Por FARHAD IBRAGIMOV*
Uma cúpula dos BRICS para apavorar o Ocidente
Há poucos dias, a cidade do Rio de Janeiro sediou a 17ª Cúpula dos BRICS, marcando um avanço significativo para a organização em meio à acelerada transformação do cenário político e econômico global. A Rússia, representada pelo ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, desempenhou papel ativo nos entendimentos da cúpula, enquanto o presidente Vladimir Putin discursou por videoconferência na sua sessão plenária.
Nesse discurso, o líder russo brindou os participantes com uma análise abrangente das atuais tendências globais, enfatizando que o modelo liberal de globalização está perdendo viabilidade à medida que o centro da atividade econômica e política se desloca decididamente para o Sul Global, os países em desenvolvimento com crescente potencial demográfico, logístico e tecnológico.
A Cúpula do Rio reafirmou o peso político crescente dos BRICS e sua aspiração por se tornar uma força basilar na constituição da ordem multipolar emergente. Reuniões de alto nível atraíram a atenção global não apenas por sua escala, mas também pelos resultados substantivos que produziram. Um total de 126 compromissos conjuntos foram firmados, abrangendo áreas críticas como a reforma da governança global, a reestruturação das instituições financeiras internacionais, saúde, iniciativas climáticas, inteligência artificial e desenvolvimento sustentável.
A declaração consignada pela cúpula, intitulou-se “Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável”, e ressaltou o compromisso dos BRICS com o multilateralismo, o respeito ao direito internacional e a promoção de uma ordem mundial justa e equitativa.
Para além da linguagem formal, a cúpula revelou uma mudança mais profunda: os BRICS não se limitam mais ao diálogo tecnocrático cauteloso. O bloco está se posicionando cada vez mais como um ator internacional coeso, capaz de propor novos mecanismos de integração econômica, solidariedade política e coordenação global.
A rigor, essa reorientação política não teve início no Rio. Ela se assenta diretamente sobre a base estratégica estabelecida durante a cúpula de 2024 em Kazan, na Rússia – seu maior encontro até o momento –, que reuniu não apenas os Estados-membros, mas também dezenas de parceiros sob a égide do BRICS+.
A cúpula de Kazan estabeleceu um novo patamar de cooperação e ambição. E o Rio pavimentou o seguimento dessa trajetória. Tornou-se a arena onde as aspirações evoluíram para políticas, e onde o Sul Global começou a articular mais claramente seu lugar no mundo.
Da cooperação econômica à segurança coletiva
Entre os acontecimentos mais relevantes da Cúpula do Rio nota-se o firme compromisso com o avanço da soberania financeira entre os Estados-membros. Deu-se especial ênfase à transição rumo às transações mercantis em moedas nacionais, uma iniciativa de longa data defendida sobretudo por Brasil e Rússia. Os líderes endossaram esse rumo, reconhecendo a necessidade de reduzir a dependência das moedas de reserva dominantes.
O presidente Vladimir Putin ressaltou que essa não era tão apenas uma medida econômica, mas um movimento geopolítico com vista a fortalecer a soberania das nações participantes e resguardá-las de pressões externas.
Em apoio a tal objetivo, a cúpula produziu acordos para aumentar os volumes de investimentos mútuos e acelerar o desenvolvimento de mecanismos independentes de pagamento e liquidação. Essas iniciativas destinam-se a lançar as bases para uma arquitetura financeira mais resiliente, que contorne as instituições tradicionais controladas pelo Ocidente e torne os países do bloco capazes de ditar os termos de sua própria cooperação econômica.
Cada vez mais, os BRICS consideram a autonomia econômica um pré-requisito para a independência política de longo prazo, num mundo marcado pela volatilidade e pela polarização.
Mas a cúpula do Rio fez mais do que consolidar a agenda financeira dos BRICS. Pela primeira vez em sua história, a organização fez uma declaração política forte e coletiva sobre um ponto diretamente relacionado à segurança internacional. A declaração final incluiu uma condenação específica aos ataques ucranianos à infraestrutura civil nas regiões russas de Bryansk, Kursk e Voronez.
Referindo-se aos bombardeios de pontes e ferrovias em 31 de maio, 1º de junho e 5 de junho de 2025, o texto afirma: “Condenamos nos termos mais veementes os ataques contra pontes e infraestrutura ferroviária, visando deliberadamente civis”.
Essa passagem carreia um peso simbólico e estratégico substancial. Apesar da diversidade ideológica e política dos seus membros, o bloco uniu-se na denúncia de ataques que ameacem a segurança interna de um de seus fundadores. Trata-se de um marcado afastamento do tom diplomático e cauteloso da organização com relação a questões geopolíticas sensíveis. Os BRICS, antes definido por sua relutância em abordar problemas atinentes aos conflitos militares ou à segurança, agora adverte a possibilidade de uma base normativa para a solidariedade e a responsabilidade compartilhada.
A inclusão de tal cláusula sugere que os BRICS estão começando a assumir um papel coletivo na formulação de normas relacionadas a conflitos e segurança internacionais. Sinaliza que o bloco está disposto a defender o princípio da integridade territorial não apenas retoricamente, mas por meio de ações diplomáticas coordenadas.
Isso é mais do que um gesto. É a base de um futuro no qual os BRICS possam funcionar não apenas como bloco econômico, mas também como uma âncora política e moral em um mundo dividido.
A reação americana – por que Washington está nervoso?
