Por VANDERLEI TENÓRIO*
Na perspectiva hitchcockiana era importante que o público soubesse mais que os personagens, para criar o suspense
O estilo hitchcockiano inclui o uso de movimento de câmera para emular o olhar de uma pessoa, tornando os espectadores em voyeurs, e concebendo planos para maximizar a ansiedade e o medo. O crítico de cinema Robin Wood disse que o significado de um filme de Hitchcock “está no método, na progressão de plano a plano. Um filme de Hitchcock é um organismo, com o todo manifestando-se em cada detalhe e cada detalhe estando ligado ao todo”.
Em colaboração para o site Espelha-Fatos, Miguel Cunha dos Santos descreveu que para Hitchcock a câmera era muito mais do que um instrumento de captação de imagem. Fossem quais fossem as que o cineasta utilizava, elas tinham um propósito maior do que a sua função principal. As câmeras eram os olhos do espectador e era através delas que Hitchcock contava e construía as narrativas.
Nesse ensejo, Cunha analisa que, o diálogo, apesar de fundamental e sempre presente, para o cineasta não era nada mais do que um simples ruído no meio de outros tantos. Servia para contar histórias porque faz parte do ser humano: é quem somos e é a nossa principal ferramenta de comunicação. Ainda assim, nos filmes do mestre do suspense, os diálogos eram colocados num patamar menos elevado do que aquele em que estava a narrativa visual.
Na perspectiva hitchcockiana, era importante que o público soubesse mais do que os personagens, para que se criasse o verdadeiro momento de suspense: o segundo em que sabemos que algo está prestes a acontecer, que o personagem pode estar em perigo e que o espectador, com os nervos em franja, só tem vontade de gritar “Sai daí!”.
Hitchcock costumava incluir um assassinato ou crime no começo dos seus filmes, pois assim, o público ficaria curioso para saber como a trama se desenvolveria e qual seria seu desfecho. Sérgio Alpendre conta que as ideias visuais propostas por Hitchcock são sempre marcantes, ou seja, que desde seu cinema mudo o diretor percebeu que, como não contava com o áudio como colaborador, precisava chamar a atenção através do visual para fidelizar os espectadores.
Alpendre sublinha que a morte representada nos filmes do diretor seria então um evento marcante, que coloca os espectadores como testemunhas oculares, sejam elas imparciais ou simpatizantes com algum dos envolvidos. Geralmente colocada no início, instiga o espectador a assistir o resto do filme e conferir como será o desfecho da história.
Em 2018, o artigo publicado na revista Displinarium Scientia, escrito por Eduardo Biscayno de Prá e Michele Kapp Trevisan destacou outro grande diferencial nos filmes de Hitchcock: o som. O inglês percebeu cedo que o tratamento do som contribuía para captar a atenção do público. Na dissertação de mestrado, intitulada “A Música na Construção da Narrativa Cinematográfica (Alfred Hitchcock & Stanley Kubrick)”, Ana Patrícia da Silva Gonçalves explicou que sobre o uso do som nos filmes, Hitchcock desde os seus primeiros filmes sonoros, considerou-o como uma nova expressão da arte cinematográfica – o som ajudava a criar sentimentos como a excitação, tensão, e ainda, expressar o que está implícito, o subtexto não dito.
A música era outro componente crucial nos filmes do diretor. Hitchcock utilizava a música para criar ou manter o suspense, expressar as emoções ou o estado de espírito que desejava em cena, criando uma familiaridade entre a audiência e o filme, ao ligar determinado personagem com um determinado som ou melodia. Fato importante, pois, Hitchcock se preocupava em criar uma ligação através da emoção com os espectadores.
Para constatar a importância da trilha sonora para estruturação técnica, podemos citar como exemplo, a memorável trilha composta por Bernard Herrmann (1911-1975) para Psicose (1960). No longa-metragem a trilha em si é constituída por um total de 34 inserções em todo o filme, a partir de diferentes temas – isso significa que, durante todo o filme, aconteceram 34 cenas que continham música, sendo o restante do filme composto de diálogos ou cenas em silêncio.
Assim sendo, o áudio nos filmes do diretor era trabalhado mais em função da trilha musical do que da fala dos personagens, criando, por vezes, um clima de suspense que levava as intenções pretendidas pelo diretor. O silêncio dos personagens, utilizado como pausa dramática corroborava para aumentar o clima de tensão, gerando a curiosidade dos espectadores.
No viés da narrativa hitchcockiana, o cineasta inglês tinha um método narrativo próprio, denominado por ele de MacGuffin (às vezes de McGuffin ou Maguffin), que consistia em introduzir no enredo um objeto cuja função é, unicamente, ser um pretexto para o avanço da história, aparentemente aleatório para o desenvolvimento da narrativa.
Jorge Louraço reforçou que o MacGuffin é o que motiva a ação do personagem, um pretexto para fazer a ação acontecer e ativar a atenção do espectador – para visualizarmos melhor, por exemplo, o MacGuffin do filme Psicose é o dinheiro roubado do patrão. O dinheiro só serve para conduzir a personagem Marion Crane até o Motel Bates, mas ao chegar ao motel o dinheiro perde a importância no desenrolar da história.
A construção de personagens:
Shana Silveira Torres descreveu que Hitchcock trabalhava muito o perfil de seus personagens, pois acreditava que não deveriam ter uma identidade linear ao longo do filme, já que o conflito seria revelado de imediato e, assim, o espectador não se interessaria pela trama. Nesse ponto, a respeito dos personagens tipicamente hitchcockianos, ou seja, tipos de personagens presentes em filmes do diretor, ela os classifica em três principais arquétipos, sendo eles: a loira gélida, o vilão e o herói.
