Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES*
Do saqueio colonial ao imperialismo de crédito, a modernidade ocidental revela-se um projeto de dominação mutante, cujo fracasso espiritual clama por alternativas que não repliquem seu narcisismo genocida
As duas modernidades eurocêntricas
O capitalismo realmente existente se constituiu por meio de duas modernidades eurocêntricas mundializadas:
(i) A europeia, que dominou do Renascimento até no máximo o término da Segunda Guerra Mundial, palco da expansão e saqueio coloniais dos povos e da emergência da burocracia militar, econômico-financeira e cultural imperialista que cumpriu a função de reprimir as intensas lutas de classes do movimento operário cada vez mais organizado, em seu interior, ao mesmo tempo em que realizou uma multitudinária e genocida reengenharia social em escala planetária, através da manipulação migratória de sua própria população para diferentes lugares do planeta e do deslocamento de milhões de trabalhadores africanos e asiáticos para as Américas, da exportação de capital para as periferias do sistema-mundo e de guerras interimperialistas impulsionadas pela concorrência em torno da acumulação primitiva às custas dos recursos naturais e superexploração dos povos do Sul Global.
(ii) A norte-Americana, hegemônica após a Segunda Guerra Mundial, tendo recebido alguns nomes revisionistas no âmbito acadêmico, como pós-modernidade, época do superimperialismo industrial-produtivo estadunidense, em conformidade a Michael Hudson de Super Imperialism: the origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (2003), globalização e contemporaneidade ou simplesmente contemporâneo.
A fase pós-moderna do superimperialismo industrial-produtivo se constituiu com base no superávit comercial, oportunizando o excedente libidinal, encarnado na invenção da juventude transviada e festiva, tendo o Rock and roll como alegoria estilizada da luta de classes fora de qualquer referência a relações sociais de produção.
Entrou em crise em função dos improdutivos gastos militares na guerra de EUA contra o Vietnã ( 1955-1975), período a partir do qual o pós-moderno foi gradativamente sendo substituído pela categoria da globalização ou globalismo, até chegar ao momento do falso atual, em que tem sido designada como “contemporâneo”, com lastro no “imperialismo de cartão de crédito” e, portanto, no déficit fiduciário dolarizado com o mundo, fase não por acaso de caráter religioso e messiânico; da promessa de pagamento e do retorno a um passado cosmogônico pré-moderno, razão de ser da dominância, no Ocidente
(i) do neopentecostalismo, com seu apelo ao retorno ao Antigo Testamento; (ii) e do wokismo da “esquerda” financiado pelo Partido Democrata, com o seu despertar que pode ser traduzido como guerra identitária contra a soberania nacional-popular dos povos ou messianismo da essência a si (fora da história) negra, indígena, homoafetiva, feminina; o novo suposto MayFlower dos puritanos de gênero e étnicos – não brancos e não héteros, só aceitos ( os brancos e héteros), com muitas reservas, se se domesticam pela culpa.
Do ponto de vista do mercado teórico, a modernidade do superimperialismo norte-americano, em seu primeiro período de superávit comercial ( fase da juventude anárquica), foi dominada por teorias como estruturalismo e pós-estruturalismo, epistemologias, principalmente a última, com lastro antes de tudo na França rebelde ao hegemonismo estadunidense; uma forma, portanto, de cooptação de seus intelectuais como, por exemplo, Jacques Lacan, Louis Althusser, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, seduzindo-os para o eixo do culturalismo da fase do bem-estar social ianque.
O segundo, por sua vez, foi hegemonizado pelos anglo-saxônicos, tendo em vista os estudos culturais britânicos do final da década dos noventa do século passado, e, ato contínuo, o pós-colonialismo canadense e, finalmente, o decolonialismo e a ancestralidade norte-americanos, considerando:
(i) Que o primeiro, o decolonialismo, a pretexto de ser a versão do pós-colonialismo africano e asiático para a América Latina cumpre a função revisionista de cancelamento do marxismo europeu anti-imperialista e independentista, ao mesmo tempo em que oculta a onipresença da Doutrina Monroe, com seus golpes, intervenções militares e estilos de vida, do México ao Chile.
