Por LISZT VIEIRA*
Temos um “sistema-jagunço” assentado na violência, no clientelismo, na prevalência do poder privado, na supremacia da tradição sobre a institucionalidade
Há dois grandes sertões na literatura brasileira. O sertão de Euclides da Cunha e o sertão de Guimarães Rosa. O primeiro é o semiárido, a caatinga, onde “a lei está na ponta do fuzil”, na frase de Euclides da Cunha. O sertanejo é bandido, age contra a propriedade e a ordem. Euclides da Cunha analisa a guerra de Canudos, no século XIX, mas sua visão se aplicaria também aos cangaceiros do século XX no sertão nordestino.
O sertão de Guimarães Rosa é o cerrado mineiro, onde mandam os jagunços que não conhecem lei nenhuma, pois ali a lei não chega, não há esfera pública. O que predomina é o mandonismo patriarcal. Mas o jagunço não é bandido, não luta contra a ordem. Ele é uma extensão da propriedade, ligado aos grandes fazendeiros do cerrado. Quem analisa de forma brilhante o sertão de Guimarães Rosa é o saudoso crítico Antônio Candido.
Tudo isso me veio à mente ao assistir uma aula de José Miguel Wisnik sobre o livro Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. José Miguel Wisnik, como sempre, brilhante, compara o sertão de Euclides da Cunha com o sertão de Guimarães Rosa, e cita Antonio Candido. Mas eu gostaria de desenvolver outra relação.
Há um outro sertão na cultura brasileira. O sertão levado ao cinema por Glauber Rocha em seu filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Glauber Rocha cita a famosa profecia de Antônio Conselheiro, no Arraial de Canudos: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão!”. Canudos, como se sabe, foi massacrado pelo Exército brasileiro em fins do século XIX.
Essa frase de Antônio Conselheiro permite várias interpretações. As mais comuns se referem à irrigação ou cheias dos rios que cruzam o Nordeste. No plano simbólico, porém, ela pode ser entendida de outra forma. Em prosseguimento à perspectiva de sertão que encontramos em Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, essa frase de Antônio Conselheiro, brilhantemente aproveitada por Glauber Rocha em seu filme, pode ser entendida como o deslocamento do sertão, onde a lei está na ponta do fuzil, para a cidade, onde há regras, e o deslocamento do mar, que banha as cidades com suas leis, para o sertão dos cangaceiros, na caatinga, ou dos jagunços, no cerrado.
Desde o fim do século XIX, na guerra de Canudos, ou dos anos 20 do século passado, que seria a época, segundo alguns autores, do cenário de Grande sertão: veredas, o sertão conheceu mudanças significativas. Em muitos lugares, a lei chegou. Quase sempre tortuosa, com a Justiça servindo aos poderosos. Mas a dominação brutal dos cangaceiros nordestinos ou dos jagunços do cerrado mineiro sofreu transformações pela presença do aparelho policial e judicial, por mais violentos e imperfeitos que fossem.
E o mandonismo patriarcal dos cangaceiros e jagunços se deslocou para as cidades, onde grupos mafiosos de milicianos passaram a controlar parte do território urbano, cobrando impostos e impondo a violência privada contra a ordem pública. No Rio de Janeiro, por exemplo, e não só, os milicianos controlam hoje metade da cidade.
Isso significa uma certa duplicidade do Estado. Além do Estado oficial que, na definição clássica de Max Weber, se caracteriza pelo monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território, temos nas cidades hoje um verdadeiro poder assemelhado ao Estado que usa a violência ilegítima para dominar a população num determinado território. É a violência do mandonismo patriarcal do sertão penetrando nas cidades pela ação das milícias. Vemos assim, que não só o mar virou sertão, o sertão também virou mar, assombrando as cidades com o jaguncismo típico do sertão.
Assim como os jagunços do sertão mineiro, ao contrário dos cangaceiros nordestinos, não lutam contra a propriedade e são ligados ao poder dos grandes fazendeiros, os milicianos das cidades são hoje protegidos pelos poderosos e ligados à polícia. O caso mais notório é o do Rio de Janeiro, onde as milícias são protegidas diretamente pelo presidente da República!
Um exemplo notável nos deu o Interventor Militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro no ano de 2018, o general Braga Netto. Ele só atacou os traficantes nas favelas, e ignorou as milícias que continuaram se expandindo e dominando territórios. Alguns desses novos territórios controlados pelas milícias pertenciam antes aos traficantes atacados pela Polícia durante a Intervenção Militar. Quem quiser que acredite em coincidência.
Assim, o presidente do Brasil é o chefe dos jagunços. Ele quer destruir o Poder Judiciário, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, para tornar-se ditador e implantar seu projeto neofascista abrasileirado, de estilo jaguncista, baseado no mandonismo patriarcal, onde o direito é substituído pelo fuzil e onde prevalecem os costumes do patriarcado temperado com o fundamentalismo evangélico, sempre em choque com os hábitos modernos da vida urbana, mas com apoio de segmentos do mercado e de setores militares.
Esse “sistema-jagunço”, como o define Guimarães Rosa, se baseia na violência, no clientelismo, na prevalência do poder privado sobre o público, na supremacia da tradição sobre a institucionalidade. Originalmente, são poderes fundados no latifúndio, nas oligarquias rurais, no patrimonialismo, na ausência do Estado, no mandonismo patriarcal, na lógica da vingança. Quem não é aliado, é inimigo.
Enfim, o presidente genocida quer transformar o Brasil num grande sertão, sem lei e sem veredas. Tudo indica, porém, que seu projeto neofascista será derrotado pelo projeto democrático moderno encarnado por Lula, em que pesem as diferenças políticas de seus apoiadores, unidos pela necessidade imperiosa de salvar a democracia da regressão autoritária, já em curso, que visa implantar no Brasil a ordem jaguncista do velho sertão onde a lei está na ponta do fuzil.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).