Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*
O conflito Rússia e Ucrânia, e agora Israel e Hamas, mostram as atitudes inconsequentes dos atuais líderes mundiais e o risco real de uma guerra mais ampla
Os donos do poder estão brincando com fogo. E não é de hoje! Com efeito, no início do verão europeu, antes de estourar a Primeira Guerra Mundial, nas tradicionais férias de julho de 1914, os principais líderes das grandes potências fizeram o de sempre: saíram de férias. Mesmo as décadas anteriores tendo sido marcadas por uma escalada, sem precedentes, na corrida armamentista mundo afora, ninguém apostava em uma guerra que viria a envolver o planeta nos quatro anos seguintes, com graves e extensas consequências.
Do mesmo modo, a Segunda Guerra Mundial – hoje vista como uma extensão da primeira – não era desejada por ninguém, salvo a Alemanha. Contudo, mesmo Hitler ascendeu ao poder alemão pelas vias democráticas, depois de uma tentativa de golpe de Estado fracassada alguns anos antes. Naquele momento, os líderes das principais potências vencedoras do bloco ocidental ainda acreditavam que podiam controlar Hitler através de concessões econômicas e territoriais. Todos sabemos como tudo acabou…
Mas o que temos de concreto, ao final, é que os últimos 80 anos foram afetados, em maior ou menor medida, pelas duas grandes guerras que o século passado nos legou.
Feita essa breve digressão, é imperioso acender o alerta para as atitudes inconsequentes dos atuais líderes mundiais nesses últimos anos, quiçá décadas. Bem de ver, se já não bastasse o grande desafio que precisamos enfrentar, resultante das profundas mudanças climáticas já sentidas em todo o globo, fruto das ações irresponsáveis de grupos políticos incrustados no poder das maiores potências mundiais, agora estamos diante de um tipo de fogo que já deveríamos ter extinguido definitivamente: uma Guerra Mundial, a Terceira.
Nesse contexto, se o conflito bélico envolvendo a Rússia e a Ucrânia já denotava um potencial devastador para as pretensões de paz mundial – na medida em que a OTAN tem fornecido toda a ajuda possível para aquele segundo país, sob as ordens expressas dos Estados Unidos -, o estouro do novo e mais intenso conflito das últimas décadas entre o Hamas e Israel pode levar o mundo ao colapso.
Veja bem, caro leitor, nos dois conflitos mencionados acima, é preciso ir além da vã filosofia midiática, que tenta sempre tratar um dos lados como vilão e o outro como vítima. Em tempos de pós-modernidade líquida, é certo que as notícias e as verdadeiras informações estão tão disponíveis quanto as fake news. Por conseguinte, quem quiser entender melhor o momento singular em que vivemos, deve avançar nas buscas por informações que tenham credibilidade, para tentar elaborar suas próprias conclusões, com base nos fatos apresentados.
Destarte, apresento aqui a minha conclusão, de maneira sucinta, com o objetivo de estimular o debate e a crítica fundamentada: os dois principais conflitos que estão atualmente em destaque na mídia – posto que existem vários outros “esquecidos” por ela – não são, de forma alguma, dois fatos isolados, mas duas faces de uma mesma moeda, ainda que possuam especificidades regionais diferentes. Para quem possa duvidar, vamos enumerar algumas considerações que embasam esse argumento.
Em primeiro lugar, nem no conflito Rússia x Ucrânia, nem nesse mais recente entre Israel x Hamas existe um “mocinho”, ou seja, todos esses atores são culpados por tudo que vem ocorrendo em suas regiões.
No conflito Rússia x Ucrânia, apesar da Rússia ser a agressora e ser responsável pela submissão da população civil do país invadido a atrocidades, ela não atacou de súbito, por uma mera vontade sanguinária do seu atual governante, um ditador. Mesmo se considerarmos as impressões digitais de uma Rússia expansionista, pelo menos regionalmente falando, a verdade é que os Estados Unidos violaram sistematicamente o acordo firmado entre o então presidente da URSS, Mikhail Gorbachev, e o então secretário de Estado norte-americano, James Baker, que estabeleceu que a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) não avançaria “nem uma polegada em direção ao Leste da Europa”. Isso em pleno 1991.