(ii) que a segunda, ancestralidade, funcionando como se fosse uma teoria que se dedica à interface entre África e Brasil, sem a presença ianque, é, na verdade uma guerra epistemológica, estilo stay behind, devotada a sabotar a presença da China no continente africano e no Brasil, ao esgrimir o sofisma de que todas as formas de progresso são antiecológicas e que por isso é preciso voltar à cosmogonia das comunidades coletivas anteriores às grandes civilizações do passado – um antes do antes ou um antes do Antigo Testamento. Delírio total!
Em A Universidade necessária (969), a propósito, Darcy Ribeiro exprimiu seu profundo descontentamento com o nosso sistema universitário público, assinalando a mediocridade de seu desempenho cultural e científico e a profunda indiferença frente aos problemas do povo que o mantém, o brasileiro.
As políticas de internacionalização universitária no país têm sido marcadas pela acoplagem subserviente e acrítica ao revisionismo teórico do sistema universitário imperialista euro-norte-americano, desprezando o pensamento social brasileiro e replicando modas que surgem e desaparecem, assim como (co)formando professores e pesquisadores que a rigor nutrem uma deletéria indiferença alienada relativamente à questão central da soberania nacional-popular, de base anti-imperialista, sem a qual nada de digno, criativo, inteligente, justo é possível, muito menos o combate ao racismo e à violência de gênero.
Funcionam como diluidores internos, ao menos desde a década de setenta do passado século, do mercado teórico dominado pelos anglo-saxões, situação que é absolutamente inaceitável porque, antes de tudo, chancela, adotando como próprio, o que não passa de neocolonialismo epistemológico do metaimperialismo estadunidense.
Os condenados da Terra de Franz Fanon
A modernidade capitalista eurocêntrica norte-americana emergiu como metamodernidade em relação à europeia, o que significa que, de modo paralelo, separada pelo excepcionalismo geográfico ( não faz fronteira com as antigas civilizações; e nem com a Europa), pela sacada, observou com distanciamento as lutas religiosas e de classes ocorridas no processo de constituição da modernidade europeia não apenas para evitá-las em seu interior, mas também para usá-las como armas de guerra contra a Alemanha, a Inglaterra, a França, enfim, contra os concorrentes interimperialistas, razão por que manipulou dos bastidores as duas guerras europeias do século XX ( chamadas arrogantemente de mundiais), a de 1914 a 1918 e a de 1931 (invasão do Japão à Manchúria, na China) a 1945, com o objetivo de alcançar a hegemonia imperialista do planeta, o que de fato ocorreu, iniciando a quarta guerra do capitalismo eurocêntrico ( uma redundância) contra os povos, designada de forma eufêmica como guerra fria.
Como metamodernidade, a estadunidense se define como manipulação integral de tudo que existiu e existe, controlando e ao mesmo tempo transformando em formas de guerra tanto a produção, a circulação e consumo de bens e serviços, inclusive bens e serviços culturais e teóricos, o que significa, por exemplo, que autor algum circulou e circula mundialmente por seus talentos próprios ou porque tenha algo realmente importante a dizer, o que vale inclusive para um pensador engajado tão brilhante como Franz Fanon, de Pele negra, máscaras brancas, publicado em 1952; e Os condenados da Terra, em 1961, obras que se concentram na crítica do “sistema de bens”, sob o ponto de vista eurocêntrico, da modernidade europeia, pouco fornecendo de contribuição reflexiva e analítica sobre a modernidade realmente onipresente à época de sua militante existência anticolonial; a norte-americana.
O texto a seguir é a conclusão modificada de Os condenados da Terra; um incisivo panfleto critico de Franz Fanon contra o sistema colonial europeu e um apelo aos povos colonizados para abandonarem todas as esperanças relativamente à velha Europa e suas promessas, quaisquer que sejam. Como todos os argumentos conclusivos caem “como uma luva” na descrição/análise da modernidade norte-americana, substituí Europa por EUA, transformando-o numa crítica atualizada do inferno ianque contra os povos do mundo.
Onde se lê, pois, Estados Unidos e termos correlatos, como norte-americanos, leia-se, em conformidade ao original, Europa, europeus. Onde se lê Sul Global, leia-se, por sua vez, como era hábito à época, Terceiro Mundo.
O texto está entre aspas por razões óbvias; é de Franz Fanon.
