Cabul, game over

Imagem: Ali Yasser Arwand
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ATILIO A. BORON*

Pela primeira vez na história, Biden terá que negociar com duas potências que Washington define como inimigas e que também selaram uma poderosa aliança

A queda de Cabul nas mãos do Talibã é um evento que marca o fim da transição geopolítica global. O sistema internacional sofreu mudanças significativas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Hiroshima e Nagasaki, junto com a derrota do nazismo na Europa pelo Exército Vermelho, foram os acontecimentos que deram origem à chamada “ordem bipolar”. A queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética no final de 1991 definiram o encerramento dessa era e animaram as fantasias de estrategistas e acadêmicos estadunidenses que se iludiram com o advento do que seria “o novo século americano”.

Zbigniew Brzezinski advertiu sem êxito sobre a fragilidade da ordem unipolar e os riscos de uma ilusão tão perigosa. Seus receios confirmaram-se em 11 de setembro de 2001, quando, junto com a queda das Torres Gêmeas, também se desvanecia a ilusão unipolar. A multiplicação de novas constelações de poder global, estatais e não estatais, que emergiram com força após esse acontecimento – ou melhor, que se tornaram visíveis depois dessa data –, foi o ponto de partida para o surgimento de uma nova etapa: o multipolarismo. O “ciclo progressista” latino-americano teve como pano de fundo esta nova realidade, em que a hegemonia estadunidense tropeçava com crescentes dificuldades para impor seus interesses e prioridades. Uma China cada vez mais influente na economia mundial e o retorno da Rússia ao primeiro plano da política mundial, após o eclipse dos anos Boris Yeltsin, foram as principais características da nova ordem emergente.

Para muitos analistas, o policentrismo tinha chegado para ficar, daí a ideia de uma longa “transição geopolítica global”. E mais, alguns compararam esta nova constelação internacional ao “Concerto das Nações” acordado no Congresso de Viena (1815), depois da derrota dos exércitos napoleônicos, e que duraria mais de um século. Só que, no caso que nos preocupa, havia uma potência ordenadora, os Estados Unidos, que, com seu enorme orçamento militar e o alcance global de suas normas e instituições, podia compensar sua primazia decadente em outros domínios – a economia e alguns ramos do paradigma tecnológico atual – com uma certa capacidade de arbitragem, ao conter as desavenças entre seus aliados e manter na linha as potências desafiantes nos pontos quentes do sistema internacional. O revés sofrido pela aventura militar lançada por Barack Obama na Síria, que devolveu à Rússia seu protagonismo militar perdido, e a derrota catastrófica no Afeganistão, após vinte anos de guerra e o desperdício de dois trilhões de dólares, mais os indizíveis sofrimentos humanos produzidos pela obsessão imperial, encerram definitivamente essa etapa. A entrada do Talibã em Cabul marca a emergência de uma nova ordem internacional marcada pela presença de uma tríade dominante formada pelos Estados Unidos, China e Rússia, substituindo a que vinha sobrevivendo, a duras penas, desde os anos da Guerra Fria, formada por Washington, os países europeus e o Japão.

Daí a natureza ilusória da pretensão expressada por Joe Biden de trazer as principais nações do mundo para a mesa de negociações e, sentado à cabeceira, estabelecer as novas regras e orientações que prevaleceriam no sistema internacional porque, como ele disse, não podia deixar os chineses e os russos assumirem tarefa tão delicada. Mas as suas palavras tornaram-se letra morta porque essa longa mesa já não existe. Ela foi substituída por outra, triangular, que não tem cabeceira, onde se sentam, ao lado dos Estados Unidos, a China, a principal economia do mundo, segundo a OCDE, e formidável potência em Inteligência Artificial e novas tecnologias, e a Rússia, um empório energético, o segundo maior arsenal nuclear do planeta e um protagonista tradicional da política internacional desde o início do século XVIII, ambas erigindo limites à outrora incontornável primazia estadunidense.

