Borba Gato e os Bandeirantes

Willem de Kooning, Litho # 2 (Waves # 2), 1960
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FELIPE MARUF QUINTAS*

Réplica ao artigo do Leonardo Sacramento

Vivemos tempos de crise, não apenas política e econômica, mas, também, e, sobretudo, existencial. A encruzilhada histórica que define a atual situação do Brasil impõe a tomada de uma decisão acerca dos rumos do porvir. Sendo toda escolha irreversível, dada a irreversibilidade da História, é natural que se generalize a angústia sobre o futuro e, correlatamente, a inquietação sobre o passado, cada vez mais esquadrinhado em busca de referências, positivas ou negativas, que balizem a identidade nacional presente, por afirmação ou exclusão, e norteiem as decisões coletivas as quais o país está sendo convidado a seguir.

Assim, é inevitável, que, no turbilhão de sentimentos e desejos de uma civilização ainda jovem como a brasileira – a qual, diferentemente da Europa e seus brotamentos ultramarinos (EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia), da China e da Índia, conta a sua História em séculos e não em milênios – criem-se interpretações conflitivas sobre eventos e processos pretéritos, evidenciando os impasses e as contradições dos projetos e interesses políticos contemporâneos.

Pelo passado servir de referencial ao presente e ao futuro, torna-se, então, imprescindível que a pluralidade de projetos e interesses atuais, ao interpretá-lo, guarde a preocupação com a veracidade e a coerência. As versões devem existir a partir dos fatos e não contra eles, caso contrário, tornam-se falseamentos, nocivos na medida em que distorcem o sentido da construção histórica e, portanto, o entendimento da realidade e de suas possibilidades.

O artigo “Borba Gato, Aldo Rebelo e Rui Costa Pimenta”[i], de Leonardo Sacramento, publicado no dia 09/08 no portal A Terra é Redonda, presta-se como exemplo de falseamento histórico, ainda que de boa-fé por parte do autor.

Esse artigo, escrito no calor das discussões acerca do bandeirantismo, acendidas pela queima da estátua do Borba Gato na capital paulista, respalda a ação incendiária do coletivo denominado Revolução Periférica e critica as vozes divergentes oriundas do campo externo à direita bolsonarista, nominalmente citadas no título.

De forma bastante resumida, Sacramento fundamenta seu texto na leitura de que o bandeirantismo seria o mito fundador de um determinado “nacionalismo paulista” separatista, elitista e racista, devendo, portanto, ser incinerado, simbólica e materialmente, como referencial de construção da Nação. Entretanto, na sua ânsia de “desconstruir” o passado que ele julga nefasto, ele comete inúmeros equívocos historiográficos.

Em primeiro lugar, quando ele afirma que “Borba Gato, como se sabe, viveu e morreu antes da Independência, dos ciclos cafeeiro e escravagista em São Paulo, da Revolução de 1930 e da Revolta de 1932, em uma São Paulo que, na prática, não existia”, certamente para negar a importância de Borba Gato e dos demais sertanistas paulistas para São Paulo.

O autor deveria ter em mente que, sim, existia São Paulo antes da modernidade cafeeira e industrial, que não surgiu do nada, mas, em boa parte, das condições demográficas e econômicas construídas anteriormente por ocasião da Marcha para Oeste bandeirante. Uma São Paulo que, inclusive, no início do século XVIII, enquanto capitania, abrangia o que hoje são os estados de Minas Gerais, Paraná, Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia.  O afluxo humano proveniente do planalto paulista, rumo à hinterlândia sul-americana, para além do Tratado de Tordesilhas, expandiu São Paulo ao mesmo tempo em que expandiu o Brasil, demonstrando a importância de São Paulo para a construção do Brasil e da brasilidade.

