Por TARSO GENRO*
A crise da democracia liberal e as respostas que o governo Lula está dando às conjunturas interna e global adversas
Enquanto escrevo este artigo ouço o discurso de Lula na ONU. Não mudo o roteiro do meu texto, antes o confirmo no seu sentido estratégico. Os devidos processos legais abertos para a apuração da tentativa golpista do 8 de janeiro ainda não chegaram nos responsáveis maiores por aquela aventura perversa.
Eles certamente não são os indivíduos originários da caserna, nem a multidão de histéricos e marginais que ocuparam prédios públicos, destruíram parte do patrimônio mais simbólico da nossa história republicana e mostraram o que oferecem ao povo brasileiro: defecaram perante o mundo para mostrar o seu grau de ódio e selvageria. Os responsáveis foram os pouquíssimos altos mandos que aceitaram a proposta do golpe, as lideranças civis da extrema direita de todos os naipes e hierarquias e a lúmpen-burguesia de várias origens, sequiosa para assaltar o Estado, sem as mínimas travas que a legalidade da democracia liberal pode impor ao arbítrio.
A Convenção de Filadélfia (1787) que iniciou a organização do essencial no Estado Americano, tal qual ele se encontra até hoje, teve debates extraordinariamente importantes, que versaram sobre inúmeros temas, dentre os quais como organizar a Federação, seja a partir da presença predominante dos indivíduos-cidadãos de todo o território americano ou, em outra alternativa, a partir da representação unitária dos estados federados, como unidade primária da “proporcionalidade”, para conformar as maiorias ou minorias políticas na nação em formação.
No interior daquela Convenção, lembram os historiadores, “tanto Madison quanto Yates” criticavam em seus adversários suas falas dotadas de muita veemência e pouco conteúdo, cujas alegações levavam a crer que o “governo geral deveria ser formado para os Estados, não para os indivíduos” (…) cujos argumentos “teriam sido mais eficazes se tivessem sido apresentados de forma mais concisa e mais oportuna”.[i]
Os principais momentos de crise de toda democracia liberal, lá na sua origem, estão assentados na crise das formas de representação, porque sendo elas produtos do individualismo moderno, o regime democrático já envelhece quando se torna uma “democracia de massas”, sem reformar as suas instituições forjadas há mais de duzentos anos para acolher essa “novidade” histórica.
Tratava-se, na verdade, na Convenção Americana, de buscar um equilíbrio entre a centralização do poder nas mãos de um Presidente, de uma parte e, de outra, de manter a autonomia dos estados (…) como entes básicos da nova ideia de nação, “onde o Poder Executivo deveria estar cerceado por leis que o impedisse de tornar o governo uma tirania.[ii]
O terceiro governo do presidente Lula enfrenta um panorama interno e externo muito mais difícil do que aquele encontrado no seu primeiro governo, que chamei (e não me arrependo) – na oportunidade – de “era Palocci”. Minha observação, mal entendida à época, não estava relacionada com uma eventual falta de autoridade do presidente, mas com as condições objetivas que assediavam seu primeiro governo (inflação em alta, dívida social explosiva e juros estratosféricos) que obrigavam, por ausência de uma outra alternativa viável, a governar com realismo no plano da economia, sem desequilibrar o que restava da confiança dos atores econômicos e políticos mais significativos daquela tempo, em que Bush presidia os EUA, a URSS já afundara e a socialdemocracia começava a transitar para a centro-direita.
Entendo este terceiro governo do Presidente Lula como mais difícil do que o seu primeiro governo, em função das dificuldades na política externa – decorrentes da fragmentação dos centros de poder global – das condições econômicas gerais ainda piores do que aquelas deixadas por Fernando Henrique Cardoso, agravadas em máxima potência pelo governo de Jair Bolsonaro e pelo aumento da dívida financeira (e social), bem como pelo aumento vertiginoso do fisiologismo político no Congresso Nacional, já presente nas forma de representação política do nosso federalismo distorcido.
