Cabul não é Saigon

Imagem: Suliman Sallehi
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Por VALERIO ARCARY*

Duas fotos parecidas não explicam muita coisa

A identificação da derrocada de Cabul em 2021 com a queda de Saigon em 1975 é uma comparação, histórica e politicamente, apressada. Duas fotos parecidas não explicam muita coisa. O elemento em comum é a derrota do imperialismo norte-americano. Qual é a diferença?

A diferença remete a uma avaliação político-social das organizações que lideram, e seus projetos. A ruína de Saigon foi uma extraordinária vitória revolucionária, anti-imperialista e anticapitalista, que emocionou a esquerda mundial. No Afeganistão não vimos a paixão popular de multidões nas ruas, mas o horror de cenas apocalípticas de desespero político-social, mesmo tendo se evitado um banho de sangue na fase final da guerra civil.

Existem dois perigos simétricos de desequilíbrio na avaliação. Diminuir o significado da derrota imperialista, ou desprezar o perigo que representa um governo do Talebã. Qual deve ser nossa bússola? Podemos aferir este processo usando os cinco critérios que herdamos da tradição marxista para fazer juízos políticos de guerras e revoluções. Qual é programa? Quais são as forças sociais mobilizadas? Quem é a direção? Quem era o inimigo? Quais são as consequências?

O programa do Talebã não é somente a independência do Afeganistão, mas a imposição de Emirado Islâmico, mesmo que consideremos as promessas de moderação. As forças sociais não são somente as massas populares camponesas em um país ainda agrário e muito pobre, mas, também, frações protoburguesas que controlam as plantações de papoula e o comércio do ópio. A direção é um partido-igreja-exército monolítico aliado a senhores da guerra, warlords, mesmo admitindo que a nova direção não seja, exclusivamente, pashtun, porque incorpora líderes uzbeks e tadjiks e, talvez, menos extremista. O inimigo eram o governo do Protetorado e as forças de ocupação norte-americanas. As duas principais consequências são que a resistência tribal-islâmica venceu a guerra civil e derrotou a invasão imperialista, mas o resultado é a imposição de um regime teocrático.

Os cinco critérios merecem ser considerados. Não somente o enfraquecimento de Washington no sistema internacional de Estados. Não é necessário ser marxista, ou sequer de esquerda, para compreender que não há qualquer semelhança entre o Partido Comunista do Vietnam e o Talebã. Qualquer um pode ser mais ou menos crítico ao regime estalinista que emergiu da unificação do Vietnam. Mas quem considera somente que a conquista do poder pelo Talebã seria “progressiva”, porque a forma “distorcida” de uma derrota do imperialismo norte-americano está embriagado de “objetivismo”, e diminui a natureza reacionária da direção fundamentalista.

Evidentemente, não devemos ceder à pressão de visões simplificadas e demonizadas do Talebã. A imagem divulgada pela mídia de jovens armados barbudos, “brutais e primitivos”, atavicamente, misóginos, não deve nos impressionar. O Talebã, os estudantes em lingua pashtun, são uma milícia formada em madrassas, escolas islâmicas dirigidas por mulahs de aldeias em campos de refugiados no Paquistão. São um “produto” de uma nação em guerra há mais trinta e cinco anos. Suas raízes repousam em uma sociedade agrária tribal. Mas o Talebã não é um partido de camponeses pobres, embora essa seja a composição social. Mantém relações estreitas com frações burguesas do Paquistão e do Golfo Pérsico.

A vitória militar do Talebã na guerra civil, apoiado no Paquistão, leva ao poder um partido-exército que imporá uma ditadura teocrática, somente comparável, na pior hipótese, à barbárie do regime totalitário do Estado Islâmico no Iraque, ou, na melhor, ao governo que surgiu do golpe militar em Myamar, uma tirania, igualmente, despótica e reacionária.

Não está ocorrendo, tampouco, algo semelhante ao triunfo de uma insurreição popular de massas anti-imperialista como no Irã em 1979. Não houve resistência na ocupação das grandes cidades, mas, tampouco, manifestações entusiasmadas de apoio, o que é muito mais importante.

Não foi somente um processo de resistência à invasão estrangeira, foi, também, uma guerra civil. A queda do protetorado yankee dará lugar a um Estado independente? O destino do Afeganistão estará em disputa, mas, dificilmente, não escapará da influência do Paquistão, e das pressões subimperialistas da China e Rússia.

É verdade que ambas as retiradas retratam derrotas do imperialismo yankee, mas mais nada. Aliás, não são sequer duas derrotas semelhantes. Os EUA foram, militarmente, derrotados e expulsos no Vietnam. Os Estados Unidos foram, politicamente, derrotados depois de vinte anos de ocupação militar do Afeganistão. Mas as forças militares norte-americanas não foram expulsas de Cabul, depois de uma derrota militar. Os EUA decidiram há anos se retirar e transferir para o exército do Afeganistão a responsabilidade.

