Bogotá

Imagem: Michael Pointner/ Bogotá - Colômbia
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

Engana-se quem acha que a Colômbia é simplesmente o país de guerras e do narcotráfico. A determinação do povo colombiano e o derramamento de sangue constituem apenas uma das facetas que faz de Bogotá a capital da América Latina

O bate-boca entre Gustavo Petro e Donald Trump acerca da deportação de imigrantes ilegais ocupou a mídia internacional em janeiro de 2025. De acordo com a narrativa da grande imprensa, subserviente e tendenciosa, o presidente colombiano teria sido voluntarioso em não aceitar o desembarque dos deportados e desafiar o presidente norte-americano, para depois recuar, dadas as ameaças de sanções norte-americanas e a relação de forças entre os dois países.

Mas, concretamente, Gustavo Petro não recusou receber os colombianos deportados, recusou-se sim a recebê-los em condições aviltantes. O estadista Gustavo Petro expôs e denunciou internacionalmente a truculência de Donald Trump, resistiu e impediu o desembarque dos deportados algemados, que por fim aterraram em território colombiano em condições dignas. O arrojo do presidente da Colômbia impôs um limite à barbaridade norte-americana e estabeleceu um princípio para possíveis novas deportações de imigrantes ilegais.

Para muitos, a Colômbia é simplesmente a terra do narcotráfico; e o guia Lonely planet avisa aos turistas que a história do país é de guerras e derramamento de sangue. Em breve retrospecto, os alienígenas europeus invadiram a região no século XVI, subjugaram seus habitantes, se apossaram de suas riquezas e, não satisfeitos, destruíram ainda a sua cultura e civilização.

A Colômbia tornou-se independente após a invasão da Espanha por Napoleão. O país enfrentou sua Guerra dos Mil Dias entre 1899 e 1902, com a vitória dos conservadores. Para viabilizar a construção do canal entre o Atlântico e o Pacífico, os Estados Unidos, em 1903, fomentaram a independência do Departamento del Panamá, que até então integrava a Colômbia. Em 1928, o país foi palco do Massacre das Bananeiras da United Fruit Company, perpetrado e acobertado pelo governo colombiano, pesquisado e denunciado pelo político Jorge Eliécer Gaitán.

Candidato favorito à presidência, Jorge Eliécer Gaitán foi assassinado em 9 de abril de 1948. O povo, ensandecido, ateou fogo e destruiu Bogotá, numa insurreição conhecida como Bogotazo, que constitui um marco na história da Colômbia. Entre 1948 e 1953 a Colômbia atravessou os anos denominados La Violencia, com a matança desenfreada de políticos. Dado o extremo autoritarismo e violência do governo conservador, o golpe militar de 1953 foi comemorado pela esquerda, que achava que os militares no poder seriam mais brandos que os conservadores.

A partir dos anos 1960, foram sendo organizadas as guerrilhas FARC – Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, ELN – Ejército de Liberación Nacional, M-19 – Movimiento 19 de abril etc.; e formados grupos paramilitares pelo exército e proprietários das terras, AUC – Autodefensas Unidas de Colombia.

A produção e o tráfico de cocaína, incrementados nos anos 1980, ficaram a cargo tanto do Cartel de Medellín, chefiado pelo Robin Hood Pablo Escobar, e outros cartéis do narcotráfico, como das organizações revolucionárias (FARC e ELN) e paramilitares (AUC), tornando algo controversas as fronteiras entre a política e a cocaína. Os norte-americanos, para seu conforto, acham natural e mais conveniente operar e interferir em território colombiano do que frear o comércio e o consumo de cocaína dentro de suas próprias fronteiras. Poderíamos acrescentar ainda que a disseminação da coca no ocidente é provavelmente uma praga chinesa, em vingança às Guerras do Ópio em meados do século XIX, que forçaram a abertura dos portos ao comércio internacional e disseminaram o consumo do entorpecente, que acabou por desestruturar o Império chinês.

Em 1984 foi assinado um acordo entre o governo e as guerrilhas para uma solução política do conflito armado. Contudo, o Exército Nacional rompeu o acordo em uma ofensiva que suscitou a tomada do Palácio da Justiça pelo M-19 em 1985. A desastrosa reação do governo, com um tanque de guerra adentrando o Palácio, constitui outro marco na história da Colômbia.

O governo da Colômbia e a guerrilha assinaram um acordo de paz em 2016, mas seguiram-se assassinatos em série de lideranças locais. Em meio à pandemia do coronavírus, a greve nacional de 28 de abril de 2021 foi reprimida com tamanha violência que o rapper René Pérez, o Residente, declarou que “se um povo sai para manifestar-se em plena pandemia é porque o seu governo é mais perigoso do que o vírus”. Jovens, organizados em Primeiras Lineas, enfrentaram a polícia e o exército para proteger os manifestantes. A desmedida repressão, que incluía grupos paramilitares urbanos, fez com que a esquerda, inusitadamente, ganhasse as eleições em 2022, o que constitui mais um marco na história da Colômbia.

