Por EMILIANO LÓPEZ*
Introdução do organizador para o livro recém-editado sobre o “imperialismo do nosso tempo”
Uma caixa de ferramentas para fechas as nossas veias
“Nessas terras, não estamos assistindo à infância selvagem do capitalismo, mas sua decrepitude” (Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina).
“Ali pernoitou a Cerca: de madrugada rastejou para o itararé por onde afunda a estrada de Huánuco. Dois montes intransponíveis vigiam o desfiladeiro: o avermelhado Pucamina e o enlutado Yantacaca, inacessíveis até para os pássaros. No quinto dia a Cerca derrotou os pássaros” (Manuel Scorza, Bom dia para os defuntos).
O conceito de imperialismo tem má reputação. Sem dúvida, no mundo intelectual e acadêmico hegemônico, ele é tratado como um termo démodé, centralmente ideológico e com pouca capacidade explicativa sobre nossa realidade atual. Nesta “Era da Globalização”, não precisamos reeditar categorias de outros momentos históricos que nos levariam a velhas receitas para melhorar a vida de nossos povos, mas sim reconhecer o tempo em que vivemos e fazer prevalecer o realismo.
Esta visão, mesmo quando motivada por nobres intenções, nos imobiliza e nos conduz a deixar-nos convencer de que este mundo desigual só pode ser transformado em sua dimensão molecular. No entanto, o fato de que boa parte do pensamento crítico tenha abandonado certas categorias a favor de explicações mais amigáveis em relação ao establishment acadêmico e político de nosso tempo faz parte do triunfo do modelo civilizatório ocidental e capitalista após a queda do Muro de Berlim.
Para onde quer que olhemos no Sul Global, encontramos situações que requerem explicações globais. A apropriação de bens comuns na África e na América Latina, a expansão das fábricas têxteis em condições sub-humanas de trabalho na Ásia, o domínio da produção dos países do Sul da Europa e Norte da África por empresas radicadas na Alemanha e na França; a dominação do Estado de Israel sobre a Palestina; a imposição da propriedade privada sobre espaços comunais, transformando-os em espaços para a acumulação de capital; as incontáveis intervenções militares no Oriente Médio; a imposição do American Way of Life através da indústria cultural estadunidense; isso não passa de expressões de que o capitalismo global é, como diz Samir Amin, um “sistema gerador de desigualdade entre países e regiões”. Essa desigualdade não é uma abstração, não é pura elucubração teórica: ela é vivida nos corpos dos oprimidos e oprimidas do Sul.
É por isso que consideramos que a categoria mais adequada para entender essa desigualdade global é o imperialismo. Consideramos urgente voltar a dar conteúdo, atualizado para o nosso tempo e para as nossas lutas, a um conceito potente em termos explicativos e historicamente associado às lutas dos povos pela liberação. Imperialismo é tanto um conceito quanto uma categoria nativa dos nossos projetos de emancipação do Sul.
A trajetória desse conceito teórico-político é amplamente difundida. Até o fim do século XIX, a Grã-Bretanha viveu seu período de expansão capitalista mais intenso. Após sofrer uma crise econômica de peso, o reimpulso de seu próprio capitalismo implicou uma nova onda de expansão global da civilização capitalista ocidental. Nesse caso, a novidade mais significativa em relação às práticas coloniais prévias foi que a expansão respondeu, sobretudo, às necessidades da acumulação de capital dos centros industriais da Europa. Como apontou Hobson, um liberal crítico das imposições do governo inglês ao resto do mundo,
Todos os homens de negócios admitem que o crescimento dos poderes produtivos em seus países excede o crescimento do consumo, que se podem produzir mais bens do que os que podem ser vendidos com lucros, e que existe mais capital do que o que pode ser investido rentavelmente. Esta situação econômica é a que forma a raiz do Imperialismo.
Esta leitura motivou os pensadores marxistas como Lenin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, entre outros, a prestar atenção a essa nova etapa que se abria no mundo. O trabalho de Lenin, Imperialismo, estágio superior do capitalismo, marcou sem dúvidas um antes e um depois na discussão sobre o imperialismo. Esse conceito não apenas explicava a concentração de poder e de renda nos países do Norte, mas também o mecanismo de concentração e monopolização do capital, baseado na exportação de capital dos países imperialistas para as periferias do mundo, favorecida pelo desenvolvimento do capital financeiro e, ao mesmo tempo, se apropriando dos recursos provenientes do Sul para garantir as condições de produção do Norte.
Em grande medida, podemos ver esses anos de expansão global do capital do Norte, em particular do inglês, como um emaranhado de capitalismo e colonialismo. De fato, boa parte da operação deste suposto processo civilizatório do Norte se baseou na liberalização econômica e na dependência política de um quarto do mundo. A Ásia, a África e o Oriente Médio foram divididos como propriedade de diferentes países imperialistas da Europa. Assim, um quarto do mundo foi distribuído em colônias às quais as corporações capitalistas transnacionais impuseram o novo dever ser. No caso da América Latina, o imperialismo tomou a forma de dependência econômica em um contexto de suposta independência política nacional. Como o apresentava Manuel Scorza em sua magnífica e angustiante história, o capital estrangeiro se instalou em nossas terras se apropriando da água, das montanhas e até mesmo da própria vida.