Não há como ignorar, pois, que os Estados Unidos, e o seu braço armado denominado OTAN, sabiam das consequências de trazer para o seu lado países do leste europeu, mediante inclusão na referida organização. O esfacelamento da URSS, e seu correspondente braço armado, a saber o Pacto de Varsóvia, ofereceu aos Estados Unidos a possibilidade de agregar às suas fileiras antigos países que orbitavam na “cortina de ferro”. Todavia, a Rússia deixou bem claro que alguns países eram “inegociáveis”, como a Bielo-Rússia, a Geórgia e a própria Ucrânia.
Em relação ao conflito que agora nos escandaliza, e apesar do Hamas ter procedido de maneira brutal e animalesca, uma ignomínia para com o povo palestino, a verdade é que a Faixa de Gaza é, hoje, a maior prisão a céu aberto do planeta. Ora, será que todos os palestinos que lá vivem, ou viviam antes dessa catástrofe estourar, são terroristas? Todos são fundamentalistas radicais pertencentes ao Hamas ou a maioria é constituída de pessoas normais que buscam diariamente viver, honestamente, sob o signo da opressão imposta por uma potência militar do calibre de Israel?
Eu, particularmente, acredito nessa segunda opção. Logo, ver Israel responder desproporcionalmente ao ataque infame do Hamas, matando milhares de civis em fuga, que nada têm a ver com a contenda em questão, me parece, sem dúvida, uma atrocidade. Mais que isso: é um genocídio que marcará as próximas gerações de palestinos, que sofrem hoje com a perda de entes queridos, a grande maioria deles de forma inocente. Ou será que alguém em sã consciência acha que as mais de 6.000 bombas já lançadas por Israel em apenas oito dias, num território minúsculo que abriga aproximadamente dois milhões de pessoas, estão a cair cirurgicamente apenas nas cabeças dos integrantes do Hamas?
O segundo ponto de semelhança entre esses dois conflitos são os interesses geopolíticos de cada um dos quatro atores envolvidos, assim também das grandes potências por trás deles (hoje não mais tão atrás assim).
Com efeito, se no conflito Rússia x Ucrânia está em jogo a apropriação de vastos recursos naturais pela Rússia, as chamadas “commodities”, e todas as melhores rotas de evacuação delas, para a Ucrânia, de forte inclinação histórica fascista, a oportunidade de sair da órbita de influência russa e, por consequência, minar ainda mais as bases de sustentação da vontade imperial de sua algoz, sob o beneplácito da maior potência mundial, os Estados Unidos, parecia boa demais para ser ignorada.
Não por acaso, as negociações para a entrada da Ucrânia na OTAN ocorriam sem grandes alardes na grande mídia e sem pressa, talvez para pegar a Rússia desprevenida. Mas os Estados Unidos estavam atuando sorrateiramente, como mostrou o golpe de Estado contra o presidente eleito ucraniano Viktor Janucovich, no início de 2014.
Já no conflito Israel x Hamas, a questão se complica um pouco mais, porque só existe um Estado, que é Israel. O Hamas é uma milícia fundamentalista xiita que possui até um rival entre os palestinos, que é a Autoridade Palestina. Portanto, à primeira vista, não existe comparação em termos de interesses geopolíticos entre Israel e o Hamas. Mas isso é só à primeira vista, visto que o Hamas sofre influência direta do seu primo mais poderoso, o Hezbollah, que é visceralmente ligado ao Irã.
Os acontecimentos mais recentes na região do Oriente Médio dão conta de uma aproximação entre Israel e alguns países da região, notadamente os Emirados Árabes, Bahrein e Marrocos, e um possível acordo com o maior deles, a Arábia Saudita, mesmo que ainda incerto, e o regime teocrático do Irã não vê com bons olhos essa aproximação. Nessa toada, a situação vexatória que Israel impõe aos palestinos principalmente na Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia, serve de pretexto para que o Irã tente barrar acordos que o deixariam praticamente isolado na região.