Em seguida, Sacramento sugere que o suposto mito bandeirante teria sido uma fabulação tardia, institucionalmente datada em 1917, e, portanto, ilegítima. Assim, ele recusa um aspecto básico da historiografia e das interpretações históricas em geral, que é a recuperação póstuma da importância de determinados processos e eventos por muito tempo esquecidos ou diminuídos. Pelo critério por ele adotado, os movimentos racialistas jamais poderiam reivindicar Zumbi dos Palmares e Tereza de Benguela, cuja valorização histórica se deu muito posteriormente à existência vital deles.

Sacramento, contudo, vai além. Ele é bastante claro em afirmar o caráter elitista e regionalista da celebração do bandeirantismo e, em particular, de Borba Gato, enumerando dados sobre uma suposta associação das homenagens aos bandeirantes e a Borba Gato às oligarquias paulistas, à sedição de 1932 e ao golpe de 1964. Em suas palavras, “Borba Gato surge no século XX, na prática, como resultado de uma construção supremacista dos paulistas não somente sobre os negros e nativos, mas sobre as outras elites regionais.”

Não é de admirar que, dada a importância do bandeirantismo para a definição territorial, etno-demográfica e cultural do Brasil, seu legado tenha sido disputado por diferentes grupos sociais e políticos. Não apenas Júlio de Mesquita pai e filho celebraram o bandeirantismo.

O progressista Manoel Bomfim (1868-1932), crítico à voga eugenista e racista ainda comum em sua época, e, também, um dos mais destacados defensores da universalização da educação pública, enalteceu o bandeirantismo em seus livros O Brasil na América (1929) e O Brasil na História (1931), vendo-o como um dos eixos formadores da nacionalidade, em contraposição aos grupos dirigentes portugueses.

Também Getúlio Vargas, anátema para a oligarquia paulista a que pertencia os Mesquita e padrinho político de João Goulart, deposto em 1964, enfatizava, repetidas vezes, o valor dos bandeirantes para todo o Brasil e, mais ainda, o caráter bandeirante, isto é, integrador e expansivo para dentro, do seu governo. Leiamos alguns discursos do ex-presidente:

As razões profundas do crescimento de São Paulo estão, sem dúvida, na vossa tradição viva e dinâmica de pioneiros e desbravadores. Passada a época das entradas heroicas pelo sertão áspero e bravio, de caça febril ao ouro e às gemas preciosas, de desbravamento e conquista, soubestes manter noutro plano e noutros setores o mesmo ímpeto construtivo e civilizador. […] São Paulo, colmeia ruidosa e ativa, integrado no Estado Novo, endossa-lhe os compromissos comuns de trabalhar mais e melhor pela grandeza nacional. Readquirindo o sentido tradicional de expansão, toma, outra vez, a sua feição bandeirante e abre as trilhas para a ocupação produtiva do Oeste […] Pioneiro das conquistas da terra, o vosso Estado há de ser, também, o bandeirante dos novos rumos de unificação e engrandecimento da Pátria” 23/07/1938[ii].

“A contribuição bandeirante representa a base em que se assenta a grandeza nacional, ou seja, a base econômica e social da democracia brasileira. Assim, os problemas paulistas terão que ser sempre postos em plano nacional, como nacional é a sua vocação histórica. Nunca São Paulo trabalhou apenas para si próprio, todos sentimos a nobreza desse orgulho, que é o de trabalhar dia e noite pela grandeza do Brasil.” 10/08/1950 – A Campanha Presidencial (1951) – Getúlio Vargas: p. 58-59

Também vale o registro do programa governamental de desenvolvimento do interior nacional, alcunhado Marcha para Oeste, um dos mais importantes da Era Vargas, valendo do grande presidente uma das suas mais famosas frases: “O sentido da brasilidade é a marcha para oeste”. O nome fazia clara alusão positiva ao bandeirantismo, no mesmo momento em que Cassiano Ricardo, diretor do DIP-SP e já afastado e politicamente opositor de Plínio Salgado, redigia e publicava seu monumental Marcha para Oeste – A influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil (1970 [1940]). Já no segundo governo Vargas, reconhecidamente um dos mais populares e democráticos da história do país, foi da iniciativa presidencial iniciativa a criação do Museu das Bandeiras, em Goiás, inaugurada em 1954.

