Bartleby, o professor de história

Imagem: Lucas andreatta
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Por ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO*

Por que não recusar o que é imposto, o que agride?

Não faltava nunca, não saia de licença, nem usava as “faltas abonadas”. Tão logo soava o sinal se dirigia à turma prevista na grade de horários. Era assim de segunda a sexta, manhãs, tardes e noites. Almoçava e jantava na escola, frequentemente conseguia filar alguma merenda destinada aos estudantes, fosse arroz com atum ralado e ervilha em lata ou achocolatado com biscoito. Era viciado no café da sala dos professores, sem se importar se era fresco ou requentado.

Trabalhava na escola “XYZ” desde 2007, por aí. Era um dos mais antigos. Nos últimos anos suas aulas tornaram-se pouco ou nada criativas, principalmente depois que passou a utilizar o material didático do “São Paulo Faz Escola”, com suas apostilas do aluno e do professor. Entrava em sala, como num ritual, conferia a aula prevista e prescrita, três aulas para Iluminismo na 7ª série, quatro aulas para Revolução Russa na 8ª série, quatro aulas para Renascimento na 6ª série… e assim seguia, bimestre a bimestre. Abria a apostila, lia a lição e pedia que os alunos respondessem as questões pré-determinadas, cujas respostas podiam ser obtidas facilmente na web.

O professor tinha 37 anos de idade, começou a dar aula ainda como estudante, fez um excelente curso de licenciatura em história e mestrado stricto sensu. Iniciou Doutorado, mas desistiu. Passou a seguir as apostilas: “Caderno do Professor” e “Caderno do Aluno”.

Nessa manhã, durante a reunião pedagógica de planejamento, informei que seguiríamos um novo currículo, a BNCC. Expliquei que era um documento “feito por especialistas”, que correspondia às “demandas do aluno contemporâneo”, que continha o “conjunto de aprendizagens essenciais aos estudantes brasileiros”. Mas Bartleby[i] olhava fixamente através da janela da sala em que estávamos reunidos em direção ao muro alto que cercava nossa escola, distante dois ou três metros, criando uma situação um tanto claustrofóbica. Parecia ignorar minha presença e a dos professores das demais disciplinas. Olhava através e bebericava o café morno e requentado da garrafa térmica.

Aquilo me incomodava. Eu era a coordenadora pedagógica e seu alheamento soava desrespeitoso, parecia um tanto insolente, soberba de historiador… Eu havia ingressado na escola, por remoção, dois anos antes dele. Parecia ser um bom sujeito, bem afeiçoado, solteiro (ainda é, solteiro e sem filhos, sob a alegação de não querer deixar para ninguém o legado de sua miséria, explicação que nunca compreendi muito bem), estudioso, estava sempre carregando livros, títulos complexos, mantinha boa relação com os demais professores, alunos e funcionários.

Logo após o coffee break comunitário resolvi indagá-lo, expondo-o diante de seus pares na reunião, parceiros atentos e operantes, que trouxeram os biscoitos, o bolo de caixinha e as torradinhas com patê de creme de cebola, e o indaguei sobre a importância de seguirmos a BNCC de História, discorri com razoável propriedade sobre as habilidades e as competências, sobre os direitos de aprendizagem, sobre os códigos alfanuméricos e até me arrisquei a falar sobre o amplo consenso nacional, o pacto interfederativo, o Novo Ensino Médio, as Trilhas Formativas, e conclui, com a voz embargada…, lembrando que o futuro das novas gerações estava em nossas mãos. Ao final de minha explanação disse a ele: “E então, professor, o que pensa disso?”

– Acho melhor não, disse Bartleby, o professor de História.

Sem esboçar nenhum sentimento ou mover qualquer músculo da face, assim respondeu à minha indagação. Olhava fixamente o muro em frente à janela da sala, impassível. Não se percebia qualquer constrangimento, parecia uma esfinge a degustar café requentado.

Tornei a indagá-lo, primeiro me dirigindo a todos, para não parecer alguma perseguição pessoal, e depois diretamente a ele, apelando para a importância do trabalho coletivo. Mas ele tornou a responder:

– Acho melhor não.

Os colegas se entreolhavam, perplexos. É certo que Bartleby nunca fora muito expansivo, sempre estava mergulhado em seus livros e pensamentos. Eventualmente, arriscava algum comentário lacônico sobre o cenário político e suas ambiguidades, que parecia mais confundir que explicar. Os alunos até gostavam dele. Mas essa recusa em participar, logo no início do ano letivo, primeira reunião pedagógica, a resposta lacônica causou-nos espécie.

A professora de biologia revirou os olhos, impaciente, em reprovação. O colega de geografia fez ar de tédio. A professora de língua portuguesa corrigia redações de um cursinho pré-vestibular, impaciente. O professor de matemática olhou indignado para o colega de educação física, que fez menção de agredir Bartleby. Nada irrita mais professores honestos que a resistência passiva.

Com o horário avançado e para apaziguar os ânimos, dei por encerrada a reunião e desejei um ótimo início de ano a todos. Bartleby continuava sentado na mesma posição, ainda olhando para um ponto imaginário no muro, através da janela. De saída, cruzando a porta, despedi-me:

– Nos falamos outra hora, Bartleby! Tenha um bom dia!

Já no corredor ouvi:

– Acho melhor não.

Foi a última vez que vi Bartleby.

*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp). [https://amzn.to/4bYIdly]

Nota


[i] Referência a Bartleby, o escrivão – uma história da Wall Street, de Herman Melville. [https://amzn.to/4dis6j2]


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