Uma terceira consideração precisa ainda ser analisada brevemente. Com toda certeza, impera nos dois conflitos bélicos a lógica econômica da acumulação capitalista através da guerra. Isso não é novo. Ainda que o mundo todo não esteja envolvido (nem pode estar, sob pena de vivenciarmos o fim da aventura humana na terra), todas as guerras travadas ao longo da história do animal humano tiveram, pelo menos na sombra, o interesse econômico. O que existe de novo nesses conflitos é, mais do que pode acontecer com as escaladas de ambos, a confirmação da teoria de Giovanni Arrighi, de que, enfim, o capitalismo de corporações americano encontra-se no seu crepúsculo.
Realmente, se para o referido autor a guerra reproduz um padrão repetitivo da economia mundial capitalista (Arrighi, 1996, pág. 283), ou seja, a guerra age como um motor capitalista, a gestão desse capitalismo histórico de longa duração exigiu da superpotência americana a formação de blocos cada vez mais poderosos de organizações governamentais e empresariais “como principais agentes da acumulação de capital em escala mundial”. (Arrighi, 1996, pág. 309)
Assim, sob a égide da “financeirização” do capital promovida pela expansão tecnológica aparentemente sem limites, os Estados Unidos repetiram o padrão dos efeitos polarizadores da “financeirização” apontados por Arrighi (1996, caput 2, págs. 87 a 162), no século da Florença renascentista. O saldo que está sendo cobrado agora de forma mais impactante, já apontado por ele desde a década de 1970, está consoante à dupla tese de SCHUMPETER (1984), segundo a qual o capitalismo é tão forte que não se pode ter ideia do seu desmoronamento, ao mesmo tempo em que o seu próprio sucesso crias as condições ideais para que ele não possa sobreviver.
Ora, os Estados Unidos sabem que não podem mais com todos os imbróglios que existem no mundo. Sabem, antes de mais nada, que já vai longe a própria “Belle Époque” dos anos Reagan. Nesta terceira década do século XXI, pela primeira vez em quase um século os Estados Unidos veem pelo seu retrovisor a rápida aproximação de uma grande potência: a China. Mas não só dela, pois a Índia também chegará, ainda que tardiamente. Em outras palavras, os Estados Unidos sabem que o eixo da supremacia econômica e financeira se deslocará para o Oriente, talvez ainda nesse século.
Daí sua desesperada e derradeira tentativa de envolver a todos em guerras regionais, que elas sejam prolongadas e mortíferas o máximo possível, cuidando, porém, para que não assumam proporções globais. Os Estados Unidos sabem que sem a destruição causada pelas guerras regionais, a demandar a reconstrução, que somente eles são capazes de oferecer no mundo todo, eles serão varridos pela história, como foram todas as outras potências mundiais das épocas passadas.
O risco de queda existe e, para infortúnio dos Estados Unidos, eles podem ser derrubados por duas frentes diversas: internamente, ao estilo romano, pelos imigrantes predominantemente latinos que tanto odeiam; externamente, pelas hordas chinesas e indianas que, juntas, somarão ainda neste século XXI mais de três bilhões de pessoas. Contudo, como a própria história ensina, os Estados Unidos não cairão (se é que cairão) sem lutar. Nenhuma potência mundial caiu sem infringir sérios danos à nova ordem que se anunciava.
E é justamente por isso que se deve ter todo o cuidado com as atuais guerras por procuração. À medida que seu poderio como superpotência mundial declina, os Estados Unidos estão cada dia mais, e com mais empenho, a estimular conflitos religiosos, ideológicos, geográficos etc. pelo mundo. Esses donos da guerra, e seus asseclas das potências regionais, estão, porém, a brincar com fogo. Um fogo de grandes proporções, com quilômetros de altura e largura, e capaz de produzir calor suficiente para derreter o planeta milhares de vezes…
*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
Referências
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: UNESP, 1996.
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro. ZAHAR, 1984.
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