A crítica de Sacramento é ainda menos convincente quando associa a valorização do bandeirantismo ao suposto racismo eugênico “embranquecedor” da política imigratória da qual São Paulo foi um dos principais beneficiários entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.

Definitivamente, não há licença poética que justifique o caboclo seiscentista Borba Gato, que viveu pacificamente por cerca de 20 anos entre indígenas, ser tomado como ícone de uma política de atração de mão de obra europeia ocorrida séculos mais tarde.

Tampouco pode-se encontrar qualquer vestígio de “supremacismo branco/europeu” no bandeirantismo como um todo, pois as bandeiras, como se sabe, eram intrinsecamente mamelucas e indígenas.

Sem índio não havia bandeira, pois, sendo ela basicamente movimento ao interior, eram os indígenas quem mais conheciam as rotas, as trilhas e as intermodalidades de transporte (terrestre e fluvial) para se acessar os sertões. A tal ponto era a presença indígena que a “língua geral”, derivada do tupi, e não o português, era o idioma falado na grande maioria delas.

Algumas bandeiras, sobretudo as últimas, possuíam razoável contingente negro, sendo os negros, algumas vezes, os responsáveis por capturar os índios fugitivos. Fernão Dias Falcão, partindo de Sorocaba em 1719, levava consigo 40 africanos, entre eles ferreiros, carpinteiros e alfaiates, que viriam a participar dos primeiros tempos de Cuiabá. Um pouco antes, Pascoal Moreira, tendo enfrentado os aripoconés, perdeu muitos integrantes da sua bandeira, entre eles muitos negros. Os exemplos se multiplicam (Ricardo, 1970 [1940], p. 305-306)

A miscigenação cabocla e até mesmo cafuza nas bandeiras não foi apenas resultado do intercurso sexual forçado – presente, outrossim, entre os quilombolas, que, não raro, raptavam índias em suas fugas, como registra Roquette-Pinto em seu livro Seixos Rolados – Estudos Brasileiros (1927) – mas, também, e muitas vezes, do voluntário.

Afinal, “se muito bandeirante tomou a mulher ao índio é preciso, também, não deslembrar os casos de mediação consistentes em fazer gente da tropa casar com as cunhãs (pra isso não faltou padre em bandeira) a fim de conquistar as graças dos maiorais desta ou daquela tribo” (Ricardo, 1970 [1940], p. 33).

Depreende-se disso, então, que muitos indígenas eram aliados dos bandeirantes e os ajudavam combatendo tribos inimigas. A visão de que todo índio era vítima dos bandeirantes na verdade é uma visão etnocêntrica e colonial, que, olhando de fora (e de cima) homogeneíza-os na categoria iluminista de oprimidos, suprimindo, então, a existência de diferentes grupos indígenas tão estrangeiros entre si quanto nós somos dos belgas e dos coreanos, que guerreavam entre si até as últimas consequências na disputa por territórios e mulheres, e que possuíam suficiente autonomia e capacidade de agência para estabelecerem alianças funcionais aos seus interesses bélicos, inclusive com  paulistas e portugueses.

Outro dado que contrasta com a assertiva do bandeirantismo como “supremacismo branco” foi os bandeirantes terem auxiliado no combate aos elementos europeus exógenos à formação mestiça brasileira, como se verifica no século XVII, quando eles prestaram valioso apoio à expulsão dos holandeses, cujo país era a principal força militar da época, e dos piratas ingleses que, então, assaltavam o nosso litoral. Importante lembrar que, por ocasião das invasões holandesas, Dom João IV, rei de Portugal, havia aceitado entregar à Holanda o norte do Brasil, como Manoel Bomfim esmiúça em “O Brasil na América”. Os batavos foram derrotados não por determinação régia da metrópole portuguesa, mas pela bravura e pelo patriotismo dos brasileiros nativos, organizados em tropas formadas, em parte significativa, por bandeirantes.

