Por GILBERTO LOPES*
Os desdobramentos do 7 de setembro
Os discursos do presidente Jair Bolsonaro em Brasília e São Paulo no último 7 de setembro “revelam a triste figura e a distorcida mente autocrática de um político medíocre”, disse Celso de Mello, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Na terça-feira 7, em São Paulo, Bolsonaro chamou de “canalha” o juiz Alexandre de Moraes, membro do STF que investiga casos que envolvem ele e seus filhos por divulgarem notícias falsas e por apologia à ditadura (mais tarde retratou-se). E afirmou que não cumpriria nenhuma de suas ordens.
Na quinta-feira 9, no meio do caos provocado pelos caminhoneiros que o apoiam, fechando estradas por todo o país, e a preocupação de seus aliados (incluindo os militares) com o rumo anticonstitucional que as coisas tomaram, ele disse que suas palavras contundentes eram resultado “do calor do momento”. Falava, como disse o colunista Moisés Mendes, ao lado de três generais de quatro estrelas, todos da reserva: o vice-presidente Hamilton Mourão e os ministros Braga Netto, ministro da defesa, e Luis Eduardo Ramos, ministro-chefe da secretaria-geral da presidência. “Subiu nos palanques sob a proteção dos seus militares”, disse Mendes, “e só não levou a preparação do golpe a uma nova etapa porque o mecanismo que acionaria o caos não funcionou. Se tivesse funcionado, não teria pedido trégua”.
Sem o apoio político que esperava, com as estradas ocupadas, a bolsa caindo, o dólar subindo e o desabastecimento ameaçando a população, Bolsonaro ordenou aos caminhoneiros – a ponta de lança da operação –, desta vez com voz mansa, que abandonassem as ruas. A alternativa era levar os militares às ruas, mas não para apoiar seu projeto, mas para matar caminhoneiros, seus aliados, e abrir as estradas. Uma tarefa que algum militar no governo poderia, talvez, ver com simpatia, mas que os da ativa – encarregados da tarefa – provavelmente não. Com a crise saindo do controle, o presidente decidiu desativá-la com uma nota de dez pontos, divulgada na quinta-feira.
O gênio tinha saído da garrafa
Caminhoneiros de diferentes partes do país tinham ocupado a esplanada dos ministérios em Brasília para comemorar a data da independência, em 7 de setembro. A ideia era atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), onde Bolsonaro e seus filhos enfrentam investigações que poderiam levá-los à prisão.
Bolsonaro falou. Primeiro, em Brasília. Depois, tomou um avião e foi para São Paulo, onde subiu o tom. No dia seguinte, quarta-feira 8, o país amanheceu com bloqueios de estradas em pelo menos 16 estados. Na madrugada de quinta-feira, em vídeo difundido pelas redes, apareciam imagens de grupos de manifestantes em apoio a Bolsonaro, instalados na esplanada dos ministérios em Brasília, próximos ao Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro começou a tentar dissuadi-los de continuar.
Em áudio, em tom coloquial, algo submisso, fala com um emissário, que pedirá que abandonem os protestos: “Fala para os caminhoneiros aí, que são nossos aliados, mas esses bloqueios atrapalham a nossa economia. Isso provoca desabastecimento, inflação e prejudica todo mundo, em especial, os mais pobres”. “Então, dá um toque nos caras aí, se for possível, para liberar, tá ok? Para a gente seguir a normalidade. Deixa com a gente em Brasília aqui e agora. Mas não é fácil negociar e conversar por aqui com autoridades. Não é fácil. Mas a gente vai fazer a nossa parte aqui e vamos buscar uma solução para isso, tá ok? E aproveita, em meu nome, dá um abraço em todos os caminhoneiros. Valeu”, continuou.
Os caminhoneiros não acreditavam que o áudio fosse realmente de Bolsonaro. Poderia ser fake news. Exigiram garantias. Bolsonaro então pediu ao ministro de infraestrutura, Tarcísio de Freitas, para confirmar que era ele que pedia para cancelar o protesto e abrir as estradas. O ministro aparece num vídeo e fala: “Olá! Hoje é 8 de setembro, já passam das 22h38. Muitos caminhoneiros estão questionando se um áudio do presidente da república é real e se é de hoje. Sim, é real e é de hoje, e mostra a preocupação do presidente com a paralização dos caminhoneiros. Essa paralização vai agravar os efeitos da inflação na economia, vai afetar os mais pobres…”
Trovões
Zé Trovão (Antônio Pereira Gomes), um dos líderes dos caminhoneiros mais radicais, com sua barba e chapéu, é procurado pela polícia, acusado de ameaças contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Conhecido o áudio do presidente, confirmada sua veracidade, gravou seu próprio vídeo. Não se sabe de onde fala. A polícia o procura.