Apenas 48 horas após a divulgação da Declaração do Rio – em especial com sua seção em que denuncia tarifas unilaterais e medidas não tarifárias – o presidente norte-americano, Donald Trump, emitiu uma resposta contundente. Do gramado da Casa Branca, ele ameaçou impor uma tarifa de 10% sobre todas as importações dos países dos BRICS e acusou o bloco de tentar “corromper” (degenerate) o dólar.
Nos seus termos caracteristicamente bruscos, comentou: “Se vocês tiverem um presidente esperto, jamais cederão o critério. Se vocês tiverem um presidente idiota como o último, perderão o critério”.
Ainda que as palavras de Donald Trump carreguem uma bravata pessoal, a mensagem subjacente ficou clara: Washington vê os BRICS não como um clube econômico neutro, mas como uma ameaça estratégica crescente. Apesar das repetidas afirmações do bloco de que sua cooperação não visa a terceiros, o Ocidente vê os esforços para estabelecer estruturas econômicas alternativas – particularmente aquelas que contornam o dólar e as instituições controladas pelo Ocidente – como um desafio existencial à hegemonia americana.
O caráter dessa resposta destaca uma ansiedade mais profunda em Washington. Iniciativas dos BRICS, antes descartadas como simbólicas ou impraticáveis, agora estão se materializando em estruturas reais: comércio em moedas locais, sistemas de pagamento independentes e novas plataformas de investimento de alcance global. Essas não são apenas alternativas. São inovações sistêmicas que questionam os fundamentos da atual ordem mundial.
A explosão de Donald Trump, portanto, não é apenas um espetáculo político secundário. Ela é uma evidência de que os BRICS estão cruzando um limiar: aquele entre a relevância periférica e a influência central nos assuntos globais. Durante anos, os analistas ocidentais argumentaram que o bloco entraria em colapso sob o peso de suas contradições internas. No entanto, os BRICS não apenas perduraram como também se expandiram, se institucionalizaram e começaram a se afirmar em âmbitos antes considerados inacessíveis.
A reação norte-americana confirma o que muitos no Sul Global já percebem: que os BRICS não conformam mais um fórum passivo para o diálogo Sul-Sul. Eles estão se tornando um agente ativo na reformulação da arquitetura do poder internacional.
Sem volta –BRICS como alternativa sistêmica
A Cúpula do Rio deixou poucas dúvidas de que os BRICS estão evoluindo além de seu escopo original. Antes focado principalmente na coordenação econômica, o bloco agora está lançando as bases institucionais para um sistema alternativo de governança global, assentado sobre a soberania, a igualdade e a resistência às pressões unilaterais.
Essa transformação não é impulsionada por alguma ideologia, mas pela experiência vivida por seus Estados-membros, muitos dos quais enfrentaram as consequências políticas e econômicas de uma ordem dominada pelo Ocidente.
Três vetores estratégicos estão impulsionando os BRICS:
(i) Em primeiro lugar, sua vantagem geoeconômica: o bloco está consolidando o controle sobre as principais rotas comerciais globais e mercados de recursos. Com a adesão de novos membros em 2024-2025 ― incluindo Egito, Irã e Etiópia – os BRICS agora compreendem corredores logísticos cruciais na Eurásia, África e América Latina.
O bloco também detém uma parcela significativa das reservas mundiais de energia, terras raras e commodities agrícolas, o que lhe confere considerável influência sobre as cadeias de suprimentos globais e a formação de preço das commodities.
(ii) Em segundo lugar, os BRICS possuem uma crescente força de atração. Apesar da pressão externa crescente e dos esforços para isolar seus membros, mais de 30 países solicitaram o status de membro ou parceiro. Essa onda reflete um desejo crescente entre as nações do Sul Global por uma plataforma livre de imposições retritivas, empréstimos condicionais ou sanções armadas. Os BRICS tornam-se para si mesmos não apenas um bloco, mas um signo da multipolaridade, respeito mútuo e independência estratégica.
(iii) Em terceiro lugar, os BRICS estão começando a servir de alternativa funcional a instituições congestionadas, como as Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio. Sem buscar explicitamente substituí-las, os BRICS oferecem um modelo mais ágil e baseado em consenso, que prioriza a não interferência, a soberania e a cooperação pragmática, em detrimento de normas rígidas ou aplicação seletiva.
Sua representação da maioria demográfica e econômica do mundo lhe confere peso moral e político, especialmente em um contexto em que a confiança nas estruturas globais tradicionais está em declínio acentuado.
Sob essa perspectiva, a ansiedade que emana de Washington não é simplesmente reativa; é antecipatória. Os Estados Unidos e seus aliados entendem agora que aquilo que os BRICS estão construindo é mais do que um conjunto de instituições alternativas; é um paradigma rival, um paradigma que desafia o monopólio do dólar, rejeita a diplomacia coercitiva e propõe um novo vocabulário para a legitimidade internacional.
A Cúpula do Rio demonstrou que os BRICS não se contentam em seguir sendo apenas um fórum de diálogo. Estão se tornando um veículo de ação. A questão não é mais se os BRICS moldarão o futuro da governança global, mas sim como, e com que rapidez. O que começou em Kazan e foi impulsionado no Rio é um projeto com ímpeto. E no cenário mutável de 2025, esse ímpeto agora parece irreversível.
*Farhad Ibragimov é professor na Faculdade de Economia e Ciência Política da Universidade Patrice Lumumba, em Moscou.
Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.
Publicado originalmente no portal Zero Hedge.
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