Não há, também, nenhum lastro empírico na observação do autor – extemporânea ao assunto de seu próprio artigo – de que a política imigratória posterior visava “desaparecer com o negro”. De 1851 a 1931, entraram no Brasil cerca de 1,5 milhão de italianos, 1,3 milhão de portugueses (sendo Portugal um dos polos originários da formação brasileira), 580 mil espanhóis e 200 mil alemães (Ribeiro, 2006, p. 222). Considerando que a população brasileira, nesse mesmo período, saltou de cerca de 8 milhões de habitantes para aproximadamente 35 milhões, com ampla miscigenação espontânea e sem ter havido nenhuma “solução final”, nenhuma política de extermínio ou de remoção física da população negra, não se pode afirmar que a atração de europeus teve por propósito deliberado “embranquecer” o país.

Tanto mais porque, diferente do sugerido pelo autor, não houve nenhuma priorização de “espaços, empregos e estudos” aos imigrantes europeus. A Lei de Terras, de 1850, ao estabelecer que as terras públicas só poderiam ser transferidas a particulares por meio de operações comerciais monetárias e não de simples doação, “foi concebida como uma forma de evitar o acesso à propriedade da terra por parte de futuros imigrantes (Fausto, 2015, p. 169). Num país predominantemente agrário, onde as oportunidades de ascensão social e de formação patrimonial ainda eram muito dependentes do acesso à propriedade fundiária, os imigrantes, via de regra, não constituíram nenhum grupo privilegiado. Que o digam os avós italianos de D. Marisa Letícia, de muitos dos operários do “novo sindicalismo” petista e de tantos outros paulistas com sobrenome italiano e vida modesta, cujos ascendentes trabalharam duro por um cantinho para viver, sem outra ajuda governamental que não a instituída somente a partir de Getúlio Vargas para todos os brasileiros, independentemente da sua origem.

Se o objetivo da política imigratória, suponhamos, era realizar uma “miscigenação eugênica paulista” – para usar um termo de Sacramento – pode-se inferir, pois, que, tanto quanto a “eliminação do elemento africano”, houve, por igual, a eliminação do europeu, diluído em novas sínteses fenotípicas, como em grande parte ocorreu, sendo o povo paulista, hoje, como todo o povo brasileiro, uma prova inconteste desse fenômeno. Não teria sido a redução do contingente estatístico negro paulista no início do século XX, apontada pelo autor, uma consequência da miscigenação sem a entrada de novos contingentes africanos?

Voltando aos bandeirantes, é estranhíssima a afirmação de Sacramento de que a valorização da memória deles nada tem de popular. Como não, se a massa popular sertaneja, em São Paulo, no centro-oeste e até mesmo no interior do nordeste, descendente dos sertanistas mamelucos saídos do planalto paulista, habita o solo por eles conquistado a nós brasileiros e deles herdou, por exemplo, o r retroflexo, praticamente inutilizado e muito discriminado nas classes altas metropolitanas? O caipira, o matuto, o Jeca mazzaropiano guarda muito mais do bandeirante, no sangue, na língua, na religião, nos hábitos, em tudo, do que os grã-finos e yuppies paulistanos, cujos modelos de pensamento e de conduta refletem, colonialmente, as tendências e modas dos centros norte-atlânticos.

Daí a repulsa do andar de cima aos bandeirantes, ao caboclo rústico e destemido que, embrenhado no sertão, alimentava-se de vermes e matava a sede com o sangue de companheiros mortos. Não à toa, os editores da mídia oligárquica paulistana, nominalmente do portal UOL e dos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, não demonstraram grandes ressalvas à depredação da estátua do Borba Gato, quando não apoiaram, como no caso do UOL/Folha.