Ela explica que Hitchcock dedicava muita energia na composição estética de suas musas, não gostava quando os estúdios escolhiam uma atriz que não fosse elegante, pálida e loira. As loiras de Hitchcock são, em sua maior parte, mulheres independentes, que trabalham e não levam uma vida limitada as tarefas domésticas, ou ainda, socialites bem vestidas e elegantes.
No tocante aos vilões, Hitchcock concebia personas que não possuíam escrúpulo algum. O gênio do horror acreditava que um personagem devia despertar sentimentos tanto de repulsão como de identificação no espectador para confundi-lo, criando assim laços. Os vilões de Hitchcock são bem construídos, principalmente por não terem o mesmo perfil linear ao longo da trama, podendo inclusive se tornarem a vítima no final do filme, como exemplo, cito Kim Novak em Um Corpo que Cai (1858), que acaba despencando no final do filme do alto de uma torre de igreja.
E, por fim, o herói, assim como o vilão, não tem uma identidade linear ao longo do filme. Hitchcock criou seus vilões e heróis com o mesmo pretexto, para que o espectador enxergasse nos personagens tanto qualidades quanto defeitos, assim, só haveria certeza de seu caráter no final do filme, com o desfecho. Muitos de seus heróis são acusados injustamente, tornando-se falsos culpados, mas, de um modo geral, o seu propósito é desmascarar o criminoso perante a sociedade.
Nos filmes podemos encontrar diversos tipos de heróis, indo desde o representante da lei, como o policial de Disque M para Matar (1954), até o que luta para desvendar um crime, como James Stewart (1908-1997) em Janela Indiscreta (1954) que, ao perceber o desaparecimento de uma vizinha, suspeita que ela foi assassinada pelo marido.
Diante disto, reitero que o herói e o vilão, devem provocar diferentes sentimentos nos espectadores, fazendo-os se identificar e criar laços com o mesmo, tanto um quanto o outro possuem qualidades e defeitos expostos ao longo do filme.
O papel feminino nas obras de Hitchcock:
Tiago Stivaletti detalha que nos filmes de Hitchcock as mulheres podem possuir vários graus de visibilidade. Segundo ele, o primeiro seriam as mulheres ausentes ou onipresentes, que dominam o filme sem nunca aparecer na tela. Um exemplo é a própria Rebecca do filme Rebecca’ (1940), que mesmo morta desde o início do filme, se faz presente através de comentários a seu respeito e objetos com suas iniciais gravadas.
Já as mulheres opacas, são descritas por Stivaletti como aquelas que possuem em torno de si um grande mistério, que acabam por reforçar sua figura e que encantam as personagens masculinas, que tentarão desvendá-las de qualquer maneira. Um exemplo é a loira interpretada por Kim Novak em Um Corpo que Cai.
E, por último, as mulheres transparentes, ou seja, aquelas que o espectador, e grande parte das personagens, conhecem e tem pleno domínio de seus sentimentos e pensamentos, logo, acabam por despertar menos encanto. Geralmente são vítimas dos personagens masculinos, é o caso da ganhadora do Oscar de Melhor Atriz (1955), Grace Kelly em Disque M para Matar (1954), ou ainda, vítimas das mulheres onipresentes, como a ganhadora do Oscar de Melhor Atriz (1942), Joan Fontaine em Rebecca – Fontaine ganhou o Oscar por Suspeita (1941), um clássico do suspense dirigido por Hitchcock, a partir do roteiro adaptado de Samson Raphaelson e Joan Harrison.
Sem embargo, afirmo que não há a menor dúvida de que Hitchcock foi um dos pioneiros do cinema moderno. A partir de filmes que, na época, manipulavam toda uma audiência, ele quebrou as barreiras entre terror e suspense, desvendando, ainda, partes obscuras da psique humana. O cineasta é “imortal”, pois contribuiu imensamente com o terror e seus subgêneros. Hitchcock não apenas criou o horror moderno, ele o validou.
*Vanderlei Tenório é bacharelando em Geografia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Referências
ALPENDRE, Sérgio. A morte e o falso culpado no cinema do jovem Hitchcock. In: PINHEIRO, Mariana (Org.). Hitchcock. São Paulo: CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, 2011. p. 59-66.
GONÇALVES, Ana Patricia da Silva. A Música na Construção da Narrativa Cinematográfica (Alfred Hitchcock & Stanley Kubrick). 2014. 90f. Dissertação (Mestrado em Mediação Cultural e Literária) – Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Braga, Portugal, 2014.
LOURAÇO, Jorge. Figuras de linguagem do indizível em Conversas com meu pai. Dossiê espetáculo – Conversa com meu pai. Sala Preta, São Paulo. v. 14, n. 2, p. 182-186, 2014.
TORRES, Shana Silveira. Os Figurinos dos Duplos e dos Personagens de Personalidade Dividida nos Filmes Um Corpo Que Cai e Disque M Para Matar de Alfred Hitchcock. 2012. 94f. Monografia (Graduação em Jornalismo) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2012.
STIVALETTI, Thiago. A Mulher Hitchcockiana: Ausência, Opacidade, Transparência. In: PINHEIRO, Mariana (Org.). Hitchcock. São Paulo: CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, 2011.
PRÁ, Eduardo Biscayno de; TRIVISAN, Michele Kapp. Estilo Hitchcockiano: Sistematizando suas características na narrativa audiovisual. Revista Disciplinarum Scientia. Série: Artes, Letras e Comunicação, Santa Maria, v. 19, n. 1, p. 45-56, 2018.