Capa preta e lurdinha – Tenório Cavalcanti e o povo da Baixada

Carlos Cruz–Diez, Physichromie 113, 1963
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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre o livro de Israel Beloch

A primeira vez que ouvi falar de Tenório Cavalcanti foi no início dos anos 1960 quando, ainda garoto assisti ao filme Carnaval em Caxias (1954; direção: Paulo Wanderley), com José Lewgoy (1920-2003) interpretando Honório Boamorte, onde satirizava Tenório com sua capa preta e disparava a metralhadora “lurdinha”. Havia também Moreira da Silva (1902-2000), o cantor e compositor “Kid Morengueira”, que anos antes já falava do “Bamba de Caxias”. Em 1986, Sérgio Rezende fez O homem da capa preta, estrelado por José Wilker (1944-2014).

O historiador Israel Beloch (1942) transformou sua dissertação de mestrado defendida junto à Universidade Federal Fluminense (UFF) no livro Capa Preta e Lurdinha – Cavalcanti e o Povo da Baixada, em que desvenda os mecanismos que regem a participação de amplas camadas populares, atraídas por lideranças políticas de clientela e por autênticos “coronéis” urbanos. Esses enormes contingentes humanos, relegados a toda sorte de carências, identificam-se com personagens do tipo Tenório. Israel Beloch analisa a trajetória de Tenório Cavalcanti à luz de sua relação indissolúvel com a história da região onde seu império floresceu, projetou-se no cenário político nacional e decaiu.

Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque (1906-1987) nasceu em Bonifácio, no Município de Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano. Seus pais, pequenos proprietários, constituíam um ramo empobrecido dos Cavalcanti de Albuquerque. Com a morte do pai em 1920, desestrutura-se a economia familiar, a propriedade é vendida e Tenório Cavalcanti abandona os estudos recém-iniciados para auxiliar o sustento da mãe e dos irmãos.

Em 1926, com 20 anos incompletos, veio sozinho para o Rio de Janeiro. “Hospedado em pensões humildes ou em casa de parentes no subúrbio, enquanto prosseguia os estudos, trabalhou como lavador de garrafas na cervejaria Brahma, servente, copeiro e ajudante de enfermeiro no Hospital dos Marítimos, garçom de pensão, porteiro de hotel, empregado em loja de roupas e motorista de caminhão “ (p. 45).

Acaba ganhando muito dinheiro vendendo lenha e carvão para a construção da rodovia Rio-Petrópolis, administrando uma fazenda em Duque de Caxias (à época parte do Município de Nova Iguaçu), ocasião em que adquire 43 propriedades. Como administrador de fazenda, Tenório Cavalcanti envolveu-se em sucessivos choques armados, com saldo frequente de mortes e feridos, numa encarniçada luta pela posse da terra que se valorizava aceleradamente. Vem daí sua fama de bom pistoleiro.

Sua “eficiente” gestão à frente da fazenda obriga-o, em seguida, a desligar-se do emprego, pois sua ação truculenta começou a criar problemas para o proprietário. Com a indenização recebida, estabelece-se em Duque de Caxias, numa casa comercial de madeiras e materiais. Em poucos anos, tornou-se ainda mais rico e, logo depois, filiou-se à União Progressista Fluminense, elegendo-se vereador à Câmara Municipal de Nova Iguaçu, representando o distrito de Duque de Caxias.

Com o advento do Estado Novo (1937-1945) e a proscrição dos partidos políticos consegue, através de amigos, ser nomeado agente fiscal em Caxias. Em 1945, na redemocratização, filiou-se à União Democrática Nacional (UDN), em oposição ao seu inimigo histórico, Ernani do Amaral Peixoto (1904-1989), ex-interventor getulista e organizador do Partido Social Democrático (PSD) no Estado do Rio de Janeiro.

A partir daí, de 1945 a 1960, Tenório Cavalcanti militou na UDN, sempre na oposição. Eleito deputado estadual (1947) e em três ocasiões conduzido à Câmara Federal (1950, 1954 e 1958) com votações expressivas, foi derrotado em 1960 na disputa pelo recém-criado Estado da Guanabara (pelo Partido RepublicanoTrabalhista, PRT, com o apoio do Partido Social Progressista, PSP). Obteve 220 mil votos, o que acabou propiciando a vitória de Carlos Lacerda (1914-1977), da UDN, que derrotou por pouco mais de 20 mil votos o petebista Sérgio Magalhães (1916-1991), apoiado pelas correntes nacionalistas e de esquerda.

Em 1962 conheceu nova derrota ao governo fluminense, na coligação Partido Social Trabalhista (PST) \ Partido Trabalhista Nacional (PST-PTN), com o apoio do então semilegal Partido Comunista Brasileiro (PCB). Assim, contentou-se com um mandato de deputado federal conquistado no mesmo pleito na coligação PST-MTR (Movimento Trabalhista Renovador). Em junho de 1964 teve seus direitos políticos cassados, não mais voltando à vida política em 1982 não conseguiu obter uma vaga para se candidatar ao Congresso pelo PDS.

Profundamente documentado com trechos de reportagens, fotos e entrevistas com políticos das décadas de 1940 e 1950, o livro de Israel Beloch se vale principalmente do Luta Democrática, jornal de propriedade de Tenório, com grande penetração nas camadas populares, para reconstituir a trajetória política desse personagem. De udenista ferrenho, antipopulista e conservador nas questões nacionais (e, ao mesmo tempo beneficiário político das massas pobres da periferia, cujas reivindicações mais elementares agitava em suas campanhas), quando se vê livre das amarras da UDN irrompe nas searas das “forças nacionalistas e democráticas”, lutando pela posse de Jango, dando sustentação às bandeiras reformistas e acossando o governo para colocá-las em prática.

Passadas algumas décadas, a antiga proximidade entre “coronéis” urbanos e milicianos armados, pelo que se observa diariamente, continua produzindo muitos homens de capa preta que, com suas lurdinhas cada vez mais sofisticadas, espalham a violência nas periferias e selam identificações com setores populares.

*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.

Publicado originalmente no extinto Jornal da Tarde, em 08 de março de 1986.

Referência


Israel Beloch. Capa Preta e Lurdinha – Tenório Cavalcanti e o Povo da Baixada. Rio de janeiro: Record, 1986, 196 págs.

 

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