Repulsa essa que, elitista em sua essência, não raro utiliza jargões progressistas num verdadeiro caso de racismo, evolucionismo e colonialismo, ao analisar homens e mulheres brasileiros dos séculos XVI-XVIII com as lentes do progressismo iluminista europeu posterior. Como se os Borba Gato e os Anhanguera, vivendo em um contexto absolutamente distinto, fossem inferiores à burguesia racionalista e cosmopolita de além-mar dos séculos seguintes, convertida em padrão normativo não apenas para o presente e o futuro mas, também, para o passado, inclusive o passado dos outros, nosso, no caso dos bandeirantes. Sim, Borba Gato não era o Sting, nem poderia ser. Ainda bem.  Sting, por mais bem intencionado que seja, não ajudaria a erguer o Brasil como Borba Gato ajudou. Houve violência nas bandeiras e no conjunto da formação do Brasil? Sim. Mas qual país não se formou pela violência? Os bandeirantes não foram mais violentos que os reformadores protestantes e os revolucionários franceses e russos. Se somos capazes de analisar esses últimos de forma não-moralista, entendendo seus atos em termos de processo histórico, por que não aplicamos esse mesmo critério aos bandeirantes, dos quais somos herdeiros?

Estranha, também, é a afirmação-síntese do autor do artigo de que “Borba Gato é uma representação racializada e neocolonial”. Por “racializada” ele quer dizer “supremacista branca”, o que é um completo absurdo, pois Borba Gato, como já dito, foi um caboclo que passou grande parte da sua vida entre os indígenas, além de ter se dedicado às bandeiras de mineração, não envolvidas com o apresamento de índios. Mais ainda, a estátua de Borba Gato carrega uma estética própria da cultura popular nordestina – um dos motivos, aliás, das elites cosmopolitas paulistanas sempre terem discriminado o monumento chamando-o de “bonecão”.

Atenhamo-nos, contudo, na acusação de que a representação de Borba Gato seria “neocolonial”. Trata-se justamente do contrário. Borba Gato, junto aos demais bandeirantes, cumpriu uma função verdadeiramente descolonizadora, de construção territorial, etno-demográfica e espiritual do Brasil por brasileiros, por caboclos e indígenas da terra que, a partir do planalto paulista e com quase nenhum recurso além da vontade mística de encontrar o Eldorado, ultrapassaram os limites do Tratado de Tordesilhas, definidos e sustentados por estrangeiros no além-mar.

Borba Gato e os demais bandeirantes, ao virarem as costas para os comandos metropolitanos exercidos através das cidades litorâneas e adentrarem o continente contra os desígnios peninsulares, estenderam a fronteira brasileira ao oeste e ao norte, povoaram e abrasileiraram o continente com base no minifúndio policultor, instituíram circuitos comerciais e demográficos interioranos alheios às imposições coloniais atlânticas, estabeleceram instituições políticas representativas autônomas no interior, como em Cuiabá, e defenderam o Brasil contra os invasores holandeses e ingleses. Praticaram, assim, uma verdadeira desobediência anticolonial que, virando o Brasil para dentro de si, afirmava a existência do povo brasileiro como um povo novo, distinto da metrópole lusitana. Com os bandeirantes, o Brasil, esse novo mundo nos trópicos, descobriu-se capaz de fazer a História por conta própria, construindo de forma autônoma sua territorialidade e seus sistemas de vida.

Não admira, portanto, que os bandeirantes tenham sido frequentemente reprimidos pelos portugueses e, claro, pelos espanhóis, de quem eles reduziam os domínios de Tordesilhas. Raposo Tavares foi inúmeras vezes preso e/ou perseguido por ordem da Câmara. O próprio Borba Gato, descobridor de importantes jazidas de esmeraldas, foi extorquido por D. Rodrigo de Castelo Branco, Superintendente Geral das Minas – oficial metropolitano a serviço de Portugal, de comandos estrangeiros, portanto –  sendo, assim, obrigado a assassiná-lo e fugir para não ser capturado por Portugal, sendo anistiado somente após encontrado e constrangido a indicar o “mapa das minas” aos portugueses.

O caso mais dramático de repressão ultramarina aos bandeirantes foi o da Guerra dos Emboabas, em que a Coroa portuguesa, já transformada em verdadeiro instrumento colonial sobre o Brasil – muito distante dos primeiros tempos, quando de fato operou como formadora de um novo povo e de uma nova nação, em vez de colonizadora – massacrou os bandeirantes para se apossar das minas de ouro e diamantes descobertas por eles, de maneira a quitar o déficit comercial crônico com a Inglaterra, originado pelo Tratado de Methuen de 1703.

Assim, a descoberta bandeirante – brasileira, portanto – do ouro e das pedras preciosas, usurpada pelos colonizadores portugueses, serviu não ao enriquecimento do Brasil e ao espraiamento das riquezas pelo interior, como faziam os bandeirantes, mas, contrariamente à vontade deles, ao enriquecimento da Inglaterra, que, com os tesouros brasileiros, sustentou a sua revolução industrial e tornou-se a potência hegemônica mundial.

Assim, o antibandeirantismo, e não o bandeirantismo, é a verdadeira ideologia colonial. Sem perceber, Sacramento a reproduz, quando, na sua crítica a Rui Costa Pimenta, reproduz a historiografia lusófila que, ao situar exclusivamente na elite imperial bragantina, não-brasileira por origem e lealdade dinástica, o mérito da criação e da consolidação territorial do Brasil, desconsidera a importância seminal dos brasileiros nativos e populares, como os bandeirantes, para a construção do nosso território pátrio, que despontou no século XIX como o segundo maior do mundo, menor apenas que o russo.

Nada mais colonial do que desmerecer os brasileiros mestiços que ergueram o Brasil e deram a ele um sentido interno de unidade anterior à centralização administrativa operada a partir de 1808, para enaltecer, apenas, uma dinastia estrangeira que, tendo os seus méritos no que tange ao refinamento institucional do Brasil – o que muito contribuiu, sem dúvida, para a preponderância brasileira no Prata e na Amazônia no século XIX -, operou, entretanto, com base numa realidade nacional autóctone anterior à sua transplantação oceânica.

Também é preciso deixar claro que o bandeirantismo não é apenas um fenômeno histórico delimitado ao período entre a segunda metade do século XVI e o início do século XVIII, mas, como defendeu Cassiano Ricardo em Marcha para Oeste, o próprio movimento de expansão continental da brasilidade e de ocupação livre do interior por brasileiros e para brasileiros, afirmando a soberania brasileira contra os comandos políticos de além-mar transmitidos pelos entrepostos litorâneos.

Nesse sentido, bandeirantes não foram apenas Borba Gato, Raposo Tavares, Fernão Paes Leme e outros dessa época, mas, também, Alexandre de Gusmão (que formalizou no Tratado de Madri as conquistas territoriais bandeirantes), José Bonifácio, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, os governos militares e o próprio governo Lula, quando idealizaram e promoveram o desenvolvimento para dentro do Brasil. Das entradas no Tietê à transposição do São Francisco, sempre se tratou do mesmo fenômeno: solidariedade entre brasileiros de várias cores e origens para domar os sertões e impregná-los de Brasil, a conquista brasileira da massa continental sul-americana e a sua defesa contra invasores externos.

Bandeirantismo e nacionalismo brasileiro, portanto, se equivalem. O bandeirantismo diz respeito à integração física, demográfica e espiritual da Nação para mantê-la de pé a partir de si própria, virando as costas para o colonialismo litorâneo e adentrando o coração continental para se autogovernar.

Sendo os elementos componentes da nacionalidade, segundo Joseph Stalin, o maior antifascista do século XX, “uma comunidade estável, historicamente formada, de idioma, de território, de vida econômica e de psicologia manifestada na comunidade de cultura […] nenhum desses traços distintos, tomado isoladamente, é suficiente para definir a nação […] basta que falte um só desses elementos para que a nação deixe de existir”[iii], não pode haver, por conseguinte, a defesa da Nação brasileira sem a defesa da contribuição histórica dos bandeirantes, fundamentais para a formação, no Brasil, de todos os componentes da nacionalidade mencionados por Stalin.

Até mesmo o trotskista Rui Costa Pimenta entende isso.  Sua análise geopolítica é perfeita, alinhada com os grandes geopolíticos como Nicholas Spykman e Hans Morgenthau, que consideravam a extensão territorial o primeiro fator de potência nacional (Aron, 2018, p. 63). Os bandeirantes, mesmo sem saberem, foram decisivos para dotar o Brasil de um potencial geopolítico inigualável no mundo, pois, além de sermos o 5º maior país em extensão geográfica, somos, entre os cinco primeiros, o único que é habitável e agricultável em todo o seu território.

Não há, portanto, nenhuma paranoia conspiracionista em discutir, como Rui Costa Pimenta e Aldo Rebelo, a atuação imperialista das grandes potências para desmembrar o Brasil e, assim, eliminar um concorrente da disputa pelo poder mundial e desestabilizar o conjunto da América Latina, fazendo do nosso continente um novo Oriente Médio.

A Inglaterra, através dos deputados do Porto em 1820, tentou operar essa fragmentação, que felizmente não foi levada a cabo graças ao acordo interno entre as províncias brasileiras pela unidade nacional e, também, pela diligente atuação político-militar-diplomática de D. Pedro I, José Bonifácio e Maria Leopoldina, que garantiram a unidade territorial brasileira no contexto da Independência, a despeito das pressões lusitanas em contrário e do papel ambíguo da Grã-Bretanha, como descrito por José Honório Rodrigues em sua pentalogia “Independência: Revolução e Contra-Revolução” (1975).

Posteriormente, as revoltas regionais durante a Regência, a Questão do Pirara, os planos do III Reich de criar Estados étnicos no Brasil e a atuação de ong’s ambientalistas e indigenistas estrangeiras ou financiadas por estrangeiros para isolar regiões inteiras da Amazônia do restante do país demonstram a permanência dos intentos de balcanização do Brasil justamente para nos enfraquecer e impedir que mobilizemos nossos vastos recursos geográficos e humanos a serviço do desenvolvimento para dentro, libertando-nos dos comandos transatlânticos.

A demonização dos bandeirantes, ao buscar desmoralizar justamente os artífices da potência brasileira, tem por objetivo implícito a desvalorização da Nação brasileira em seu conjunto, de modo que os brasileiros não acreditemos em nós próprios e aceitemos as ordens e as imposturas dos países norte-atlânticos, que, tendo uma história e processos formadores tão ou mais violentos que os nossos, arrogam-se, todavia, o direito de nos “civilizar”, em claro viés evolucionista e racista esposado, ainda que inconscientemente, por Sacramento, pelo Revolução Periférica e, em geral, por todos os críticos ferrenhos de Borba Gato e dos bandeirantes, incendiários ou não.

Temos a nossa história, os nossos heróis e os nossos mitos, e cumpre defendê-los e transmiti-los para garantir a preservação da identidade nacional brasileira, sem a qual não seremos capazes de pensar e projetar a realidade em termos próprios, tornando-nos mendigos de ideias e valores. O colonialismo mental – expresso, por exemplo, na condenação dos bandeirantes e, portanto, da nossa história e do nosso País – prepara e solidifica o colonialismo econômico, pois ajusta os desejos e as expectativas dos brasileiros e, em particular, dos nossos dirigentes, a comandos externos planejados unicamente para nos subjugar.

Não é coincidência, então, que os grandes estadistas brasileiros como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek valorizavam a memória bandeirante, enquanto Bolsonaro, que Sacramento praticamente vê como a reencarnação de Borba Gato, sequer saiu em defesa da memória bandeirante, limitando-se a atacar o “vandalismo”, que, sendo de fato um problema em si, não é central nesse caso.

Por fim, sugiro a Leonardo Sacramento a leitura atenta do livro O Quinto Movimento, de Aldo Rebelo. A mensagem básica do livro é a necessidade da união dos brasileiros em torno do que nos é comum, a nacionalidade, para resgatarmos a construção do Brasil e, a partir dos nossos recursos e referenciais, alçar nosso país a patamares superiores de desenvolvimento e cidadania, continuando a aprofundando os quatro movimentos anteriores de formação do Brasil.

Não há nenhum “identitarismo branco” n’O Quinto Movimento. Ao contrário, a valorização da mestiçagem, que sempre horrorizou racistas brancos como o Conde de Gobineau e os nazistas, é exatamente o oposto de qualquer espécie de chauvinismo étnico. Igualmente, não há o menor vestígio de fascismo e bolsonarismo na obra. Inexiste uma única linha coadunada ao sadismo e o belicismo com os quais Hitler e Mussolini arregimentaram seus países. Não se identifica, da mesma forma, um vestígio sequer do privatismo e da americanofilia intrínsecos à retórica bolsonarista.

O século XXI continuará a ser um século de nações, como demonstram a ascensão chinesa, a recuperação russa, as tentativas dos governos Trump e Biden de soerguer a economia nacional dos EUA e a decadência dos países-membros da União Europeia.  Portanto, os dias de hoje nos impõem a tarefa de sobrevivermos como Nação e afirmarmos, para nós e para o mundo, a nossa grandeza e a nossa galhardia verde-e-amarelas.

O Brasil já deu mostra do que é capaz, quando, no século passado, a partir da base físico-territorial continental e do povo mestiço e sincrético formados em grande parte pelo bandeirantismo, fomos o país de maior crescimento industrial em todo o mundo e, também, o país do samba, do carnaval e do futebol. Até hoje somos consagrados como o país de Pelé, Garrincha, Pixinguinha e Villa-Lobos, referência internacional em construção de grandes hidrelétricas, empresas de petróleo e urbanismo tanto quanto em organização de eventos esportivos, de futebol-arte e de vitalidade e bom gosto artísticos.

Somos tudo isso e podemos ser muito mais. Mais do que nunca, cumpre defendermos o legado bandeirante, somente a partir do qual podemos exercer a soberania em proveito de todos os nossos compatriotas, e honrarmos os bravos sertanistas paulistas continuando a sua obra de construção do Brasil para os brasileiros. Nesses tempos atribulados, nada mais importante do que resgatar e valorizar os grandes nomes, eventos e processos do passado, que, nos deixando um País, fazem parte daquilo que somos e estamos vocacionados a ser.

Viva Borba Gato, viva os bandeirantes, viva o Brasil!!

*Felipe Maruf Quintas é mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

Referências


ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

BOMFIM, Manoel. O Brazil na América. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929.

_______________. O Brazil na História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste – a influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil. 2 vol. 4ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1970 [1940].

RODRIGUES, José Honório. Independência: Revolução e Contra-Revolução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

ROQUETTE-PINTO, Edgard. Seixos Rolados – Estudos Brasileiros. Rio De Janeiro: Mendonça Machado, 1927.

VARGAS, Getúlio. A Campanha Presidencial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.

 Notas


[i] https://aterraeredonda.com.br/borba-gato-aldo-rebelo-e-rui-costa-pimenta

[ii] http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-vargas/discursos/1938/22.pdf/

[iii] https://vermelho.org.br/coluna/lenin-stalin-e-a-questao-das-nacionalidades/

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