O governo Trump negociou a saída e Biden decidiu ir embora. Por quê? Permanecem obscuras as condições da negociação no Quatar com o Talebã que explicam a retirada. Retiraram-se, voluntariamente, em função de um cálculo estratégico e garantias oferecidas pelo Talebã? Aceitaram a transferência para a China e Rússia de responsabilidade pela estabilidade na Ásia Central?

A queda de Cabul nos deixa diante do perigo anacrônico de uma “mentalidade”, ideologicamente, perigosa. Uma maioria da esquerda mundial, no século XX, considerou que o destino da causa socialista estava associado, indissoluvelmente, ao futuro do governo da URSS e seus aliados. Este “nacionalismo da URSS” foi denominado de campismo socialista.

O campismo socialista parecia ter desmoronado no início dos anos noventa com a restauração capitalista sendo liderada na URSS por uma das frações do Partido Comunista da ex-URSS. Ressurgiu nos últimos anos na forma de campismo pró-China. Manifestou-se nos últimos dias, na forma de uma “comemoração” efusiva ou até grotesca da vitória do Talebã no Afeganistão.

O campismo foi, na maior parte do século XX, uma das mais influentes teorias na esquerda mundial. Influenciou gerações, afirmando que o mundo estava dividido em dois campos: o capitalista e o socialista, irreconciliáveis e em luta, apesar das oscilações da coexistência pacífica.

O campismo afirmava que a análise da situação mundial deveria ter como eixo ordenador os conflitos no sistema internacional de Estados entre a União Soviética e os Estados imperialistas. A percepção das variações de situação nas lutas de classes no interior das nações era subordinada à apreciação das relações forças entre os Estados. Amplamente defendida nos círculos de esquerda, e com ecos nos mais expressivos centros universitários do mundo, a visão campista pró-Moscou ou pró-Pequim afirmava que o mundo estaria dividido em dois blocos político-militares o campo capitalista e o campo socialista – sendo este último a “retaguarda estratégica” das lutas de classes contra o imperialismo.

Algumas poucas vozes marxistas alertaram para as perigosas consequências dos critérios campistas, sendo que a tradição associada à elaboração de Leon Trotsky se destacou na reivindicação da centralidade do internacionalismo de classe.

O maoismo construiu, nos anos setenta, nas condições do que passou à história como sendo o período da “revolução cultural”, uma variante campista que obteve influência: a teoria dos três mundos. No primeiro, os imperialismos capitalistas e o social imperialismo russo; no segundo, os países socialistas e o terceiro mundo, ou seja, os países da periferia do mercado mundial subordinados, em maior ou menor medida, no sistema internacional de Estados. Considerou durante alguns anos, após as negociações de Pequim com Nixon, que o social-imperialismo russo seria o mais perigoso. Uma parcela dos Partidos Comunistas com simpatias preferenciais com Pequim defendeu, então, que os partidos pró-Moscou seriam partidos social-fascistas. Elevando o “nacionalismo dos Estados socialistas” ao patamar de referência fundamental nas relações internacionais o campismo terminou destruindo o internacionalismo.

O critério comum a todos os campismos foi a escolha de uma contradição predominante: os interesses diplomáticos de um Estado no sistema internacional. Todas as outras contradições – como o antagonismo entre capital e trabalho em cada sociedade – estariam, permanentemente, subsumidas. A contradição entre os blocos no sistema inter-estatal se impunha, para os campistas, como a contradição fundamental. As lutas de classes em cada região do mundo estariam subordinadas às razões de Estado.

O campismo se apoiava em “um grão de verdade”. A situação internacional é sempre o resultado complexo de um processo de lutas entre as classes, mas também, de luta entre Estados. Análises inspiradas no marxismo sempre tiveram que enfrentar, portanto, uma questão metodológica chave. O desafio nunca foi simples.

A compreensão da dinâmica política mundial exige que se articulem duas dimensões: por um lado, o estudo das relações de forças na luta de classes na esfera nacional não pode desconhecer, evidentemente, que as classes se posicionam para a luta pelos seus interesses – e, quando em crises revolucionárias, pelo poder – dentro de fronteiras.

Seria impossível explicar o triunfo da revolução de Outubro em 1917 sem considerar as sequelas da I Guerra Mundial e a fragilização do sistema de Estados na Europa: afinal, a Alemanha ansiava por uma paz em separado, e a conseguiu. Seria muito difícil explicar a decisão de Mao e da direção do PC da China de levar a guerra contra Chiang Kai Chek em 1949 até ao fim, sem considerar o quadro das relações de forças no sistema internacional de Estados após a entrada do Exército russo em Berlim. Seria, também, impossível compreender a decisão de Fidel Castro – até então, um líder nacionalista – de não aceitar os ultimatos norte-americanos em 1961, sem considerar que a perspectiva de alinhamento com a URSS oferecia um bloco de alianças no sistema internacional de Estados.

Mas as lentes campistas não servem para compreender a queda de Cabul.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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