Conclusão modificada de Os condenados da Terra
“Vamos, camaradas, é melhor que mudemos de procedimento desde já. A grande noite em que estivemos mergulhados, cumpre que a abalemos e nos livremos dela. O dia novo que já desponta deve encontrar-nos firmes, avisados e resolutos. É preciso que renunciemos a nossos sonhos, abandonemos nossas velhas crenças e nossas amizades anteriores à vida. Não percamos tempo como litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos esses EUA que não cessam de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todas as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo. Há décadas (no original, séculos) que os EUA impedem o avanço dos outros homens e os submete a seus desígnios e à sua glória; há décadas (no original, séculos) que, em nome de uma suposta “aventura espiritual”, vêm asfixiando a quase totalidade da humanidade. Vemos, hoje, oscilar entre a desintegração atômica e a desintegração espiritual.
E, todavia, no plano das realizações” pode dizer-se que ela foi bem-sucedida.
Os EUA assumiram a direção do mundo com ardor, cinismo e violência.
E vemos como a sombra de seus monumentos se estende e se multiplica. Cada movimento de EUA fez estalar os limites do espaço e os do pensamento. Os EUA recusaram-se a toda humildade, a toda modéstia, e também a toda solicitude, a toda afeição.
Os EUA só se mostraram parcimoniosos com o homem, mesquinha, carniceira, homicida só com o homem.
Então, irmãos, como não compreender que não nos convém seguir esses ianques?
Esses Estados Unidos que nunca pararam de falar do homem, de proclamar que só se preocupavam com o homem, sabemos hoje com que sofrimentos a humanidade pagou cada uma das vitórias de seu espírito.
Vamos, camaradas, o jogo norte-americano está definitivamente terminado, é necessário encontrar outra coisa. Podemos fazer tudo hoje, desde que não macaqueemos os EUA, desde que não nos deixemos empolgar pelo desejo de alcançar os ianques.
Os Estados Unidos adquiriram uma velocidade tão louca, tão desordenada, que escapa hoje a todo condutor, a toda razão, e a arrasta numa assombrosa vertigem para abismos dos quais é melhor que nos afastemos o mais depressa possível.
É bem verdade, porém, que carecemos de um modelo, de esquemas, de exemplos. Para muitos dentre nós, o modelo estadunidense é o mais exultante. Ora, vimos nas páginas precedentes a que insucessos nos conduzia essa imitação. As realizações norte-americanas, a técnica estadunidense, o american way of life devem cessar de nos tentar e de nos desequilibrar.
Quando procuro o homem na técnica e no estilo estadunidenses, vejo uma sucessão de negações do homem, uma avalancha de morticínios.
A condição humana, os projetos do homem, a colaboração entre os homens para as tarefas que aumentam a totalidade do homem são problemas novos que exigem verdadeiras invenções.
Decidamos não imitar os EUA e retesemos nossos músculos e nosso cérebro numa direção nova. Tratemos de inventar o homem total que os EUA foram incapazes de fazer triunfar.
Há dois séculos uma antiga colônia europeia resolveu alcançar a Europa. E tal foi o seu êxito que os Estados Unidos da América se converteram num monstro em que as taras, as doenças e a desumanidade da Europa atingiram dimensões espantosas.
Camaradas, não teremos outra coisa a fazer senão criar um segundo EUA? O Ocidente quis ser uma aventura do Espírito. Foi em nome do Espírito, do espírito europeu, tornado EUA, entenda-se que o Ocidente justificou seus crimes e legitimou a escravidão na qual conservava quatro quintos da humanidade.
Sim, o espírito norte-americano teve fundamentos singulares. Toda a reflexão estadunidense se desenvolveu em lugares cada vez mais desérticos, cada vez mais escarpados, Assim, tornou-se hábito encontrar aí cada vez menos o homem.
Um diálogo permanente consigo mesmos, um narcisismo cada vez mais obsceno não cessaram de preparar o leito para um quase delírio, onde a atividade cerebral se torna um sofrimento, as realidades não sendo as do homem que vive, trabalha e se forja a si mesmo, mas palavras, agregados variados de palavras, as tensões nascidas dos significados contidos nas palavras. Contudo, norte-americanos existiram que convidaram os trabalhadores a destruir esse narcisismo e a romper com essa desrealização.
De maneira geral, os trabalhadores norte-americanos não responderam a esses apelos. Porque os trabalhadores, eles também, se imaginaram ligados à aventura prodigiosa do Espírito estadunidense.