Tudo se dá no contexto de uma conjuntura global de renascimento do fascismo e da orfandade das esquerdas, no que refere à morte das utopias de igualdade social do século passado, que não foi respondida por uma nova doutrina de caráter socialista democrática, nem pela organização de um novo sistema de unidade das forças políticas, situação essa que se combinou com uma certa tradicionalizacão do PT como partido exclusivamente “de governo”, cuja influência política nacional ocorre exclusivamente através da voz autorizada de Lula.
A nossa vantagem em relação aos partidos mais tradicionais é que Lula unifica e politiza o PT, num momento em que as formas comuns de organização partidária não mais conseguem cativar as suas bases, e a nossa desvantagem é que somos, assim, vítimas de um certo desmaio da nossa criatividade. Este problema está conjugado com uma radical transformação que adquiriu a “questão democrática” nos tempos presentes, espremida – de um lado – pela escassez de novas alternativas para o aprofundamento da democracia política e, de outro, pela fixação da representação política em formas que não apanham a diversidade dos movimentos identitários de todos os tipos e das suas novas formas de organização.
Na introdução a Era dos direitos, escrita em outubro de 1990, Norberto Bobbio assevera que os direitos de terceira geração, “como o direito de viver num ambiente não poluído, não poderiam ter sido sequer imaginados quando foram propostos os de segunda geração” ( dos “direitos sociais”) juízo de Norberto Bobbio que dava suporte ao seu ponto de vista “que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos; ou seja, nascidos em certas circunstância, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdade contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez”.[iii]
Seguirão, pensa ele – em sequência histórica certamente os direitos da quarta geração, vinculados ao direito à informação, ao pluralismo político num regime socialista democrático, e os de “quinta” geração, o mais difícil e complexo de todos: o “direito à paz”, especial preocupação da teoria kantiana, viva até hoje, não levada em conta inclusive pelos setores mais esclarecidos das políticas de esquerda.
A democracia política é assim, de um lado, “vontade política” e, de outra, “razão jurídica”, com suas motivações[iv] e leis que provêm formalmente da maioria do poder constituinte. E é, também os “direitos das minorias” que começam principalmente em cada indivíduo que compõe a cidadania coletiva. É bem conhecida, todavia, a fórmula de que a democracia não pode se suicidar, tornando-se de tal modo elástica para oportunizar a sua perversão quando fascistas – normalmente indivíduos desgarrados que se tonam massa fanatizada – reaparecem em profusão para tentar implantar sua ordem totalitária, acionada através da violência ilegítima.
As três grandes respostas que o governo Lula está dando a esta conjuntura interna e global adversa, composta por uma política externa de soberania, proposição e composição com as diversas fonte de poder global; o combate à fome – imediato e direto – pelo Estado Social que esteve paralisado nos anos do Governo Bolsonaro; e o “Arcabouço Fiscal”, como um momento de trânsito para uma economia social de mercado que aponte, pelo menos, para reduzir desigualdades.
É tudo muito frágil, mas é tudo muito forte: frágil porque o domínio do capital financeiro sobre os Estados endividados opera com diversas estratégias e diversas fontes de poder. Mas tudo muito forte, porque passamos, ontem, por um período terrível, no qual os nossos militares foram convocados para um Golpe pelo “chefe da nação” e se ausentaram. A situação foi superada sem guerra civil e por dentro da democracia política, o que não é pouco na nossa América Latina torturada pela violência e pela morte, por longos e tenebrosos invernos ditatoriais.
*Tarso Genro Foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).https://amzn.to/3ReRb6I
Notas
[i] FARRAND, Max (Autor), CUNHA, Bruno Santos (Tradutor), PINTO, Lucas Pieczarcka Guedes (Tradutor). A criação da constituição: a Convenção da Philadelphia de 1787 e a formação dos Estados Unidos da América. São Paulo: Editora Contracorrente, 2023, p.91 (https://amzn.to/464nJoz).
[ii] BEZERRA, Juliana. Constituição Americana. Toda Matéria. Disponível aqui:
[iii] Bobbio, Norberto; tradução COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 2004, p.25-28.
[iv] CLAVERO, Bartolomé. Los derechos y los jueces. Madrid (Espanhã): Editora Civitas,S.A. 1988, p. 86.
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