A capital da América Latina

Contudo, engana-se quem acha que a Colômbia é simplesmente o país de guerras e do narcotráfico. A determinação do povo colombiano e o derramamento de sangue constituem apenas uma das facetas que faz de Bogotá a capital da América Latina. Pode não ser a capital econômica (e quem é que está interessado em economia?), mas certamente é a sua capital cultural e política. Bogotá está muito longe do radar dos brasileiros. Mas, para conferir, basta visitar o acervo do Museu Nacional da Colômbia em Bogotá, fundado em 1823 por Simón Bolivar, que reúne mais de 20 mil peças de arte, arqueologia, etnografia e história da Colômbia.

O Museu do Ouro, por sua vez, além de milhares de artefatos em pedra, cerâmica e tecidos, conserva uma coleção de 34 mil peças em ouro dos Muiscas, Quimbaya, Tayrona, Tumaco, Zenú, entre outros povos nativos. A sofisticação dos trabalhos de ourivesaria do período pré-colombiano que conseguiram escapar de serem transformados em barras de ouro encaminhadas pelos ávidos colonizadores para a Europa clama em testemunho do crime perpetrado contra as culturas ameríndias.

Destacam-se também os museus Botero, Santa Clara (arte sacra), Miguel Urritia (artes visuais), Bogotá (municipal), Casa del Florero (independência), Mambo (arte moderna), Quinta de Bolívar (residência), Claustro de San Agustín (Universidad Nacional de Colombia), todos localizados em La Candelaria, o centro histórico de Bogotá.

Universidades, livrarias e sebos cobrem a capital dos colombianos, fortemente armados com canetas, a ponto de Gabriel García Márquez, com seu realismo mágico, ser um dos poucos latino-americanos laureados com o Prêmio Nobel de Literatura (a Colômbia, diga-se de passagem, é muito mais mágica que os Cien anos de soledad). Apresentações de música, dança, teatro e cinema enchem concorridos auditórios e as ruas da cidade. Festivais apresentam peças de teatro em idiomas indígenas. Grupos musicais buscam as raízes culturais colombianas em melodias indígenas e nas vozes dos pássaros, rios, selva e outros territórios. Nas apresentações musicais, o público não usa os assentos, permanece em pé o tempo todo, bailando ao som da banda.

O povo toma conta das ruas centrais da cidade, que mais parece um camelódromo a céu aberto. Para nenhum dos nossos mineiros colocar defeito, uma fartura de diferentes variedades de pães de polvilho e queijo (pan de queso, pan de yuca, pan de bono, almojábana etc.), além de outros bocadillos feitos de milho (arepa) e trigo (buñuelos, palitos de queso etc.) enchem as calçadas da cidade.

Queijo fresco, doces de leite e goiabada também são típicos. Phisalis (uchuva) cresce como mato em Bogotá e uma profusão de frutas desconhecidas no Brasil são comercializadas pelas ruas e nos mercados. Falando em frutas, em Cartagena, um exército de vendedoras com turbantes africanos, a caminho de seus pontos de venda, carrega cestos com frutas na cabeça – o visual que os diretores de Hollywood escolheram para ornamentar, sim, a nossa latino-americana-luso-baiana Carmen Miranda.

Os três marcos históricos aqui citados (1948, 1985 e 2022), curiosamente, distam 37 anos entre si. Gustavo Petro ganhou as eleições presidenciais em 2022, por pequena margem de votos. Para se ter ideia da garra do povo colombiano, em janeiro de 2025, enquanto Gustavo Petro enfrentava Donald Trump, os congressistas conservadores e ameaças à sua pessoa e família, membros de uma comissão dos campesinos de Catatumbo do Norte de Santander (deslocados pelos grupos da FARC e da ELN que não entregaram as armas) estavam acampados na Plaza de Bolívar para reivindicar o retorno às suas casas, terras e plantações.

Duzentos metros adiante, no saguão do Centro Nacional de las Artes Delia Zapata Olivella, jovens alocados em serviços sociais pela paz (uma alternativa ao serviço militar obrigatório, uma das primeiras iniciativas de Gustavo Petro na presidência), reunidos com representantes do governo, reivindicavam aos gritos a sua remuneração que estava em atraso.

Esperamos que los votantes, que querían del Gobierno de Petro más de lo que la articulación política permite, no olviden la brutalidad del gobierno conservador en respuesta a las manifestaciones de 2021.

* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos .


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