Todos os elementos de uma solução para os grandes problemas da humanidade existiram, em momentos diversos, no pensamento de EUA. Mas a ação dos homens norte-americanos não realizou a missão que lhes competia e que consistia em refletir intensamente sobre esses elementos, em lhes modificar o arranjo, o ser, em transformá-los, enfim, em levar o problema do homem a um nível incomparavelmente superior.
Hoje assistimos a um êxtase de EUA. Fujamos, camaradas, desse movimento imóvel em que a dialética, pouco a pouco, se transfez em lógica do equilíbrio. Retomemos a questão do homem. Retomemos a questão da realidade cerebral, da massa cerebral de toda a humanidade, da qual é preciso multiplicar as conexões, diversificar as ramificações e tornar a humanizar as mensagens.
Vamos, irmãos, temos muito trabalho, não podemos divertir-nos com jogos da retaguarda. Os Estados Unidos fizeram o que tinha de fazer e, no fim de contas, fê-lo bem; vamos parar de acusá-los e dizer-lhes com firmeza que não deve mais continuar a fazer tanto barulho. Não precisamos temê-los mais; paremos, portanto, de invejá-los.
O Sul Global surge hoje diante de EUA como uma massa colossal cujo projeto deve ser o de tentar resolver os problemas aos quais esses mesmos Estados Unidos não souberam oferecer soluções.
Mas, então, convém não falar em rendimento, não falar em intensificação, não falar em ritmos. Não, não se trata de retorno à Natureza. Trata-se, de modo bastante concreto, de não impelir os homens em direções que os mutilam, de não impor ao cérebro ritmos que rapidamente o obliteram e desarranjam. Não é necessário, a pretexto de recuperar o perdido, pôr o homem de pernas para o ar, arrancá-lo de si mesmo, de sua intimidade, quebrantá-lo, mata-lo.
Não, não queremos alcançar ninguém. Queremos, isto sim, marchar o tempo todo, noite e dia, em companhia do homem, de todos os homens. Não se trata de alongar a caravana, porque então cada fila percebe apenas a que a precedente, e os homens que não se reconhecem mais encontram-se cada vez menos, falam-se cada vez menos.
Trata-se, para o Sul Global, de recomeçar uma história do homem que tenha em conta ao mesmo tempo as teses às vezes prodigiosas sustentadas por EUA e também os crimes de Estados Unidos dos quais os mais odiosos terão sido, no interior do homem, o esquartejamento patológico de suas funções e o esmigalhamento de sua unidade, no quadro de uma coletividade a fratura, a estratificação, as tensões sangrentas alimentadas pelas classes, enfim, na escala imensa da humanidade, os ódios raciais, a escravidão, a exploração e sobretudo o genocídio exangue que representa a segregação da maioria esmagadora dos homens.
Portanto, camaradas, não paguemos tributo aos Estados Unidos criando Estados, instituições e sociedades que neles se inspirem.
A humanidade espera de nós uma coisa bem diferente dessa imitação caricatural e no conjunto obscena
Se desejamos transformar a África num novo
EUA, o Sul Global, em EUA, então confiemos aos norte-americanos o destino de nosso país. Eles saberão fazê-lo melhor do que os mais bem-dotados dentre nós.
Mas, se queremos que a humanidade avance um furo, se queremos levar a humanidade a um nível diferente daquele onde os Estados Unidos a expuseram, então temos de inventar, temos de descobrir.
Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos, temos de procurar noutra parte, não nos EUA.
Mais ainda, se queremos corresponder à expectativa dos norte-americanos, não devemos devolver-lhes uma imagem, mesmo ideal, de sua sociedade e de seu pensamento, pelos quais eles experimentam de vez em quando uma imensa náusea.
Pelos EUA, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, temos de mudar de procedimento, desenvolver um pensamento novo, tentar colocar de pé um homem novo”.
*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de A sociedade do controle integrado (Edufes).
Referências
FANON, Franz. Os condenados da Terra. Trad. Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1968.
FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs (Pele negra, máscaras brancas). Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008.
HUDSON, Michael. Super Imperialism: theoriginand Fundamentals of U.S. World Dominance. London: Pluto Press, 2003.
RIBEIRO, Darcy. A Universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
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