mortos, exigiu eleições livres dentro de seis a doze meses. Em sua opinião, isto é indispensável para resolver a crise política do país. Nenhuma palavra sobre as sanções. Como podemos ter “eleições livres” com o país destroçado por essas sanções? Um deputado de seu grupo, que vive em Houston, também rejeitou as eleições. “Entregar meu cargo? Nunca!”, disse ele, até que haja uma eleição livre e democrática, com todas as condições. Essas condições incluem o fim das sanções e um período de recuperação da economia do país? Acho que ele não pretende fazer isso.

O policial bom e o policial mal

O que está em jogo nem sempre é óbvio para todos. Na sexta-feira passada, a BBC publicou uma nota sobre “as tentativas dos serviços secretos britânicos de interferir na política latino-americana nos anos 60”. “Arquivos recentemente desclassificados revelaram tentativas britânicas de influenciar vários processos eleitorais e condicionar sindicatos em diferentes países, disse à BBCo professor Rory Cormac da Universidade de Nottingham”. “Isto incluiu propaganda e falsificação de documentos com o objetivo de influenciar o público, principalmente contra o comunismo”, acrescenta a nota. “A principal missão era combater o comunismo usando propaganda e trabalhando com igrejas, sindicatos e partidos políticos”.

As operações incluíram Brasil, Chile, e outros países, provavelmente a maioria dos latino-americanos. Também a Venezuela. “Um funcionário britânico descreveu este último país como ‘um prêmio importante’”. “É um país muito rico e seu governo é uma importante fonte de capital de investimento”. Naturalmente, sem o fim das sanções e sem um período aceitável de reorganização econômica e social, não pode haver eleições democráticas em  lugar algum. Tampouco com as medidas de lawfare vigentes, como acontece no Brasil, contra Lula, ou no Equador, contra o ex-presidente Rafael Correa, a apenas dois meses das eleições gerais nesse país.

Não haverá reconstrução democrática no Brasil sem o retorno dos direitos políticos de Lula. As eleições nacionais não são válidas sem o direito de participação de todos os protagonistas, disse o jornalista Breno Altman, editor do portal Opera Mundi. A história do “policial bom” e do “policial mau” é bem conhecida na América Central. Ela funcionou durante uma década como instrumento contra a revolução sandinista, que havia derrotado a ditadura de Anastasio Somoza em julho de 1979. Com Reagan na Casa Branca, eles montaram uma guerra sistemática contra o regime sandinista. O governo teve que criar um serviço militar obrigatório, com altos custos políticos, ao mesmo tempo em que enfrentava severas sanções econômicas. Depois exigiram eleições livres. Eram os bons policiais. Permaneceram em meio à guerra e às sanções, com a ameaça de que, se ganhassem, prosseguiriam tanto a guerra quanto as sanções. Perderam. E quais foram as consequências?

A devastação política

A instabilidade política é uma das características da institucionalidade latino-americana. Vejam o caso atual do Peru! Mas este é apenas um exemplo recente. Uma das causas fundamentais desta instabilidade é precisamente a intervenção permanente de potências estrangeiras (em primeiro lugar e principalmente os Estados Unidos) em suas políticas. Cada indício de independência é recebido com conspirações, sanções e golpes. Políticos sem apoio popular suficiente assumem o governo e promovem políticas que são devastadoras para as maiorias e para a nação, cujos recursos ficam submetidos aos interesses estrangeiros. O caso da Argentina de Macri (um caso com suas próprias variações) desnudou esta submissão, endividando o país em mais de 15 bilhões de dólares para pagar a fundos abutres que haviam rejeitado o acordo de pagamento negociado pelo governo de Cristina Kirchner.

 Com os representantes desses interesses no poder, sem apoio popular suficiente (na realidade, com apoio cada vez mais reduzido, à medida que se torna evidente o fracasso do modelo neoliberal que promovem), a política torna-se instável. Os países não podem construir seu próprio tecido social, enraizado na realidade nacional. A interferência norte-americana torna isso impossível, destrói essas relações, mas também não significa apoio suficiente para que os grupos conservadores promovam soluções. Essa tem sido a situação por mais de um século. Durante um tempo, funcionou. As ditaduras foram mantidas com o apoio de Washington e venderam alguma ideia de que a prosperidade estava chegando. Hoje isso é impossível. O resultado é o caos, um certo desespero de ver os esforços de desenvolvimento nacional confrontados com um poder esmagador vindo do exterior, sem poder elevar o entusiasmo que, num passado não muito distante, foi suscitado pelo perigo do “comunismo”. Enfrentar estas intervenções devastadoras é indispensável para que nossos países encontrem seu caminho, acabando por reconstruir um tecido social no qual não têm lugar apenas aqueles que procuram fazer política com o apoio da intervenção estrangeira.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

 

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