As duas revoluções

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Por VALERIO ARCARY*

Friedrich Engels e Karl Marx antecipam elementos-chave para compreender a dinâmica interna das revoluções do século XX.

 “Após a vitória, o poder caiu por si mesmo, de modo indisputável, nas mãos da classe operária. Pode-se então ver, mais uma vez, como esse Poder da classe operária ainda era impossível vinte anos depois da época que descrevemos aqui. Por um lado, a França deixou Paris sozinha(…); por outro lado, a Comuna deixou-se consumir na querela estéril dos dois partidos em que se dividia, os blanquistas (maioria) e os proudhonistas (minoria), ambos sem saber o que fazer” (Friedrich Engels, Introdução a As lutas de classe na França).

Friedrich Engels nasceu no dia 28 de novembro 1820 em Barmen, na província renana do que era então o reino da Prússia. A definição de Marx e Engels sobre a abertura de uma época de revolução social, ou seja, um período em que as condições objetivas, no sentido de condições materiais, econômico-sociais, estariam maduras nos países mais avançados não resolve o problema da caracterização histórica, mas somente a coloca.

Em 1848, quando da redação do Manifesto comunista, ela é inseparável de outras avaliações, que contêm elementos centrais para a compreensão dos critérios teórico-históricos que orientam o pensamento político de Marx e Engels sobre as temporalidades e as hipóteses estratégicas com que trabalham sobre a atualidade da revolução. E sobre os tempos, as tarefas e os sujeitos sociais da revolução que preveem estar no horizonte.

O mais interessante é que eles anunciam a iminência de duas revoluções: porque trabalham o conceito de época associado ao de etapas, um subperíodo no interior das épocas, que corresponde à sobreposição de tempos determinada pelo desenvolvimento econômico-social desigual (os atrasos históricos impostos pelas forças de inércia social); e também pela diversidade de caminhos da evolução política (a hesitação ou resistência burguesa em mergulhar na via revolucionária).

Em primeiro lugar encontramos uma reflexão histórica sobre o modelo da grande revolução francesa que teria revelado que existem tendências internas à dinâmica do processo revolucionário, que se desenvolve em permanência, e que se traduzirá na Mensagem de 1850 à Liga dos comunistas, na defesa da necessária radicalização ininterrupta da revolução democrática em revolução proletária, isto é, a perspectiva da revolução permanente:[i]

“Mas essas reivindicações não podem satisfazer de nenhum modo ao partido do proletariado. Enquanto os pequenos burgueses democratas querem concluir a revolução o mais rapidamente possível,(…) os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos pos­suidoras, até que o proletariado conquiste o Poder do Esta­do, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só em um país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado. Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova.”[ii]

Existe, entretanto, uma polêmica de interpretação histórica sobre as expectativas que Marx mantinha quando da redação da Mensagem em relação ao papel que a burguesia poderia ou não cumprir no processo revolucionário.[iii] Pelo menos durante os anos da revolução de 1848, alimentavam duas perspectivas que estavam articuladas entre si: (a) a compreensão de que a luta contra o absolutismo e pela democracia só poderia triunfar com métodos revolucionários, isto é, a necessidade de uma revolução pela democracia, que é analisada no Adresse, em especial para a Alemanha, mas o critério era o mesmo para a França, como a antessala da revolução proletária, do que se deve concluir um programa de luta por duas revoluções, ainda que com um intervalo abreviado entre ambas;[iv]

(b) a compreensão de que existe um desafio histórico a ser vencido: a construção da independência política de classe, condição sine qua non para que a engrenagem de radicalização que, grosso modo, poderia ser qualificada como a “fórmula jacobina”, não resulte em um estrangulamento da revolução proletária, ou seja, em um novo thermidor e, ao contrário, garanta a mobilização contínua dos trabalhadores pelas suas reivindicações e abrevie o intervalo entre as duas revoluções.[v]

A França parecia ser o epicentro do processo revolucionário europeu, e nela Marx depositava as suas maiores esperanças durante o processo aberto por 1848: “A França é o país onde as lutas de classe, mais do que em qualquer outro lugar, foram sempre levadas às ultimas consequências, e onde, portanto, as formas políticas mutáveis, no interior das quais se processam e se resumem os seus resultados, tomam contornos mais nítidos. Centro de feudalismo na Idade Média, país clássico, depois da Renascença, da monarquia hereditária, a França, na sua grande Revolução, destruiu o feudalismo e instaurou o domínio da burguesia com uma característica de pureza clássica inigualada por qualquer outro pais da Europa. Igualmente a luta do proletariado revolucionário contra a burguesia dominante reveste-se aqui de formas agudas, desconhecidas em qualquer outro lado. Tal é o motivo porque Marx não só estudava com uma predileção especial a história do passado de França, mas ainda seguia detalhadamente a sua história contemporânea”.[vi]

O primeiro prognóstico histórico não se confirmou. A segunda metade do XIX demonstrou que, se estava esgotada a época histórica das revoluções burguesas na Europa, não estavam maduras as condições para revoluções anticapitalistas. Por outro lado, a guerra civil nos EUA poderia, com razão, não só pelo programa, mas, sobretudo pelas forças sociais liberadas, e pelos métodos, ser interpretada como a segunda revolução americana.