Pela primeira vez na história, Biden terá que negociar com duas potências que Washington define como inimigas e que também selaram uma poderosa aliança. Os artifícios publicitários de Trump são inúteis: “vamos tornar a América grande novamente”, ou o mais recente de Biden: “a América está de volta”. Na nova mesa, pesam os fatores reais que definem o poder das nações: economia, recursos naturais, população, território, tecnologia, qualidade da liderança, forças armadas e toda a parafernália do “poder brando”. Nos últimos anos, as cartas de que dispunham os Estados Unidos para manter sua onipotência imperial perdida eram as duas últimas. Mas se suas tropas não puderam prevalecer num dos países mais pobres e atrasados do mundo, Hollywood e toda a oligarquia midiática global não poderão operar milagres. Esta etapa nascente do sistema internacional não estará isenta de riscos e ameaças de todo tipo, mas abre oportunidades inéditas para os povos e nações da África, Ásia e América Latina.

*Atilio A. Boron é professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de A coruja de Minerva (Vozes).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no jornal Pagina12.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Renato Dagnino Eleonora Albano Luiz Werneck Vianna Michel Goulart da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Marilena Chauí Ricardo Antunes José Geraldo Couto José Costa Júnior João Lanari Bo Leda Maria Paulani José Machado Moita Neto Paulo Capel Narvai José Dirceu Juarez Guimarães Francisco Fernandes Ladeira Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Rubens Pinto Lyra Luiz Eduardo Soares Matheus Silveira de Souza Ronald León Núñez Alysson Leandro Mascaro Armando Boito André Márcio Neves Soares João Sette Whitaker Ferreira Celso Frederico Michael Löwy Ari Marcelo Solon Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jorge Branco Denilson Cordeiro Daniel Costa Luiz Renato Martins Kátia Gerab Baggio Leonardo Boff Bruno Machado Daniel Brazil Yuri Martins-Fontes João Adolfo Hansen Marcelo Guimarães Lima Julian Rodrigues Vinício Carrilho Martinez Marcos Silva Luciano Nascimento Luiz Roberto Alves Jorge Luiz Souto Maior Ricardo Abramovay Andrés del Río Luiz Marques Gerson Almeida Tarso Genro Érico Andrade Henry Burnett Valerio Arcary Eugênio Bucci Rafael R. Ioris Otaviano Helene Remy José Fontana Leonardo Avritzer Gilberto Lopes Everaldo de Oliveira Andrade Flávio Aguiar Paulo Martins Lucas Fiaschetti Estevez Slavoj Žižek Celso Favaretto Thomas Piketty Atilio A. Boron Jean Marc Von Der Weid André Singer Liszt Vieira Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Marcelo Módolo Bento Prado Jr. Dennis Oliveira Airton Paschoa Henri Acselrad Michael Roberts Carlos Tautz Ricardo Musse Luiz Bernardo Pericás Eugênio Trivinho Eduardo Borges Tales Ab'Sáber Mário Maestri Fernão Pessoa Ramos Ronald Rocha Bernardo Ricupero Daniel Afonso da Silva Annateresa Fabris Luiz Carlos Bresser-Pereira Manuel Domingos Neto Ricardo Fabbrini Dênis de Moraes José Raimundo Trindade Marcus Ianoni Vladimir Safatle João Paulo Ayub Fonseca José Micaelson Lacerda Morais Elias Jabbour Tadeu Valadares Alexandre Aragão de Albuquerque Benicio Viero Schmidt Fábio Konder Comparato Antonio Martins Chico Alencar Ladislau Dowbor Paulo Nogueira Batista Jr Marcos Aurélio da Silva Milton Pinheiro Antonino Infranca Eleutério F. S. Prado Heraldo Campos Afrânio Catani Maria Rita Kehl Francisco Pereira de Farias Bruno Fabricio Alcebino da Silva Igor Felippe Santos José Luís Fiori Samuel Kilsztajn Vanderlei Tenório Alexandre de Lima Castro Tranjan Antônio Sales Rios Neto Manchetômetro Rodrigo de Faria João Carlos Salles Francisco de Oliveira Barros Júnior Sandra Bitencourt Caio Bugiato Gabriel Cohn Ronaldo Tadeu de Souza Walnice Nogueira Galvão João Feres Júnior Luís Fernando Vitagliano Gilberto Maringoni Anselm Jappe Flávio R. Kothe Lincoln Secco Valerio Arcary Salem Nasser Paulo Sérgio Pinheiro Fernando Nogueira da Costa Mariarosaria Fabris Eliziário Andrade Boaventura de Sousa Santos Chico Whitaker Berenice Bento Osvaldo Coggiola Priscila Figueiredo Andrew Korybko Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lorenzo Vitral João Carlos Loebens Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona Carla Teixeira Jean Pierre Chauvin

NOVAS PUBLICAÇÕES