Para além dessa expansão, o capital global entrou em uma nova e terrível fase de crise. Uma guerra sem precedentes até aquele momento, que destroçou os centros do imperialismo clássico, foi a expressão mais desumanizante desta nova fase de desenvolvimento da ordem mundial geradora de desigualdade. É nesse contexto que surge uma nova hegemonia global que termina de se consolidar após a Segunda Guerra Mundial: os Estados Unidos. Longe de tentar atiçar o conflito entre potências, os Estados Unidos conseguiram ser o melhor representante do capital estadunidense e do capital global por pelo menos 50 anos. Apostaram na reconstrução da Europa para alcançar mercados rentáveis para sua expansão industrial doméstica, viabilizaram negociações para impulsionar fluxos de investimentos produtivos nos países do Sul, exportaram seus padrões culturais de consumo pelo mundo, participaram abertamente nas operações militares contra os projetos de esquerda de vários países e impuseram regimes ditatoriais em uma série de países do Sul. Como disse oportunamente o historiador Perry Anderson, os Estados Unidos basearam sua nova lógica imperial em uma combinação da força produtiva de sua economia, da sua capacidade de domínio militar e da sua capacidade hegemônica através da legitimidade que sua democracia e seu modelo cultural alcançaram. É, em boa medida, “uma luva de veludo que tem dentro uma mão de ferro”.
Para além desse sucesso do imperialismo estadunidense, as resistências populares em todo o Sul global nos anos 1960, a Revolução Cubana e a derrota do império no Vietnã marcaram uma nova crise política dessa ordem desigualitária; ao mesmo tempo, se desenvolvia uma nova crise econômica global, talvez uma das mais significativas para explicar o mundo em que hoje vivemos.
A crise da década de 1970 encontrou, novamente, uma saída no imperialismo revigorado. Neoliberalismo e imperialismo se associaram para dar lugar a um novo ciclo de imposições financeiras, produtivas e militares do Norte para o Sul. A nova (des)ordem global nascida dessa crise capitalista dos anos 1970 multiplicou as desigualdades previamente existentes e gerou uma tendência à financeirização e ao saqueio sem precedentes. Depois de declarar a “morte das ideologias” e o “fim da história” a favor de um novo mundo global livre, democrático e capitalista, o suposto novo século estadunidense está, novamente, em uma crise inegável. Mas essa crise não tem como contrapartida necessária as condições de maior dignidade para os povos do Sul. Ao contrário, a crise do imperialismo estadunidense acentua a barbárie: intervém militarmente de maneira direta no Oriente Médio, multiplica suas imposições financeiras, absorve as massas de capital do mundo e as converte em capital financeiro, desenvolve novos formatos de guerra híbrida contra os países que não querem ceder sua soberania, da Síria até a Venezuela.
Este livro tenta, com diálogo e debate coletivo, construir uma nova leitura acerca do imperialismo de nosso tempo. É uma caixa de ferramentas para entender o tempo que nos cabe viver e renovar o nosso compromisso militante contra todas as formas de opressão. Compreender como opera hoje o imperialismo, através de que mecanismo, delimitar a profundida de sua crise e as possibilidades de hegemonias alternativas permite reeditar o compromisso com a liberação de nossos povos a partir do Sul Global. Permite pensar que, em boa medida, devemos estancar o sangramento causado pela espoliação dos nossos corpos, da nossa cultura, dos nossos bens comuns e do nosso trabalho. Permite reconstruir uma base histórica sobre a qual possamos ficar de pé, o que Che sintetizava dizendo que, para além dos desacordos táticos, “quanto ao grande objetivo estratégico, a destruição total do imperialismo por meio da luta, temos que ser intransigentes”.
Incluímos aqui cinco capítulos que atravessam uma série de pontos de debate contra as leituras comemorativas da globalização neoliberal, contra o “não existe alternativa”. Colocam em dúvida o papel que os países imperialistas concedem às nossas economias do Sul como garantidoras de alimentos baratos, as novas (velhas) formas da exploração trabalhista, as características da competição entre capitais em escala global, a nova estratégia militar dos Estados Unidos no contexto de crise de seu projeto hegemônico e os pontos nodais para interpretar a sucessão hegemônica que vivemos como uma oportunidade, ao mesmo tempo que como um grande risco.
Esperamos que estas linhas sejam uma contribuição para compreender a monstruosidade do inimigo, mas, ao mesmo tempo, que nos levem a aprimorar nossas ferramentas e fortalecer nossas trincheiras. Porque, definitivamente, por mais terrível que seja a forma de operar do inimigo, sempre lutaremos por nossos sonhos de justiça. Como nos dizia o poeta palestino Samih Al-Qassem em seu “Informe de uma bancarrota”,
ainda que apagues teus fogos em meus olhos,
ainda que me enchas de angústia,
ainda que falsifiques minhas moedas,
ou cortes pela raiz o sorriso dos meus filhos,
ainda que levantes mil paredes,
e enfie pregos em meus olhos humilhados,
inimigo do homem,
não haverá trégua
e hei de lutar até o fim.
*Emiliano López é professor de sociologia na Universidade Nacional de La Plata (Argentina).
Referência
Emiliano López (org.). As veias do Sul continuam abertas: Debates sobre o imperialismo do nosso tempo. São Paulo, Expressão Popular, 2020, 178 págs.