Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*
É inconcebível que as Centrais tenham se unido para defender as instituições, sobretudo o STF, que tem se oferecido ao mercado para ser o protagonista da destruição da Constituição Federal
Em dois dias (13 e 14 de outubro), algumas centrais sindicais, não exatamente as mesmas, lançaram duas notas: uma, em defesa de um Ministro do STF (veja aqui), contra os ataques que este vem sofrendo de “milícias digitais”, como diz a nota; e outra (veja aqui), em defesa do próprio STF (veja aqui), contra as iniciativas que tramitam na Câmara dos Deputados para: (a) anistiar os golpistas de 08 de janeiro de 2023; (b) limitar decisões monocráticas dos Ministros do Supremo; (c) permitir a sustação de decisões do STF pelo Congresso Nacional; e (d) facilitar o impeachment dos Ministros do STF.
As iniciativas que tramitam no Congresso constituem, por certo, só por existirem, graves atentados à ordem jurídica e ao Estado Democrático de Direito.
A questão é que as instituições democráticas, elas próprias, inclusive e, sobretudo, o próprio STF, vêm, com o discurso ideológico de cunho neoliberal, priorizando o interesse econômico, notadamente o internacional, e, com isto, alijando a classe trabalho da rede de proteção social estatal.
Lembre-se que, em termos de direitos das trabalhadoras e trabalhadores, nosso contexto histórico recente foi o da aprovação da “reforma” trabalhista, que, dentre outros efeitos: dificultou a atuação dos sindicatos; criou mecanismos para aumentar o tempo da jornada de trabalho; facilitou a dispensa coletiva de trabalhadores e trabalhadoras; ampliou a terceirização; criou o trabalho intermitente; buscou impedir o acesso à Justiça do Trabalho etc., sendo que vários desses retrocessos jurídicos foram convalidados pelo STF, em especial, a ampliação da terceirização e a validação do negociado sobre o legislado.
Na sequência, vivenciamos os horrores da pandemia e das iniciativas do governo da época que foram direcionadas a proteger os interesses econômicos por meio do aprofundamento das formas de exploração do trabalho e, por consequência, do sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras, gerando, inclusive, milhares de vidas perdidas.
As Medidas Provisórias editadas pelo governo previam ampliação da jornada de trabalho, quando o ideal seria, exatamente o inverso, e, até mesmo, a suspensão das atividades estatais de fiscalização da aplicação das normas de saúde e segurança no trabalho.
Tudo isto se fez, novamente, com o respaldo do Supremo Tribunal Federal, que, mesmo diante do genocídio praticado contra a classe trabalhadora, não reagiu, a não ser quando instado formalmente e em situações extremas, como a que se apresentou na decisão proferida na ADI 6342, que acabou suspendendo a eficácia do artigo 29 da Medida Provisória 927/2020, que absurdamente previa que: “Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.
A “reforma” trabalhista, ao arrepio da Constituição Federal, com o respaldo do STF (e mesmo da Justiça do Trabalho) continuou a ser aplicada e se aprofundou durante a pandemia, sem qualquer rechaço das instituições.
Mais recentemente o STF, após proferir, durante os debates sobre casos específicos, inúmeras ofensas explícitas aos direitos trabalhistas, aos sindicatos, à Justiça do Trabalho e ao Ministério Público do Trabalho, deu início a uma nova escalada de retração dos direitos trabalhistas, seja reduzindo a autoridade e a competência da Justiça do Trabalho, seja alterando o próprio pressuposto teórico básico do Direito do Trabalho, para sobrepor aos princípios da proteção, da primazia da realidade e da melhoria progressiva da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras, uns tais “princípios” da livre iniciativa e da liberdade de concorrência, que não estão enunciados em nenhuma preceito constitucional, para privilegiar os interesses empresarias.
E assim tem agido sem qualquer respaldo da Constituição Federal, afrontando, pois, o Estado Democrático de Direito.
Se não bastasse, em 30 de setembro passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), superando todas as amarras do Estado Democrático de Direito constitucionalmente consagradas, editou a Resolução 586, que estabelece um procedimento judicial destinado à homologação de acordos extrajudiciais na Justiça do Trabalho, de modo a validar a cláusula de “quitação ampla, geral e irrevogável” constante desses ajustes, para, segundo o autor da ideia, Luís Roberto Barroso, solucionar o “problema” do número elevado de reclamações trabalhistas no Brasil, que dificultam os negócios e afastam investimentos.
As Centrais não repudiaram a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça; não denunciaram a quebra de institucionalidade e as afrontas promovidas pelo STF aos direitos trabalhistas constitucionalmente assegurados; não se rebelaram contra o silêncio do STF e demais instituições democráticas em face da necropolítica adotada pelo governo de Jair Bolsonaro; não se mobilizaram com toda a força que podiam contra a aprovação da “reforma” trabalhista e, mesmo agora, não estão exigindo do governo Lula a imediata e total revogação da Lei n. 13.467/17, sendo que, bem ao contrário, têm se mostrado favoráveis a uma inciativa o governo de legitimar a precarização do trabalho, começando pelos entregadores.