No velho continente a revolução não era o primeiro, nem o único caminho para burguesia, e as transições tardias encontraram uma via histórica de “reformas pelo alto” para abrir o caminho.

Mas só a espantosa capacidade de antecipação histórica, o rigor de método que permite prognósticos visionários, unidos a uma audácia teórica, que está sempre alerta aos novos desenvolvimentos da realidade, podem explicar que Marx e Engels, em meados do XIX, tenham prefigurado alguns dos elementos que serão chaves para compreender a dinâmica interna das revoluções do séc. XX.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).

Notas


[i] Como hoje a expressão “revolução permanente” está associada de forma irreversível à tradição política inspirada no pensamento de Léon Trotsky, alguns esclarecimentos são indispensáveis, para evitar confusões. O conceito “revolução permanente” era corrente nos meios esquerdistas no final dos anos quarenta, e sua origem, ao contrário de um mito histórico recorrente, não era blanquista. Mais além do que uma referência histórica, era um slogan de uso bastante generalizado, e muito amplamente aceito, para além dos círculos comunistas, até entre alguns democratas, ao que parece como uma herança da literatura contemporânea da revolução francesa. Ainda assim , o seu uso não foi somente um recurso literário ao final da Mensagem, porque se contrapunha a pelo menos outras duas concepções estratégicas: (a) a dos radicais democratas (na França, o grupo Ledru-Rollin, herdeiros mais próximos da tradição jacobina) que defendiam de alguma forma uma republica social para o futuro, mas que estavam engajados de corpo e alma na perspectiva de que a burguesia liberal chegasse ao poder através de uma revolução e consolidasse a república democrática por todo um período histórico; (b) outra era a posição dos que negavam a necessidade ou mesmo a possibilidade de uma revolução burguesa, ainda que em uma primeira fase democrática do processo revolucionário, como os blanquistas, e que defendiam a iminência , sem mediações , da revolução comunista. A seguir temos o último parágrafo da famosa Mensagem à Liga: “Mas a máxima contribuição para a vitória final será feita pelos próprios operários alemães, tomando consciência dos seus interesses de classe, ocupando o quanto antes uma posição independente de partido e impedindo que as frases hipócritas dos democratas pequeno burgueses os afastem por um instante sequer da tarefa de organizar com toda independência o partido do proletariado. Seu grito de guerra há de ser: a revolução permanente” (MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Mensagem do comité central à Liga dos comunistas. In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, p. 92).

[ii]. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Mensagem do comité central à Liga dos comunistas. In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, p. 86.

[iii] Parece bastante razoável concluir que a atitude de Marx e Engels sobre o protagonismo burguês na revolução democrático foi se alterando, e que as expectativas iniciais, que eram importantes deram posteriormente lugar a um profundo pessimismo. O estudo, muito sério, de Brossat, caminha nessa direção e diferencia a Alemanha da França: “Resulta cierto, pues, que Marx y Engels, en los períodos de crisis revolucionaria, percibieron claramente el esquema del transcrecimiento de la revolución burguesa inacabada en revolución proletaria, es decir, la recuperación por el proletariado de la antorcha del radicalismo revolucionario de las manos de­bilitadas de la burguesía. Pero ese esquema y las perspectivas prácticas que se derivan de él -necesidad absoluta de la inde­pendencia política y organizativa de la clase obrera, consignas específicas, candidatos separados para las elecciones, armamen­to autónomo, etc.- se definen en función de la necesidad his­tórica, en relación cón un plazo indefinido e indefinible, pero no con respecto la actualidad de esa superación. Aunque definen con exactitud el perfil del transcrecimiento de la revolución bur­guesa en revolución proletaria a escala del período histórico, Marx y Engels están metidos en el atolladero de la revolución que se acaba, y en este sentido sus concepciones per­manentistas constituyen en lo esencial un ejemplo del arte de la anticipación.Es lo que enseña, por otra parte, la evolución de su actitud en 1848. Al principio de la revolución, como re­dactores de la Nueva gaceta del Rin, conminan al proletariado alemán a observar la mayor prudencia, y le aconsejan evitar todo lo que pudiera romper el “frénte único” con la burguesía, que entonces, al revés de la francesa, es todavía capaz, según ellos, de desempeñar un papel revolucionario. El proletariado forma un frente único con la burguesía mientras la burguesía desempeñe un papel revolucionario. Allí donde ya esté en el poder la burguesía, la lucha debe desencadenarse contra ella. En Alemania, esa lucha no puede ni debe todavía empezar. La situa­ción es muy distinta en Francia y en Inglaterra…” (BROSSAT, Alain. En los origenes de la revolucion permante: el pensamiento politico del joven Trotsky. Madrid, Siglo XXI, 1976, p.16).