Depois, soube-se que ele tinha fugido para o México. Diz que passa da uma e meia da manhã de quinta-feira, 9 de setembro. “Vocês podem ver minha cara de cansado, estivemos lutando o dia todo e agora circula nas redes sociais que o presidente da república gravou um áudio pedindo para os caminhoneiros abrirem as estradas e voltarem ao trabalho. “Esse áudio pode ser falso, pode ser verdadeiro, ou o que quer que seja”, afirmou. E disse, dirigindo-se a Bolsonaro: “Presidente da república, se você quer realmente que abramos as estradas, que voltemos ao trabalho, tenho duas coisas a dizer: primeiro, que a minha vida está destruída, porque estou sendo perseguido politicamente, com um mandado de prisão e o risco de não voltar a ver minha família, porque não irei para a prisão, porque não sou um criminoso. A outra coisa, presidente, é que queremos que você fale ao povo brasileiro, que grave um vídeo, que diga a data, o dia, e que nos peça para abrir. Depois pediremos aos caminhoneiros que abram”.
Quando a polícia começou a tentar desobstruir a esplanada dos ministérios, os caminhoneiros enlouqueceram. Não podiam acreditar. Vestidos de verde-amarelado, lamentavam: “O presidente não veio. Eu sou bolsonarista. Deixei minha família para defender meu país, mas nenhum dos filhos do presidente veio (Bolsonaro tem três filhos na política: um, Carlos, vereador no Rio de Janeiro; outro, Eduardo, deputado federal; e um terceiro, Flávio, senador); o presidente não disse uma palavra até agora para nós, e o povo continua aqui, fiel, ao lado do presidente.
O manifestante dirige-se então diretamente a Bolsonaro: “Presidente, precisamos de você, diga uma palavra de encorajamento aos que estão aqui”. Aparece outro falando no mesmo vídeo: “Veja, não saímos às ruas para brincar! Presidente!”, diz ele, apontando o dedo para a câmera, “Nós não vamos acatar essa ordem, vamos ficar aqui, não vamos sair da rua”. “Você, caminhoneiro, sem banho, não saia. Parem tudo. Vamos fazer as pessoas da cidade compreender que é o agronegócio e os transportes que movem o Brasil”.
Depois Bolsonaro falou. Numa declaração de dez pontos, divulgada ao meio-dia de quinta-feira, ele recua. “Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos poderes”. “Minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento”. Depois de ter afirmado nas manifestações de terça-feira que não cumpriria novas decisões do juiz do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, reconhece “suas qualidades como jurista e professor”, com quem tem divergências normais, e termina reiterando seu respeito pelas “instituições da República”.
A ruptura
O longo diálogo não termina. Zé Trovão fala em novo vídeo. Já se sabe que ele está no México. “Presta atenção!”, diz ele, dirigindo-se aos seus companheiros, “nossa luta – vou repetir outra vez – é contra os desastres do STF, é contra Alexandre de Moraes, nossa luta é contra a corrupção, contra a bandidagem. Não estamos, de forma alguma, defendendo o presidente Bolsonaro. Nem contra, nem a favor. Estamos lutando pelo Brasil! Brasil! As manifestações precisam de cartazes com a cara do Alexandre de Moraes, pedindo seu impeachment. Vamos! Tirem os cartazes com Bolsonaro escrito neles. Tirem esses cartazes, pelo amor de Deus! Vamos lutar pelo que está certo!”
Tinham anunciado que o prenderiam, depois de localizá-lo na capital mexicana. Ele se entregaria. Mas mudou de ideia. “Tenho de fugir novamente. Eu queria entregar-me, mas ninguém quer que eu o faça”, diz ele. “Por que quero me entregar? O povo brasileiro tem que saber que eu estou do seu lado. Mas todos me pedem para não fazê-lo. Então nos ajudem. Vamos às ruas agora! Vamos parar tudo! Empresários, fechem suas empresas! Vamos às ruas! Vamos salvar nosso Brasil! Ainda temos tempo. Conto com vocês!” Bolsonaro pede paciência. “Alguns querem uma ação mais imediata. Já estão descendo a lenha em mim. Natural. Paciência”. O chefe do governo ainda pediu que seus apoiadores tenham calma: “dá um tempo, dá uns dois, três dias para gente”. Não está claro para quê.