Dentro desse contexto histórico, por mais que sejam acertados os argumentos contra as iniciativas que se apresentam no Congresso Nacional, acima referidas, é inconcebível que as Centrais tenham se unido para defender as instituições, sobretudo o STF, que, como visto, desde a fala relevadora do Ministro Marco Aurélio, em 2016, tem se oferecido ao mercado para ser o protagonista da destruição da Constituição Federal e da ordem democrática em tudo o que afeta diretamente a classe trabalhadora.
Ademais, se a separação e a relação harmônica e independente entre os poderes da República são essenciais à democracia, igual importância possuem as organizações sociais, para que sejam levadas adiante as pautas da classe trabalhadora em geral. Às organizações sindicais, de modo específico, como elemento fundamental da democracia, cumpre o papel de promoção da defesa dos trabalhadores e trabalhadoras, até porque não se pode falar em “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como projetado na Constituição Federal, sem a efetivação de direitos trabalhistas e sociais.
O que era de se esperar – e ainda se espera – é que promovessem uma autocrítica, notadamente quanto aos vínculos mantidos com os objetivos restritos e meramente eleitorais de um partido político que não possui um projeto de país atrelado à primazia dos interesses imediatos e futuros da classe trabalhadora, que expressassem, em alto e bom tom, sua indignação contra as atuações do STF (e de seus Ministros) em matéria trabalhista e que conclamassem a classe trabalhadora ao agir político coletivo e organizado para, enfim e concretamente, lutar contra todos esses ataques recentemente sofridos e para a reversão de todas as derrotas experimentadas.
É urgente refletir sobre o que representa politicamente esse apoio explícito dado pelas Centrais a instituições e personagens que, passando por cima dos preceitos constitucionais e da ordem democrática, assumiram a tarefa de se colocarem como porta-vozes das concepções de mundo neoliberal.
Esta associação não só fortalece e “legitima” o movimento de destruição da rede de proteção jurídica trabalhista, como também afasta ainda mais a classe trabalhadora das organizações sindicais, vez que, parafraseando Vladimir Saflate (https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2024/10/13/entrevista-vladimir-safatle-eleicoes-esquerda.htm), estas parecem não ter o que dizer aos trabalhadores e às trabalhadoras.
Sem que esteja, de forma prioritária, na pauta da esquerda e dos movimentos sociais e sindicais a retomada das utopias em torno de uma outra sociabilidade efetivamente inclusiva e igualitária e sem que se promovam mobilizações e lutas efetivas contra o rebaixamento social e por melhores condições de vida e de trabalho, superando as fragmentações de classe e as violências raciais e de gênero criadas e alimentadas pelo capital, os trabalhadores e trabalhadoras, premidos pela necessidade de lutar sozinhos (e uns contra os outros) pela sobrevivência, acabam não se identificando com as ações e discursos promovidos pelas organizações sindicais e pelos governos ditos de esquerda que, no fundo, apenas administram os interesses do capital.
Diante da ausência de um movimento político e organizacional que explicite suas convicções e suas ações práticas em torno da defesa radical dos interesses da classe trabalhadora ou, pior, diante da demonstração explícita de que as entidades historicamente ligadas às lutas trabalhistas estão se associando aos algozes dos direitos trabalhistas (que é o que as notas em questão revelam), os trabalhadores e trabalhadoras se tornam presas fáceis das retóricas do empreendedorismo, que, tomando para si o discurso da radicalidade e da denúncia sobre as falsas promessas feitas por um Estado burocratizado e ainda marcado pelo fisiologismo, o favoritismo e o compadrio, prometem inclusão, liberdade e autonomia financeira.
Este contexto é o que tem facilitado, como se pôde constatar do resultado geral da última eleição municipal e na própria realidade das relações sociais, o caminho para o conservadorismo, o fascismo, a intolerância, a violência social e o ódio.
E quando o Presidente Lula, percebendo esta forma de cooptação eleitoral feita pela retórica conservadora, toma para si o apelo ao empreendedorismo (https://iclnoticias.com.br/lula-fala-em-trabalho-menos-carteira-assinada/), tentando com isto, talvez, angariar mais votos para o seu partido, o que consegue é apenas tornar a esquerda, ao menos aquela representada pelo lulismo, em um movimento absolutamente idêntico à direita e, até mesmo, à ultradireita.
Fato é que a inexistência de um compromisso efetivo e radical com as necessidades concretas da classe trabalhadora está nos legando a ascensão do fascismo, mesmo que, neste contexto, se preencha o vazio com discurso da defesa da “democracia”.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores) [https://amzn.to/3LLdUnz]
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