[iv] No fragmento que se segue, temos uma reconstituição feita pelo próprio Engels, ao final de sua vida, sobre as expectativas que ele e Marx alimentavam durante o processo: “Quando explodiu a Revolução de Fevereiro estávamos todos sob a fascinação da experiência histórica anterior, principalmente da relativa à França, no concernente ao modo pelo qual concebíamos as condições e o desenrolar dos movimentos revolucionários. Não era precisamente da França que, desde 1789, dominara toda a história europeia, que partira mais uma vez o sinal da subversão geral? Era, portanto, lógico e inevitável que nossas concepções sobre a natureza e a marcha da revolução “social” proclamada em Paris em fevereiro de 1848, da revolução do proletariado, estivessem fortemente coloridas pela lembrança dos modelos de 1789 e de 1830. E, sobretudo quando a insurreição de Paris ecoou,(…) quando após junho travou-se em Paris a primeira grande batalha pelo poder entre o proletariado e a burguesia, quando a própria vitória de sua classe abalou a burguesia de todos os países a tal ponto que ela novamente se refugiou nos braços da reação monarco-feudal que mal vinha de ser derrubada, não podíamos ter nenhuma dúvida, nas circunstâncias de então, de que começara o grande combate decisivo, de que era necessário travá-lo em um só período revolucionário longo e cheio de alternativas, mas que só podia terminar pela vitória definitiva do proletariado.” (ENGELS, Friedrich. Introdução à As lutas de classe em França. In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, p. 97-8).

[v] Na apreciação de Engels que apresentamos a seguir existem vários elementos que merecem atenção. Em primeiro lugar, uma avaliação da dinâmica de permanência da revolução que se apoia na premissa de que as revoluções burguesas eram revoluções de minoria que necessitavam, sim ou sim, de mobilizar as maiorias para o seu projeto de conquista do poder, para assegurar a derrota do Ancien regime, mas uma vez garantida a vitória, se desembaraçavam dos seus dirigentes mais radicais, e apoiadas subjetivamente no esgotamento das energias revolucionárias do povo, que depois da fase de maior entusiasmo, mergulhavam em um intervalo de cansaço ou depressão, e objetivamente na necessidade histórica da progressividade de seu domínio, conseguiam consolidar as conquistas vitais da primeira fase moderada, e reverter as concessões radicais da segunda Entre os elementos objetivos (a necessidade histórica) e os subjetivos ( o cansaço da mobilização popular e os excessos dos radicais) Engels define os primeiros como decisivos, e os segundos como “poeira da história”, ou em suas palavras “gritos de traição ou má sorte”. Mais adiante veremos como esta dialética das causalidades se inverte, quando, na mesma Introdução, Engels se refere às novas dificuldades que antevê diante das revoluções proletárias, as revoluções de maioria, mas não por isso , uma passagem histórica mais simples: “Após o primeiro grande êxito, a minoria vitoriosa costu­mava cindir-se: uma das metades estava satisfeita com os resultados obtidos; a outra desejava ir adiante, apresentava novas reivindicações que, ao menos em parte, correspondiam ao interesse real ou aparente da grande massa popular. essas reivindicações mais radicais também se impunham em certos casos, mas, frequentemente, apenas por um instante; o partido mais moderado tornava a obter a supremacia e as últimas conquistas eram outra vez perdidas no todo ou em parte; os vencidos gritavam então que houvera traição ou lançavam à má sorte a responsabilidade da derrota. Realmente, entretanto, quase sempre os fatos se passavam assim: as conquistas da primeira vitória só eram asseguradas pela segunda vitória do partido mais radical; uma vez obtido isto e, portanto, alcançado o que era necessário, no momento, os elementos radicais abandonavam a cena e seus êxitos os seguiam. Todas as revoluções dos tempos modernos, a começar peia grande Revolução Inglesa do século XVII, apresentaram essas características que pareciam inseparáveis de qualquer luta revolucionária. Elas também pareciam aplicáveis às lutas do proletariado por sua emancipação…” (ENGELS, Friedrich. Introdução à “As lutas de classe em França”. In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, p. 97-8).

[vi] ENGELS, Friedrich. Prefácio para a terceira edição de O 18 do Brumário de Louis Bonaparte. Tradução de Teresa de Sousa. Coimbra, Nosso tempo, 1971.

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