Não está morto
Para Tarso Genro, ex-ministro da justiça, da educação e de relações institucionais durante os governos Lula, as manifestações promovidas por Bolsonaro ficaram muito aquém do que ele pretendia. “Ele não conseguiu criar a histeria necessária em sua base para avançar mais além dos limites razoáveis”. Mas, acrescentou, “não acredito que Bolsonaro tenha acabado e seja um fracasso. Bolsonaro tem uma vanguarda organizada, financiada por pessoas patologicamente desequilibradas, sociopatas ou doutrinados, que se movem de forma ordenada através de injeção de recursos de setores das classes dominantes brasileiras”.
Esta vanguarda, adverte ele, “está armada”. “Não devemos subestimá-lo; fracassou em suas tentativas, mas não está morto. Em agosto passado, Eduardo Bolsonaro, o deputado filho do presidente, viajou para Dakota do Sul. Foi participar de uma conferência sobre “fraude eleitoral”, organizada por “dois dos maiores golpistas dos Estados Unidos: Steve Bannon e Mike Lindell”.
Eduardo foi apresentado como “o terceiro filho do Trump dos trópicos”, enquanto Bannon qualificava Lula como “o esquerdista mais perigoso do mundo” e as eleições brasileiras do próximo ano como “as mais importantes da história da América do Sul”. A visita não melhorou em nada as relações do governo brasileiro com o norte-americano, pois faz parte da mesma política de questionamento do sistema eleitoral que Trump e seus apoiadores seguem espalhando nos Estados Unidos. Bolsonaro exige o voto impresso (não apenas o voto eletrônico) nas eleições de 2022, uma exigência que já foi rejeitada pelo Congresso. “É uma questão resolvida”, disse o presidente da Câmara, Arthur Lira, um aliado de Bolsonaro. A visita de Eduardo Bolsonaro ao reduto da extrema-direita norte-americana confirma a aliança do presidente com Bannon antes das próximas eleições. “Vai haver tumulto nas eleições de 2022”, estimou o jornalista João Filho, do Intercept Brasil.
Desastre absoluto
“Vou fazer 80 anos e há 60, mais ou menos, acompanho de perto a política internacional. Eu nunca vi o Brasil da maneira que está, em nenhum aspecto”, disse o embaixador à TV 247. Cinco anos após o golpe parlamentar que retirou a presidente Dilma Rousseff do poder em 2016, “o resultado é um desastre absoluto”, disse ele. “O país está colocado totalmente à margem do sistema internacional, à margem das boas relações com as grandes e pequenas potências”, concluiu.
Na opinião do cientista político Ronaldo Tadeu de Souza, o Estado está sendo refundado, os direitos dos trabalhadores devastados, avançam as privatizações e os ministérios da educação e cultura estão sendo destruídos. O ex-ministro da fazenda dos governos do Partido dos Trabalhadores, Guido Mantega, lembra que, após a operação Lava Jato – criada para investigar a corrupção na companhia petrolífera brasileira Petrobrás – a empresa investe apenas um terço do que investia há cinco anos. A operação acabou servindo para colocar Lula na prisão, retirá-lo das eleições de 2018, nas quais era claramente o favorito, e levar Bolsonaro ao poder, com apoio militar. “É um cenário realmente dramático”, diz o economista Paulo Gala: “queda do PIB, de 0,1%, desemprego ainda muito elevado, acima de 14%, e o IPCA-15, que mostra que a inflação corre a 9% ao ano”. “Nossa indústria opera hoje com um nível de produção 10% inferior ao de 2014”, diz ele.
Para o diário alemão Handelsblatt, num artigo intitulado “O pesadelo brasileiro”, Bolsonaro “não apenas encoraja seus apoiadores a protestar contra a Justiça. Ele também os conclama à violência. Ele se transformou no maior risco econômico para a principal economia da América Latina”, escreve o jornal. Por sua vez, o Süddeutsche Zeitung reitera o mau estado da economia, com o aumento do desemprego e da pobreza. “Já faz tempo que a fome voltou ao Brasil, esse país que há alguns anos era tratado como modelo de ascensão”.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves