Por Roberto Bueno*
As críticas reiteradamente veiculadas contra a China têm uma única e exclusiva motivação, a saber, destruir as relações sino-brasileiras em face dos exclusivos interesses econômicos e geopolíticos do império norte-americano
A estratégia de liquidação econômica do Brasil que também envolve a de extermínio de importante volume da população brasileira tem seguro e incondicional apoio no império, para quem os executores nacionais não apenas figuradamente batem continência. Nada disto é possível compreender, contudo, sem tomar como contraponto à decadência do império norte-americano, cuja progressiva agonia encontra sua contrapartida no imparável e planejado avanço chinês já bem percebido por Brzezinski (2005, p. 141), e que uma década após seria objeto de manifestação pública de Xi Jinping no Forum de Davos, logo após a posse de Donald Trump, cujo conteúdo era a disposição imediata do país para assumir uma maior fatia no exercício da liderança mundial, algo compreendido por Washington como uma ameaça (ver STEPHEN, 2017).
A decadência do império não deve levar a crer em considerável perda de importância no jogo geopolítico internacional em face de sua privilegiadíssima posição conquistada ao longo de várias décadas (cf. BRZEZINSKI, 2005, p. 147), senão que a ascensão chinesa e sua aliança com a Rússia imporá um decréscimo importante do império, cenário que conecta com a perspectiva da agonia econômica da potência imperial, que não é pacífica, senão todo o contrário. Em sua manifestação na América Latina o projeto em curso é o de subjugação total, nada menos, e no plano das relações internacionais ganha capítulo importante nos sucessivos ataques à China, mais uma etapa do processo de isolamento radical a que vem sendo conduzido o Brasil no cenário internacional após décadas em que o país galgou posições de prestígio internacional.
O penúltimo capítulo dos ataques à China por parte de prepostos do poder encontrou resposta em nota da diplomacia chinesa dotada de meridiana clareza assinada pelo Cônsul-Geral da República Popular da China no Rio de Janeiro, Sr. Li Yang (2020), onde afirmava que “O Brasil não deve tornar-se um vassalo ou uma peça de xadrez de outro país, senão o resultado seria uma derrota total num jogo com boas cartas”. O tom da nota confirma elogiosamente a posição do Brasil no cenário geopolítico internacional referindo-se a um gigante econômico, entrelinhas, portanto, a sugestão de que as suas elites optaram por reduzi-lo à posição de um mero peão à revelia de seus mais caros interesses.
Este irrefreável desejo de submeter por completo a nação aos interesses do império permite concluir que o país abdicou de uma política externa soberana, situação descritiva de um governo que se desempenha segundo os parâmetros típicos de um protetorado, Estado subordinado à potência que decide os rumos de sua política externa, emasculando-o de sua soberania, sem desconsiderar o alto nível de ingerência, quando não controle, de suas instituições. Sob este contexto são explicados os móveis das declarações e decisões de algumas autoridades e seus assessores, que periodicamente entregarem-se a elaborar ataques à China, logo desmentidos ou matizados, para, após, voltar à carga. Os atores que ocupam posições de autoridade vêm comportando-se como meros prepostos dos interesses do império, em aberto e absoluto descaso com os mais diretos interesses do povo brasileiro, mesmo em tempos críticos com o presente que envolve a grave ameaça pandêmica encarnada pelo Covid-19, com potencial para ser a maior tragédia em escala planetária desde a Segunda Grande Guerra Mundial.
No curso de gravíssima crise pandêmica global, neste dia 05 de abril de 2020, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, retomou a rotina de ataques à China, voltando a referir-se ao país como o ponto originário do vírus covid-19. Articulou a diatribe em frágil momento das relações marcadas pelo fato de que a China já começou a retaliar a economia brasileira impedindo que produtos agrícolas entrem no país e, de forma casada, impedindo a exportação dos indispensáveis produtos médicos para apoiar o enfrentamento da pandemia no Brasil, inversamente à política chinesa com a Itália, para quem enviou avião repleto de recursos. As manifestações das autoridades brasileiras podem ser caracterizadas com toda a clareza como causadoras diretas de muitas mortes nos próximos dias quando começaremos a observar a (a) ampliação do contágio e (b) a falta de equipamento adequado para socorrer os infectados.
A associação do Covid-19 a uma suposta maquinação originária chinesa impele à estigmatização e fomento do ódio contra um grupo nacional específico. Embora seja sabido que o vírus tornou-se conhecido em face de sua disseminação na cidade chinesa de Wuhan, o que não está absolutamente comprovado é que o vírus seja originário da China. Sem embargo, mesmo que viesse a ser comprovado algum dia o caráter autóctone do vírus – e é uma possibilidade que o vírus tenha sido espalhado naquela região em face de uma possível guerra bacteriológica contra a China – seria compreensível probabilisticamente o seu surgimento ali em face da extensão geográfica do país e de sua expressiva população (1,3 bilhões) relativa ao conjunto mundial (7,7 bilhões). O surto de Covid-19 em Wuhan não significa que a cidade tenha sido a fonte do vírus. No núcleo do império o seu Centro de Controle e Prevenção de Doenças admitia que no ano de 2019 haviam ocorrido mortes devido ao Covid-19, hipótese que confirmaria que o ponto focal do vírus não seria a cidade chinesa.
Os reiterados insultos à China deixam transparecer o objetivo de causar o maior dano possível ou, no limite das expectativas benévolas ao império, da ruptura das relações sino-brasileiras, que foram mantidas inclusive pelos governos militares brasileiros originários do golpe de Estado de 1964 no nível do mútuo respeito sob a pauta do pragmatismo, dadas as irreconciliáveis divergências ideológicas e a já notável influência norte-americana. As gigantescas proporções das relações econômicas de ambos os países é bem representada pelo fato de que o superávit da balança comercial brasileira encontra 2/3 deste total em sua relação comercial com a China.
Este é o alvo do ataque norte-americano em um período histórico em que a sua decadência econômica é perceptível, algo evidente em face do recrudescimento da crise pandêmica que vitimou impiedosamente todos os países, mas especialmente os periféricos que não dispõem de suficientes recursos para fazer frente ao desafio virótico. Paradoxalmente, o país mais rico do mundo tem um precário sistema de saúde pública, incapaz de reorganizar a produção industrial para atender aos fins sociais emergenciais nesta área, levando o governo a intervir abertamente em relações comerciais consolidadas de aliados políticos como a França e a Alemanha –, além do incondicional Brasil –, desviando para o seu território cargas massivas de máscaras e de ventiladores mecânicos. Mas se este é o sinal objetivo da decadência de um país que assiste impotente ao aumento exponencial do cálculo de vítimas em seu território que aponta para comparações com as maiores guerras em que o império esteve envolvido.
A decadência do império ganhou visibilidade quando da constituição e desenvolvimento dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) – acrônimo criado por Jim, O´Neill, do banco de investimentos Goldman Sachs –, que passou a encarnar considerável ameaça econômica e geopolítica. Enquanto na década de 1990 os países do BRIC respondiam por 25% da produção mundial, por outro lado, em 2015 já era da ordem de 56%, e por 85% da população mundial ao passo que controlavam aproximadamente 70% das reservas mundiais (cf. MONIZ BANDEIRA, 2018, p. 460). Este era um cenário econômico e geopolítico francamente desafiador e o Presidente Obama expressou ciência do fato ao mencionar individualmente em discurso de formatura em West Point em 28 de maio de 2014 quais eram os países que considerava encontrar-se em posição de hostilidade aos EUA (cf. MONIZ BANDEIRA, 2018, p. 460). Esta análise foi aplicada no plano empírico pelo império, levando-o a empregar esforços para reconfigurar a sua área de pleno domínio na América do Sul, dada a progressiva e acachapante derrota na Ásia e das perdas consideráveis de influência no território europeu em face do avanço e consolidação da Rota da Seda chinesa que foi adentrando naquele espaço comunitário. A ameaça se configurava na fundação em 2015 do New Development Bank, como instrumento alternativo aos organismos planetários intimamente conectados ao império, o FMI e o Banco Mundial.
Esta perda de poder é constatável pelo fato da ajuda humanitária prestada pela China aos EUA com aviões chegando carregados com material de saúde e recursos à colapsada Nova Iorque que o magnífico império não conseguiu produzir para os seus cidadãos. Este fato apoia a constatação da decadência imperial presente na análise do citado Cônsul-Geral, Sr. Li Yang. Em recente nota política publicada na imprensa brasileira com propósito de defender o seu país de ataques despropositados realizados por autoridades nacionais, o Cônsul-Geral sublinhava que “Os Estados Unidos eram realmente um país grande e glorioso. No entanto, neste ponto crítico do avanço da civilização humana, os EUA perderam sua posição histórica e o sentido de desenvolvimento, tornando-se quase totalmente causadores de problemas nos assuntos internacionais, e uma fonte de ameaça à paz e segurança mundiais”. (YANG, 2020).
Em perspectiva histórica é evidente o caráter abertamente belicista do país, pois desde a fundação em 1776 até dezembro de 2015, em nada menos do que 218 anos foram transcorridos sob guerra, e tão somente 21 de paz. Si vis pacem, para bellum, portanto, é princípio levado ao extremo pela política externa norte-americana ancorada nas ambições econômicas da indústria de guerra e do complexo militar do país em que destaca-se o Pentágono, ambos conectados com os poderes conformadores da Constituição de facto, que empresta sentido à Constituição formal de direito, vale dizer, Wall Street, grandes bancos e segmentos do mundo político. Estes atores coordenam os interesses das grandes corporações transnacionais em áreas-chave, da banca ao petróleo, mas também de material bélico e produção científica de ponta, incluindo química e engenharia aplicada. O objetivo do império é magnificar as áreas de sua influência através da criação de um espaço econômico controlado, sob o palatável pretexto de amparar e desenvolver a democracia nos povos aliados. Como um Cavalo de Tróia, o que realmente oferece a cada um de seus aliados são os instrumentos de controle do capital financeiro transnacional cujas manoplas se encontram em Wall Street e adjacências.
À parte os desdobramentos do enfrentamento dos EUA com a China, todavia agravados em desfavor econômico do império pela aliança estratégica sino-russa, é notável o grau de conflitividade que vêm marcando a política externa norte-americana há muitas décadas em diversos continentes, sendo a experiência latino-americana especialmente rica a este respeito, dados os muitos financiamentos a atividades de desestabilização de governos legitimamente eleitos e, não raro, de golpes de Estado, como foi o caso do Chile, sem desconhecer outros casos de intervenção militar direta e as múltiplas ameaças como no caso recente da Venezuela (1), e o fato de suas relações comerciais privilegiadas com a China, com destaque para a venda de petróleo, é um aspecto essencial para compreender o interesse norte-americano.
A este propósito é acertada a interpretação do Cônsul-Geral, Sr. Li Yang, ao sublinhar que a política externa imperial está em profunda desconexão com os ideais dos fundadores do país, em seu momento direcionados a assegurar a justiça, malgrado devamos reconhecer as suas posições aristocráticas, e que alguns, como Thomas Jefferson, foram notórios escravocratas.
Os ataques contra a China que vêm sendo publicados no Brasil não tem aderência aos interesses nacionais, levando a supor que a sua elaboração não ocorra em território nacional, dado o seu significativo potencial destrutivo. O claro objetivo é o de fraturar as relações políticas entre ambos os países e, por conseguinte, inviabilizar as suas relações econômicas, entre as quais não há histórico de conflitos graves ou divergências profundas. Cientes de que a balança comercial com o país asiático é extremamente favorável ao Brasil, na casa de dezenas de bilhões, as autoridades delegadas do império em território brasileiro continuam empenhadas em sua tarefa de atingir dois objetivos, a saber, o primeiro, destruir a economia brasileira, tornando o país absolutamente dependente da matriz imperialista ao passo que fornecedor à baixo preço de todas as suas riquezas naturais e, em segundo lugar, comprometer em alguma medida a China ao privá-la do acesso a alguns bens estratégicos que importa do Brasil tal como produtos primários e recursos naturais como minério.[1]
Os ataques sofridos pela China por parte de representante legislativo federal ligado familiarmente à máxima autoridade da República tiveram resposta direta. O Governo chinês adotou tom fugidio aos tradicionalmente empregados pela diplomacia, e desta vez direto, sem desprezar o emprego de adjetivos e de ameaçadora ironia. A nota do Cônsul-Geral pontuou que a China “nunca quis e nem quer criar inimizades com nenhum país. No entanto, se algum país insistir em ser inimigo da China, nós seremos o seu inimigo mais qualificado!” Indubitavelmente se trata de uma advertência seríssima enviada diretamente ao coração do Governo brasileiro, ademais valendo-se de uma exclamação ao final de um incisivo período recheado de aviso que beira perigosamente a ruptura diplomática. Em face das sucessivas cargas já há avaliações indicativas de que a tradicionalmente discreta e pragmática diplomacia chinesa pode ter alcançado o limite de sua paciência com as autoridades brasileiras que pautam as suas declarações públicas segundo o princípio de atender os interesses norte-americanos.
A crítica do governo chinês expressa no texto consular tece desdenhosa referência a um país que encontra atores políticos próximos ao núcleo do poder que tangenciam os compromissos primordiais com sua pátria, posto que não conduzem os seus assuntos de forma soberana, mas como meros mandaletes do império, ainda quando o que esteja em jogo para o país seja a iminência da perda de mais de 2/3 do superávit de sua balança comercial e a vida de milhões de brasileiros(as) (2). Mesmo quando o Cônsul-Geral realize movimento contemporizador na sequência de seu texto ao pontuar que nem todos os insultos à China poderiam pavimentar o rumo da inimizade com o Brasil, não deixa de reiterar que, sem embargo, isto sim, poderia causar negativo impacto nas relações bilaterais. O prévio aviso foi passado na nota consular e já nos dias seguintes foi possível observar na prática as primeiras ações restritivas da China, uma delas relativas aos frigoríficos brasileiros.
Talvez em muito poucas ocasiões na história brasileira foi possível observar com tanta clareza a ação de traidores da pátria, à luz do dia, e sob o silêncio complacente de postos-chave das mais altas instituições, mas não sem o olhar passivo de parte expressiva da população e a perplexidade de outro segmento dela, contando ainda com a adesão incondicional de aproximada terceira parte da população, que vai se deixando conduzir ao cadafalso, à semelhança do que ocorreu sob o nacional-socialismo sob Hitler, até os últimos dias, quando os soviéticos já estavam às portas de Berlin. A deterioração proposital das relações sino-brasileiras é apenas uma mostra cabal do mais amplo projeto de destruição do Brasil.
As críticas que vão sendo trazidas à público tendo como alvo a China e o seu povo não representam o sentimento de amizade que aproxima ambos os povos, que historicamente mantiveram relações pacíficas e amistosas. As críticas reiteradamente veiculadas têm uma única e exclusiva motivação, a saber, destruir as relações sino-brasileiras em face dos exclusivos interesses econômicos e geopolíticos do império norte-americano a quem um segmento importante da elite política brasileira optou por privilegiar, mesmo que isto suponha adotar posição de abjeto servilismo que pune milhões de brasileiros(as). Precisamos reconhecê-lo, pois é uma das vias de que dispomos para perceber como atuam os que trabalham pelo objetivo da destruição do Brasil e todas as suas vias de desenvolvimento pavimentadas duramente durante décadas pelo povo brasileiro. A forja desta crise diplomática com a China é um dos eixos que demonstram cabalmente esta estratégia de destruição.
*Roberto Bueno é professor de filosofia do direito na UFU
Notas
1) Enquanto este texto era redigido no dia 5 de abril de 2020 era veiculada análise em vídeo realizada pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos na qual indicava a iminência da invasão da Venezuela pelas Forças Armadas norte-americanas. Disponível em: <https://www.viomundo.com.br/politica/boaventura-santos-alerta-para-iminente-invasao-dos-eua-a-venezuela-video.html?utm_medium=popup&utm_source=notification&utm_campaign=site>. Acesso em: 5 de abril de 2020.
2) Além dos notáveis impactos econômicos negativos sobre as condições de vida de milhões de brasileiros(as), com potencial de atingir especial e letalmente aos mais pobres, naqueles dias emergia a notícia de que os Estados Unidos haviam bloqueado avião que trazia importante carga de ventiladores mecânicos importados da China pelo Governo da Bahia, cujo voo realizava escala técnica em Miami. Negado o fato pela Embaixada dos EUA no Brasil, de imediato, o Presidente Bolsonaro aderiu à versão do império em desfavor dos mais claros interesses do povo baiano.
BIBLIOGRAFIA:
BRZEZINSKI, Zbigniew. El dilema de EE.UU. ¿Dominación global o liderazgo global? Barcelona: Paidós, 2005. 263 p.
HIRATUKA, Célio; SARTI, Fernando. Relações econômicas entre Brasil e China: análise dos fluxos de comércio e investimento direto estrangeiro. Revista Tempo do Mundo (RTM). V. 2, n. 1, p. 83-98, jan., 2016.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A desordem mundial. O espectro da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. 643 p.
SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Entrevista: Boaventura Santos alerta para iminente invasão dos EUA a Venezuela. 05/04/2020. Viomundo. Disponível em: <https://www.viomundo.com.br/politica/boaventura-santos-alerta-para-iminente-invasao-dos-eua-a-venezuela-video.html?utm_medium=popup&utm_source=notification&utm_campaign=site>. Acesso em: 5 de abril de 2020.
STEPHEN, Gandel. China’s President Xi Jinping Warns Donald Trump Against Protectionism. Fortune Finance. 17 de enero de 2017. Disponível em: <http://fortune.com/2017/01/17/china-xi-jinping-donald-trump-davos-protectionism/>. Acesso em: 5 de abril de 2020.
YANG, Li. Carta do Cônsul da China no Rio de Janeiro. Jornal do Brasil. 22 de março de 2020. Disponível em: <https://www.jb.com.br/pais/2020/03/1022924-carta-do-consul-da-china-no-rio-de-janeiro.html>. Acesso em: 28 de março de 2020.
[1] Importante análise e detalhadas informações sobre o fluxo do comércio entre Brasil e China podem ser encontrados em HIRATUKA, SARTI, (2016).